Crime hediondo

Lei de Execuções Penal é mais benéfica para réu

Autor

  • André de Abreu Costa

    é advogado professor de graduação e coordenadorde pós-graduação da Fundação Pedro Leopoldo (MG) professor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix (MG) do programa de pós-graduação em Direito Público da UNIFEMM (MG) mestre em Teoria do Direito pela PUC-Minas.

23 de abril de 2011, 6h21

Publicada no Diário da Justiça de 28 de fevereiro de 2011, a Súmula 471, do Superior Tribunal de Justiça cujo enunciado diz que “Os condenados por crimes hediondos ou assemelhados cometidos antes da vigência da Lei 11.464/2007 sujeitam-se ao disposto no artigo 112 da Lei 7.210/1984, a Lei de Execução Penal, para a progressão de regime prisional.”, pretendeu dar fim a qualquer discussão acerca do âmbito de validade temporal das regras relativas à progressão de regime de cumprimento de pena privativa de liberdade, tendo em vista a diferença de critérios existente entre a regra geral da LEP e a especial, da Lei de Crimes Hediondos.

Isto porque, como se verá a seguir, a partir do instante em que a vedação da progressão de regime para os crimes hediondos e assemelhados, prevista na redação original da lei de crimes hediondos, caiu frente à decisão do STF, em 23 de fevereiro de 2006, no Habeas Corpus 82.959/SP – ampliando a aplicabilidade do artigo 112, da LEP; e que, em 29 de março de 2007, entrou em vigor a Lei 11.464, que trata com regras específicas e mais severas que a regra geral o benefício antes mencionado, a dúvida sobre a aplicabilidade temporal das mencionadas regras passou a frequentar os Tribunais Superiores.

Este artigo pretendeu, à vista da edição da já citada súmula 471, pelo STJ, demonstrar o itinerário legal, doutrinário e jurisprudencial acerca das transformações de entendimento sobre a possibilidade de progressão de regime de cumprimento da pena privativa de liberdade nos crimes hediondos e assemelhados.

A lei de crimes hediondos
Resultado de um esforço legislativo no sentido de dar tratamento mais severo para setor específico dos crimes previstos pelo direito brasileiro, a Lei 8.072, de 26 de julho de 1990, regulamentou o artigo 5º, XLIII, da Constituição.

Hediondo, lexicamente, é o crime asqueroso, odioso, “depravado, imundo, vicioso, sórdido, repugnante, nojento, feito” e cuja reprovabilidade ético-social impende tratamento diferenciado mais severo em relação ao outros tipos de criminalidade.

Além dos crimes chamados hediondos, cujo rol taxativo encontra-se no artigo 1º, da Lei 8.072/90, existem aqueles a que este mesmo diploma legislativo chama de assemelhados a hediondos e aos quais é dispensado o mesmo tratamento, impondo-se a eles, pois, as mesmas restrições.

No contexto dessas restrições, um dos assuntos mais tormentosos e que já tiveram diversas tratativas diferentes por parte da legislação e da jurisprudência nacionais é a questão do regime de cumprimento da pena privativa de liberdade nos hediondos e assemelhados. Isto porque, a redação original da Lei 8.072/90 previa que o sentenciado por crime hediondo ou assemelhado a hediondo deveria cumprir sua reprimenda penal totalmente no citado regime, sem possibilidade de progressão. Inclusive, é possível notar que a própria jurisprudência do STF encaminhava-se no sentido da constitucionalidade do citado dispositivo. E essa compreensão ficou bastante evidente quando da discussão sobre a aplicabilidade do parágrafo 7º, da Lei 9.455/97, que previa, para estes crimes, regime inicial fechado, o que deixava aberta a porta para o benefício. Analisando tal dispositivo, o STF fixou, por Súmula, o entendimento de que:

Súmula 698: Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura

Entretanto, a partir do julgamento do Habeas Corpus 82.959-7/SP, de que foi relator o Ministro Marco Aurélio Mello, o STF entendeu pela inconstitucionalidade do parágrafo 1º, do artigo 2º, da Lei 8.072/90. Naquela oportunidade, o Ministro Relator Marco Aurélio, afirmou que

Diz-se que a pena é individualizada porque o Estado-Juiz, ao fixá-la, está compelido, por norma cogente, a observar as circunstâncias judiciais, ou seja, os fatos objetivos e subjetivos que se fizeram presentes à época do procedimento criminalmente condenável. Ela o é não em relação ao crime considerado abstratamente, ou seja, ao tipo definido em lei, mas por força das circunstâncias reinantes à época da prática. (…)

Destarte, tenho como inconstitucional o preceito do §1º do artigo 2º da Lei 8.072/90, no que dispõe que a pena imposta pela prática de qualquer dos crimes nela mencionados será cumprida, integralmente, no regime fechado. (HC 82.959-7/SP, p. 516)

De forma que a razão de ser para a consideração da inconstitucionalidade daquele dispositivo legal foi, justamente, sua violação à garantia constitucional da individualização da pena, reinante no sistema penal brasileiro, e expressa no art. 5º, XLVI, da Constituição.

Posto isto, depois do julgamento do citado HC, que se deu em 23 de fevereiro de 2006, passou-se a considerar possível que os réus que houvessem cometido crimes hediondos ou assemelhados pudessem fruir do benefício da progressão de regime prisional.

A questão que surgiu a partir dessa decisão foi a de saber-se se a progressão dar-se-ia nos mesmos prazos que para os mais crimes ou deveria haver tratamento diferenciado para os hediondos e assemelhados. Isto porque, de acordo com o art. 112, da LEP, o requisito objetivo-temporal para a progressão seria o cumprimento de um sexto da reprimenda penal no regime anterior, tanto para réus primários quanto para réus reincidentes.

Entretanto, em 29 de março de 2007, foi publicada a lei 11.464, que deu nova redação ao artigo 2º, da Lei 8.072/90, disciplinando a questão da progressão de regime para os crimes hediondos e assemelhados – seguindo a orientação do STF – mas dando tratamento mais severo a tais infrações penais. Tal lei entrou em vigor, conforme suas disposições gerais, no mesmo dia de sua publicação, e dizia que:

Art. 2º (…)

§1º. (…)

§2º. A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.

Assim, nos crimes hediondos e assemelhados, haveria critério mais severo para a progressão de regime de cumprimento da pena privativa de liberdade do que para os mais crimes. Consistindo a Lei 11.464/07 em novatio legis in pejus, já que alterou em desfavor do réu o critério até então existente, outro questionamento foi levantado perante os Tribunais Superiores brasileiros, agora no tocante à eficácia temporal dos dois diplomas legais mencionados.

Sabe-se que apenas a lei penal mais favorável ao réu obteve da Constituição a possibilidade de retroagir, para alcançar crimes praticados anteriores à sua entrada em vigor. Tal garantia, insculpida no artigo 5º, XL, da Constituição, fez com que os critérios novos, estabelecidos pela Lei 11.464/07, não pudessem alcançar todos os crimes hediondos, mas apenas aqueles cuja prática houvesse-se dado antes da entrada em vigor da novel regulamentação.

Instado a resolver a questão, o STF, através do HC 91.631/SP, julgado em 16 de outubro de 2007, no voto da ministra Cármen Lúcia, esclareceu que:

a) o óbice à progressão de regime contido na redação original do §1º do art. 2º da Lei n. 8.072/90 não se aplica a qualquer fato em relação ao qual ainda seja possível a aplicação da pena;

b) se o fato ocorreu antes de 29 de março de 2007 – data em que entrou em vigor a Lei n. 11.464/07 -, são aplicadas as regras previstas na Lei de Execução Penal, exigindo-se, para a progressão, o cumprimento de, ao menos 1/6 da pena (art. 112 da Lei de Execução Penal); e

c) considerada a garantia da irretroatividade da norma penal mais gravosa, os critérios de progressão de regime estabelecidos na Lei n. 11.464/07 somente se aplicam aos fatos ocorridos a partir do dia 29 de março de 2007 em diante.

Interessante notar que, naquele mesmo período, o STJ chegou a externar entendimento de que não se poderia dar o mesmo tratamento dos crimes não hediondos para os hediondos e assemelhados:

(…). 1. 2. (…). 3. Revela-se inaceitável, do ponto de vista jurídico, que os condenados por crime hediondo possam progredir de regime carcerário nas mesmas condições de tempo (cumprimento de 1/6 da pena) exigidas dos condenados por crime não hediondo. 4. (…) 5. A não aplicação de prazo diferenciado de cumprimento da pena para a progressão de regime carcerário do condenado por crime hediondo, significa mitigar a nota de hediondez do delito, tornando iguais, para esse efeito, situações de todo desequiparadas; entretanto, por ser esta a orientação desta Corte, que merece o maior respeito e acatamento, sigo-a, ressalvando o meu despretensioso ponto de vista. 6. (…). (HC 88941 / SP; Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho; Quinta Turma; Julgado em 13 de dezembro de 2007; Publicado no DJ de 07 de fevereiro de 2008)

Até em razão dessa sensível discordância entre os tribunais, foi importante que se chegasse a um entendimento comum, o que parece ter-se dado, essencialmente, com a edição da Súmula 471, pelo STJ.

A súmula 471 do STJ
Como já se vinha dizendo, em fevereiro de 2011, o STJ, pelo enunciado da Súmula 471, entendeu que:

Os condenados por crimes hediondos ou assemelhados cometidos antes da vigência da Lei 11.464/2007 sujeitam-se ao disposto no art. 112 da Lei n. 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) para a progressão de regime prisional.

A compreensão externada, portanto, é conforme aquilo que o STF já vinha aplicando diuturnamente. E o raciocínio expendido não poderia ser outro, já que a regra contida no art. 112, da LEP, é mais favorável ao acusado e, portanto, tem caráter ultra-ativo, mantendo sua aplicação mesmo com a existência de Lei Nova.

Para solucionar o caso, é preciso levar a sério, em primeiro lugar, que a, no já citado artigo 5º, inciso XL, garante o efeito extra-ativo da Lei Penal mais favorável ao réu, esteja este em que fase do procedimento criminal estiver, dando àquele tipo de lei penal uma maior maleabilidade no tempo.

A regra contida no artigo 5º, XXXIX, da Constituição impõe que os efeitos da Lei Penal são sempre pra frente. Ou seja, a regra é a irretroatividade da lei penal. Dessa forma, somente pode-se dizer que há a prática do crime se a conduta houver sido realizada já na vigência da lei penal incriminadora. No entanto, esta imperatividade da irretroatividade cede face à presença de lei que seja mais favorável ao acusado, que terá caráter extra-ativo, significando que aquela pode retroagir ou ultra-agir.

Retroagir significa, em Direito Penal, que a lei nova lançará seus efeitos para condutas adredemente realizadas, sob a vigência de outra regra legal, mais desfavorável ao réu. Isto é, poderão ser alcançados pela novatio legis in mellius comportamentos criminalizados realizados antes mesmo da entrada em vigor da lei. Por outro lado, ultra-agir significa agir pra frente. Quer dizer que, se o crime houver sido praticado na vigência de certa lei que dá tratamento mais brando ao acusado, a superveniência de outra que trate de modo mais gravoso não o pode atingir. Assim, aplicar-se-ia a regra da época do fato, por ser aquela primeira benéfica em relação à segunda.

No caso em comento, a LEP tornou-se a regra aplicável e estabeleceu que a progressão para os hediondos e assemelhados dar-se-ia com o cumprimento de um sexto da pena no regime anterior – observados os mais requisitos exigíveis – sendo o sentenciado reincidente ou não. A Lei 11.464/07, por requerer o cumprimento de prazo maior de pena e por fazer diferença entre reincidentes e primários, é mais gravosa em relação àquela outra, tornando-se pois, inaplicável a situações anteriores à sua entrada em vigor.

Por fim, os crimes a partir de 29 de março de 2007 (inclusive), por força da regra geral insculpida, como já se disse, nos artigos 1º, do CP, e 5º, XXXIX, da Constituição, sujeitam-se à aplicação da lei mais severa, exatamente como propõe o enunciado da súmula comentada nesta breve exposição e conforme já se tinha manifestado o STF, em outras oportunidades.

A Lei 8.072/90, em sua redação original, proibiu que houvesse progressão de regime de cumprimento da pena privativa de liberdade para os crimes hediondos e assemelhados, em visível obediência ao movimento de recrudescimento das normas penais que frequentava o pensamento criminológico do início dos anos de 1990.

Com o julgamento do HC 82.959/SP, o STF mudou o posicionamento que vinha adotando, declarando inconstitucional o dispositivo do parágrafo 1º, do artigo 2º, da Lei de Crimes Hediondos, por violar a garantia da individualização da pena, insculpida no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição, que requer uma análise concreta das situações específicas do caso, quando da aplicação e da execução da sanção penal.

A partir daí, passou-se a utilizar, para a progressão de regime de cumprimento de pena privativa de liberdade, a regra insculpida na Lei de Execução Penal, no seu artigo 112, qual seja, a necessidade de cumprimento de um sexto da pena no regime anterior para que o réu pudesse fazer jus ao benefício mencionado.

Com o advento da Lei 11.464/07, houve modificação no texto da Lei de Crimes Hediondos, regulamentando a progressão de regime de cumprimento da pena privativa de liberdade para tais delitos, exigindo que réu cumprisse, em sendo primário, dois quintos da pena; em sendo reincidente, três quintos, no regime anterior.

Por força da existência de dois regramentos sobre o mesmo assunto, surgiu a dúvida antinômica acerca da lei penal aplicável para os crimes hediondos e assemelhados praticados antes da entrada em vigor da citada lei nova: se a regra geral da LEP ou a específica da novatio legis. A jurisprudência do STF já se vinha manifestando pela aplicação da lei anterior, por ser mais benéfica, vista a garantia insculpida no artigo 5º, XL, da CR88, que estatui a extra-atividade da lei que seja mais favorável ao acusado.

O STJ pôs fim à discussão interna ao próprio tribunal com a edição da Súmula 471, estatuindo que, aos crimes praticados antes de 29 de março de 2007 – momento em que a Lei 11.464/07 entrou vigor – aplica-se o disposto no artigo 112, da LEP e que a lex gravior tem aplicabilidade, apenas e tão-somente, para os crimes perpetrados a partir da data antes citada.

Referências bibliográficas
ALMEIDA, Gevan de Carvalho. Modernos movimentos de política criminal e seus reflexos na legislação brasileira. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2004.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. São Paulo : Saraiva, 2009.

FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2005.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2009.

NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2005.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2006.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal: Parte general. Vol V. Buenos Aires: Ediar, 1998.

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    é advogado, professor de graduação e coordenadorde pós-graduação da Fundação Pedro Leopoldo (MG), professor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix (MG), do programa de pós-graduação em Direito Público da UNIFEMM (MG), mestre em Teoria do Direito pela PUC-Minas.

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