Questão do Momento

A quebra de sigilo bancário por agentes fiscais

Autor

  • Jamol Anderson Ferreira de Mello

    é graduado em Direito e Empresa pela Unesp pós-graduado em Direito Tributário Constitucional pela Coordenadoria Geral de Especialização Aperfeiçoamento e de Extensão (Cogeae) da PUC-SP pós-graduado em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP advogado assessor e consultor de empresas.

15 de agosto de 2011, 12h46

Questão atualíssima, a despeito de quase dez anos de discussões, concerne à possibilidade ou não de quebra de sigilo bancário por agentes fiscais tributários, sem autorização judicial, desde que no curso de procedimento administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso, visando a apuração de tributos eventualmente não recolhidos pelos contribuintes.

Convém ressaltar, como introdução ao tema, que a Constituição Federal não consagra especificamente a garantia ao “sigilo bancário”. Em verdade, a doutrina acabou por criar tal conceito, como decorrência do sigilo de dados (artigo 5.º, XII, Constituição Federal) e do direito de intimidade (artigo 5.º, X, também da Carta Magna).

Dentro desse contexto, a doutrina e a jurisprudência sedimentaram que somente seria possível a quebra de sigilo bancário por meio de decisão judicial fundamentada. Aliás, por interpretação literal do artigo 5.º, XII, da Constituição vigente, alguns chegaram a defender que mesmo a quebra de sigilo por decisão judicial fundamentada somente seria possível quanto às comunicações telefônicas, não havendo qualquer exceção constitucional ao sigilo de dados, que seria portanto inviolável. Ressalva-se que essa última posição já foi superada.

Porém, com o advento da Lei Complementar 105, de 2001, mais especificamente com a entrada em vigor do seu artigo 6.º, instaurou-se grande celeuma. Dispõe referida norma que:

Art. 6o As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

O artigo 6.º da Lei Complementar n.º 105/2001 contém uma armadilha. Ao delimitar algumas hipóteses em sede das quais seria cabível a quebra de sigilo bancário, o dispositivo não está a estabelecer limites para um preexistente poder-dever dos agentes fiscais, e sim por criar um indevido e quase ilimitado poder a eles.

A argumentação encontrada na primeira oportunidade pela fiscalização tributária, em especial a Receita Federal do Brasil, para justificar as requisições de informações bancárias, inclusive saldos, depósitos e aplicações financeiras existentes, calcava-se em suposta inexistência de quebra de sigilo, dado que as informações a que teriam acesso as autoridades fiscais não seriam repassadas para terceiros, as autoridades teriam acesso a elas mas isso não representaria violação ao sigilo. Inclusive, quanto a esse ponto, invocou-se o §3.º do artigo 11 da Lei n.º 9.311/96, com redação dada pela Lei n.º 10.174, de 2001, que dispõe:

§ 3o A Secretaria da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicável à matéria, o sigilo das informações prestadas, facultada sua utilização para instaurar procedimento administrativo tendente a verificar a existência de crédito tributário relativo a impostos e contribuições e para lançamento, no âmbito do procedimento fiscal, do crédito tributário porventura existente, observado o disposto no art. 42 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e alterações posteriores. (Redação dada pela Lei nº 10.174, de 2001)

Com a devida vênia, o sigilo existente abrange apenas o correntista e a instituição bancária, não há como as autoridades fiscais terem acesso às informações bancárias e justificarem que não haveria violação à sigilosidade porque terceiros não tiveram acesso à informação. A própria fiscalização já é terceiro violador da privacidade.

A partir da edição da Lei Complementar 105/2001, o contribuinte ficou refém da fiscalização tributária, especialmente no âmbito federal. Em verdade, com o cruzamento de informações relativas à extinta CPMF e de informações relativas a movimentações bancárias disponibilizadas pelo BACEN com declarações referentes a tributos que os próprios contribuintes oferecem à hoje designada Receita Federal do Brasil, as autoridades fiscais passaram a iniciar procedimentos fiscais cujo fim já era por elas previamente conhecido (autuações fiscais volumosas) e o instrumento para tanto fora escolhido antecipadamente (quebra de sigilo bancário).

O modo de agir da fiscalização é conhecido: o contribuinte recebe uma primeira intimação informando do início do procedimento fiscal (Mandado de Procedimento Fiscal, no caso da Receita Federal do Brasil), após, pedido de remessa de informações bancárias, tais como extratos, saldos, etc., e na sequência, caso não haja colaboração espontânea do contribuinte para o levantamento das informações, é formalizada perante as instituições bancárias com as quais ele mantém contas a chamada “Requisição de Movimentações Financeiras” (RMF), que consubstancia a malfadada quebra de sigilo bancário.

E mais: ao proceder a quebra de sigilo bancário, a fiscalização tributária, especialmente a federal (RFB), considera como omissão de receita ou rendimentos todos os valores em relação aos quais o contribuinte não consiga comprovar para a autoridade fiscal sua origem, valendo-se a fiscalização para tanto do artigo 42 da Lei n.º 9.430, de 1996, que estipula:

Art. 42. Caracterizam-se também omissão de receita ou de rendimento os valores creditados em conta de depósito ou de investimento mantida junto à instituição financeira, em relação aos quais o titular, pessoa física ou jurídica, regularmente intimado, não comprove, mediante documentação hábil e idônea, a origem dos recursos utilizados nessas operações.

Necessário salientar que, nesse contexto, a fiscalização não costuma se conformar com declarações, recibos ou informações sobre ingressos em conta-corrente que não representam renda nova. A fiscalização realiza, muitas das vezes, exigências demasiadamente rígidas para classificação do que seria “documentação hábil e idônea” para “comprovação da origem dos recursos”.

E desde a edição da Lei Complementar 105, de 2001, a jurisprudência tem oscilado sobre a constitucionalidade da quebra do sigilo bancário sem autorização judicial, enquanto que a fiscalização tributária foi aperfeiçoando e aumentando gradativamente a utilização de tal ferramenta.

Acontece que recente e importante precedente foi formado em favor dos contribuintes a partir do julgamento do Recurso Extraordinário – RE 389.808/PR, julgado em 15/12/2010. Por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal deu provimento a recurso extraordinário do contribuinte e reconheceu a inconstitucionalidade da quebra de sigilo bancário que não seja realizada por decisão judicial fundamentada (vencidos os Ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ayres Britto e Ellen Gracie). A ementa da decisão assim dispôs:

SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte.

(RE 389808, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/2010, DJe-086 DIVULG 09-05-2011 PUBLIC 10-05-2011 EMENT VOL-02518-01 PP-00218)

O voto condutor da decisão, de lavra do Ministro Relator Marco Aurélio, deixa claro que não é dado às autoridades administrativas tolherem o direito constitucional dos contribuintes ao sigilo de dados e à intimidade. A ressalva ao sigilo somente pode ocorrer por decisão judicial fundamentada, não tendo qualquer órgão administrativo poderes para tanto.

Infelizmente, tal decisão foi proferida em sede de recurso extraordinário, que somente faz efeitos entre as partes de determinado processo. Em outras palavras, somente o contribuinte que recorreu ao STF nesse caso específico se beneficiou de tal decisão.

Contudo, tal precedente sinaliza aos contribuintes que o Supremo Tribunal Federal está atento aos direitos e garantias fundamentais, dado que por maioria de votos sinalizou pela inconstitucionalidade da quebra de sigilo bancário realizada nos termos do artigo 6.º da Lei Complementar 105, de 2001. Assim, abre-se o caminho para que todos os contribuintes que vierem a sofrer similar tipo de ofensa aos seus direitos passem a se defender de tal ordem de abusos.

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    é advogado graduado em Direito e Empresa pela Unesp; pós-graduado em Direito Tributário Constitucional pela Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e de Extensão (Cogeae) da PUC/SP; pós-graduado em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP.

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