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PEC vem assegurar garantias processuais

Autor

  • Fábio Galindo Silvestre

    é promotor de Justiça em Minas Gerais professor de Direito Penal e Processual Penal da Universidade de Itaúna (MG) especialista em Inteligência de Estado e de Segurança Pública pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e membro do GNCOC – Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas.

26 de abril de 2011, 7h45

Em atitude ousada e corajosa, nota distintiva dos grandes homens públicos que assumem a missão de colocar um tijolo na construção da sociedade brasileira, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, apresentou uma proposta muito simples e, na medida da singeleza, a grandeza da ideia: tornar a Justiça brasileira mais ágil, mais célere, mais rápida, equilibrando o sistema, permitindo profunda discussão de toda e qualquer questão ao mesmo tempo em que, com segurança, se possa lhe emprestar definitividade. A ideia recebeu o batismo de PEC dos Recursos e deve integrar o III Pacto Republicano, firmado entre o Executivo, Legislativo e Judiciário brasileiro. É a proposta mais inteligente e mais lúcida já surgida nesse caos, que é hoje a Justiça brasileira.

A ideia vem ao encontro dos mais lídimos anseios de todos aqueles, profissionais e cidadãos, que se aventuram na busca de abrigo, de resguardo de seus direitos ameaçados ou violados, perante o Poder Judiciário. A sábia ideia: permitir que em um sistema de Justiça escalonado em quatro instâncias, em que as coisas não se resolvem nunca, ou absurdamente a destempo, se possa, no mesmo instante, equilibrar uma discussão profunda e justa nas duas primeiras instâncias (juiz de primeiro grau e tribunais locais) e, a partir daí, conferir-lhe nota de definitividade, reservando à terceira (STJ, TST, TSE, STM) e quarta instâncias (STF), seus exclusivos papéis de decidir poucas e importantes questões de lei em tese. O ministro não descobriu a roda, a eletricidade ou o ponto de fusão dos metais, mas, com a simplicidade típica dos grandes sábios, enxergou o óbvio: em uma Justiça escalonada em quatro instâncias, com todos os entraves processuais e burocráticos típicos do sistema, com a diminuta estrutura material e pessoal para fazer frente a uma demanda sempre crescente, uma causa, levada às últimas consequências, não se resolve nunca.

No Brasil existem centenas de milhares de decisões judiciais pendentes, mas estas não tocam a vida das pessoas porque seus efeitos estão sempre suspensos, aguardando o julgamento de mais um recurso, até o infinito. É como se não existissem. É uma Justiça surreal, que consagra o malfadado “ganhou, mas não levou”. Nem um mago, um sábio, uma vidente ou um profeta consegue dizer quando um processo, iniciado hoje, vai acabar. Por isso decidiu o nobre ministro romper com o comodismo, no qual poderia perfeitamente se encastelar e, mostrando-se um magistrado com “M” maiúsculo, se lançou no oceano da busca de soluções para o mais grave entrave da Justiça brasileira, arriscando o balançar das ondas que naturalmente virão.

Na condição de presidente da mais alta corte do país, o Supremo Tribunal Federal, decidiu tocar a ferida e provocar os espíritos acomodados, aceitando a arena do debate e se dispondo a receber críticas de toda sorte, na grande maioria acintosamente arquitetadas, interessadas e desprovidas de conteúdo, em nome de um bem muito maior: a efetividade da Justiça brasileira e a proteção real e efetiva do jurisdicionado. Não é novidade para ninguém que, em todas as secretarias judiciais, de todas as instâncias, de todas as “justiças brasileiras”, estadual, federal, militar, trabalhista, eleitoral, milhares de processos e, dentro deles, muito mais importante, milhares de pessoas, famílias, crianças, idosos, empresas, grupos sociais, enfim, milhares de destinos agonizam à espera de uma decisão judicial definitiva que nunca vem. A Justiça brasileira padece de uma crise insuperável de efetividade da jurisdição. É a eternização dos processos. E a proposta do ministro vem a calhar. É um alento para aqueles que aprenderam nos bancos acadêmicos, como primeira lição, no primeiro dia de aula da Faculdade de Direito, que o Poder Judiciário – a jurisdição – tem como escopo magno, fim maior, a pacificação social.

Em reforço às palavras do ministro, é possível afirmar sem medo de errar: a pacificação social vem mais pela nota de definitividade da decisão do que propriamente pela justiça ínsita nessa decisão. Justiça é um conceito fluido, o que é justo para um não é justo para outro. O que é justo em determinado momento histórico, não o é em outro. Essa discussão será eterna. Evolui com a evolução social, é cambiante. Definitividade não. É um valor certo. Uma nota marcante que aplaca os ânimos em confronto. É uma certeza que acalma o ambiente social. É segurança para as pessoas. É certeza. Melhor uma resposta definitiva, positiva ou negativa, do que a angústia da incerteza, da indecisão. Apesar de parecer estarrecedor, eis a realidade, mas muitos temem falar. Valioso exemplo reforça o exposto.

Em recente julgamento que já compõe a história da Justiça brasileira, perante o Supremo Tribunal Federal, a nação viveu uma agonizante espera da decisão sobre a validade da Lei da Ficha Limpa para as eleições de 2010. Durante os oito meses em que a questão ficou aberta, a insegurança se instalou e a sociedade ficou em crepe. Eleitores, candidatos alcançados pela lei, candidatos que se beneficiariam da saída dos adversários, juristas, juízes, advogados, promotores, desembargadores, ministros, acadêmicos, cronistas, cientistas políticos, padeiros, carpinteiros, engenheiros, enfim, todos, a sociedade brasileira permaneceu à espera da decisão, em clima de evidente tensão. Os ânimos exaltados. Na ocasião, a sensação que se tinha era de que a expectativa social era de validação da lei. Todavia, o voto de desempate do ministro Luiz Fux foi proferido em sentido contrário. A discussão imediatamente cessou. Bem ou mal, justa ou injusta, a decisão, fato consumado, é que a nota de definitividade aplacou os ânimos incandescentes.

Não precisamos ir longe. Nelson Rodrigues, a vida como ela é. Nosso dia-a-dia é repleto de momentos de incertezas e indecisão: sobre pendências pessoais, amorosas, profissionais. Todos somos unânimes em preferir uma resposta definitiva, ainda que contrária a nossa expectativa, a esperar ad eternum algo que nunca vem. A pendência posterga a vida. O simples fato de existir uma decisão definitiva permite que os caminhos se construam, que a realidade seja vivida. Poder-se-ia questionar por último: então quer dizer que a justiça, agora, vai ser feita de qualquer jeito, de afogadilho, as decisões judiciais serão tomadas no palitinho, na roleta, no sorteio, no jogo de dados, no melhor estilo do “seja o que deus quiser?” E a resposta é um sonoro NÃO. Continuam vigentes todos os postulados constitucionais.

Qualquer pessoa que estiver em qualquer dos polos de um processo, como autor ou réu, em demanda cível, criminal, trabalhista, tributária, eleitoral, manterá íntegros seus direitos ao contraditório, à ampla defesa, à igualdade das partes, enfim, ao devido processo legal. Poderá falar, apresentar provas, argumentar, protestar. Ao final será julgado por um juiz independente, imparcial, com o dever de fundamentar suas decisões, tudo exatamente como acontece hoje e como mandam os postulados de um Estado Social e Democrático de Direito. E caso a decisão do juiz seja contrária, embora tudo isso assegurado, ainda há algo a fazer? Sim. A parte inconformada terá seu direito ao recurso, livre acesso à instância superior.

O duplo grau de jurisdição permanece intocável, absolutamente assegurado, podendo quem se acha injustiçado levar a questão ao tribunal e apresentar todas as razões de seu inconformismo. Somente então, depois de ultrapassado um processo como este, em que assegurados todos os direitos das partes, inclusive com discussão no segundo grau, no tribunal, a questão decidida ganha nota de definitividade. Ufa! Os tribunais superiores então, terceira e quarta instâncias, reservam-se para cumprir sua pura missão constitucional: unificar a interpretação de lei federal ou de norma constitucional, em tese, até porque fatos não mais se discutem nessas instâncias, como hoje já sedimentado por remansosa jurisprudência desses próprios tribunais. O sistema é fantástico. Equilibrado. Na medida em que se asseguram todos os direitos constitucionais das partes na primeira e segunda instâncias, se assegura também a efetividade da jurisdição, o cumprimento da decisão, a definitividade e indiscutibilidade da questão levada ao Poder Judiciário. É a formação gradual da coisa julgada.

Como já dito, vozes já se levantaram contra a proposta. Todas elas, sem exceção, limitam-se a criticar pelo simples gosto de criticar. Apresentam riscos em uma política do terror, mencionando casos isolados de possíveis erros judiciários esquecendo-se dos milhares e milhares de decisões prolatadas, todos os dias, com acerto. A justiça perfeita, imune à mínima possibilidade de erro é quimera, utopia. Ainda que escalonada em dez instâncias, a possiblidade de erro ainda existirá, pois imanente à condição humana que se imiscui na nobre função de julgar.

Sejamos realistas. Todas as críticas até o momento levantadas são meramente destrutivas e, nem de longe, apresentam solução factível para o grave problema. Críticas sem fundamento jurídico mais aprofundado, que não resistem a um leve sopro de contra-argumento e, o mais grave, que se mostram completamente dissociadas da aspiração social. Tais críticos se escondem debaixo da bandeira de pseudogarantistas, falsos garantistas de valores constitucionais, que, aliás, não estão sob ameaça, pois o pressuposto da proposta é justamente assegurar o devido processo legal e as garantias processuais das partes.

A maioria dos críticos ou criticam pelo simples prazer de criticar, a crítica pela crítica – “o verbo pelo verbo” – ou particularmente se beneficiam de um sistema lento, da eternização dos processos – “o verbo pela verba”. Ou então, estão desconectados da realidade diária do foro judicial, desconhecem os efeitos deletérios do tempo sobre os direitos pendentes de concretização. Alguns advogados que já escreveram sobre o tema afirmam que o direito à ampla defesa está correndo risco de ser suprimido, violado e, assim, os advogados, enquanto classe, seriam prejudicados pela proposta. Esquecem que, na esmagadora maioria dos casos, no polo ativo da ação, encontra-se, igualmente, um advogado a postular a causa e representar judicialmente a parte autora. Aliás, esta parte autora, e seu advogado, já tiveram seu direito reconhecido por duas decisões judiciais prolatadas por diferentes instâncias da justiça brasileira e, portanto, são titulares legítimos da expectativa de ver esse direito já reconhecido tornar-se concreto. Nesse caso específico, atira-se contra o próprio pé. Se o direito de defesa é sagrado e constitui garantia constitucional, o direito de ação também o é. Se um advogado está a exercitar a defesa, outro está a manejar a ação.

No conflito de status constitucional entre direito de ação e direito de defesa, ao se conferir prevalência absoluta à defesa, suprime-se o direito de ação, haja vista que, ação sem efetividade, sem resultado prático, é o mesmo que não-ação. O direito de ação, repito, como garantia constitucional fundamental, não pode ser formal, retórico, mas deve ser efetivo. E sua efetividade só será assegurada se, depois de reconhecido o direito em duas diferentes instâncias, dentro do devido processo legal, puder se concretizar.

De qualquer ponto de vista que se olhe, os argumentos contrários à proposta são falaciosos. Nesse particular, anote-se o que há dois séculos atrás o filósofo alemão, Friedrich Nietzsche (1844-1900), vaticinou: “O problema das verdades não são as mentiras, mas as convicções”. Ponto comum de todas as críticas é que nenhuma delas traz qualquer alternativa ou proposta substitutiva. Nenhuma delas se honra em enfrentar o problema de frente, o que somente reforça o acerto da proposta da PEC dos Recursos, pois, até o momento, para o combate ao mal da eternização das demandas, ainda não surgiu e, certamente não surgirá, proposta melhor. Precisa a advertência do estadista norte-americano John F. Kennedy: “O progresso é uma bela palavra. Mas o seu impulso vem da mudança. E a mudança tem inimigos.”

Valioso anotar, em arrimo à proposta, que os juízes de primeiro grau, em sua imensa maioria, julgam, e julgam muito bem. A proximidade com a sociedade, com as partes, com a prova, com a causa, lhes permite palmilhar e perquirir, como ninguém, o ideal do justo. Os tribunais brasileiros, em segunda instância, estão muito bem servidos de desembargadores íntegros, com alta capacidade técnica e experiência necessária que os habilitam a decidir as mais altas questões sem descurar de garantias intocáveis dos cidadãos.

Na seara penal, a proposta será o mais poderoso instrumento de combate à impunidade, à protelação de sentenças penais condenatórias, atendendo à expectativa social que há décadas se colhe nos anseios dos brasileiros, conferindo efetividade ao Direito Penal, que hoje não passa de um Direito virtual, que existe, mas não repercute na vida da sociedade. No campo cível, abreviará o término das demandas coletivas, que tocam a vida de grupos sociais inteiros, em causas como aquelas que versam sobre o meio ambiente, o direito do consumidor, bem como permitirá que se instale a segurança jurídica para os direitos individuais, elemento fundamental para o desenvolvimento de um país, do mercado financeiro, de capitais, conferindo estabilidade às relações jurídicas patrimoniais.

Por tudo isso, ministro, meus parabéns! Do mais alto posto da justiça brasileira sua excelência teve a sabedoria, inteligência e a humildade de reconhecer o óbvio que, aliás, parece ainda não ter se descortinado para muitos que se autoproclamam juristas. E mais. Parabéns pela coragem de assumir com desassombro postura firme, ética e que, pelo simples fato de ser nova, naturalmente, encontrará resistências, as quais, todavia, como sobredito, não se sustentam ao mais leve sopro da realidade. Meus cumprimentos por levantar sua voz em nome da verdadeira justiça, que só o é, de fato, se chega às mãos dos cidadãos, se alcança a vida das pessoas, se transforma a realidade social. O povo brasileiro agradece. Esperamos que as entidades sérias desse país, comprometidas com a mudança do quadro social, empenhadas na busca de um Estado que, verdadeiramente, esteja a serviço da sociedade, apoiem essa ideia, emprestem força a essa iniciativa e façam eco ao pleito de todos aqueles que acreditam que uma justiça efetiva pode contribuir decisivamente para a construção da sociedade brasileira.

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    é promotor de Justiça em Minas Gerais, professor de Direito Penal e Processual Penal da Universidade de Itaúna (MG), especialista em Inteligência de Estado e de Segurança Pública pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e membro do GNCOC – Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas.

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