Pólvora molhada

Relatório inidôneo da PF é usado para atingir delegado

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19 de abril de 2011, 15h35

Um Relatório de Inteligência (Relint) classificado como inidôneo e duvidoso em 2008, foi encaminhado ao Ministério Público Federal, em agosto de 2010, pelo então superintendente do Departamento de Polícia Federal no Rio de Janeiro, delegado federal Angelo Fernandes Gioia, hoje licenciado do cargo. O documento — Relint 499/2008 — descrevia uma suposta quadrilha de policiais envolvidos na prática de contrabando e descaminho de mercadorias no Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio de Janeiro. Na Superintendência da PF, suspeita-se que a elaboração do documento tinha por finalidade atingir o delegado federal Paulo Roberto Falcão que chefiou a Delegacia de Polícia Federal no aeroporto entre fevereiro de 2008 e março de 2009.

Apesar do Relint teoricamente ter sido elaborado em 5 de agosto de 2008, Falcão deixou a delegacia do aeroporto, em março de 2009, não por problemas disciplinares, mas a convite do próprio Gioia para assumir a Corregedoria na Superintendência, aonde permaneceu até março de 2010, quando, por conta de sérios desentendimentos com o superior, exonerou-se do cargo. Somente após a briga é que surgiu o documento de inteligência, levado em mãos por Gioia ao procurador Marcelo Freire, em agosto passado.

Foi o único Relatório de Inteligência que a Polícia Federal no Rio encaminhou aos procuradores Freire e Fábio Seghese. Estes, diante da constante recusa do superintendente em encaminhar as cópias dos Relints avulsos, isto é, que não estivessem relacionados a inquéritos e processos em tramitação, impetraram Mandado de Segurança (MS) na Justiça, como a ConJur noticiou (Controle externo desata guerra judicial entre PF e MPF), para terem acesso aos mesmos.

A Superintendência também recorreu a um Mandado de Segurança para não ser obrigada remeter os documentos ao MPF. Os dois mandados tramitam na 18ª Vara Federal. Na quarta-feira (13 de abril), os procuradores encaminharam ao juízo as certidões que confirmaram a falta de idoneidade do Relint 499. Eles suspeitam da existência de mais relatórios com problemas.

O Relint, que até ser encaminhado aos procuradores era mantido sob sigilo, foi considerado “inidôneo e duvidoso, além de possuir forte caráter emocional”, no final de 2008, como informou agora, em uma destas certidões, o Setor de Inteligência Policial (SIP) da Superintendência. Na época, ele foi classificado de “B-3”, o que na codificação dos setores de inteligência significa de “credibilidade mínima”.

Falcão se desentendeu com Gioia ao ocupar a corregedoria desde final de 2009. Um dos motivos foi a Sindicância 76/2009, que investigava possíveis irregularidades no credenciamento de psicólogos pela Superintendência Regional da PF no Rio para avaliarem os candidatos ao porte federal de arma de fogo. Entre os contratados estava a psicóloga Angélica Fernandes Gioia Enne Aded, irmã do superintendente. Falcão, atendendo ao parecer do delegado Márcio Derene, manifestou-se contrário ao arquivamento do caso. Nas férias de Gioia, porém, o delegado Nivaldo Farias de Almeida, como superintendente em exercício, mandou arquivar o caso, não acolhendo o despacho da Corregedoria.

Também foi motivo de desentendimento a instauração de um inquérito contra dois vigilantes que foram à Polícia Federal pedir porte de arma com uma apresentação assinada pelo procurador da República Orlando Cunha, desafeto do então superintendente. Gioia queria a abertura da investigação, mas a Corregedoria opinou contrariamente pela inexistência de justa causa. Instaurado o inquérito, a delegada que o presidiu propôs seu arquivamento por considerar que o “fato era atípico”. Depois, ela perdeu o cargo de chefia no Núcleo Operacional da Delegacia de Combate aos Crimes Fazendários.

Para completar, no caso de uma delegada que ocupou cargo de assessoria na Superintendência, a Corregedoria opinou pela instauração de sindicância para apurar a utilização de carro oficial para se deslocar entre a delegacia do Aeroporto e sua residência, e vice-versa, quando estava lotada naquela dependência. A sugestão foi recusada e o expediente foi arquivado. Ao mesmo tempo, foi aberto um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra um delegado que usava, com autorização judicial e o conhecimento da Coordenação Geral de Prevenção e Repressão a Entorpecentes (CGPRE) de Brasília, um carro blindado apreendido, por conta das ameaças de morte que sofreu.

O Relint 499 só foi levado à Procuradoria após o delegado Falcão, já afastado da Corregedoria e acatando convocação do Ministério Público Federal, prestar depoimento no Inquérito Civil Público 137/2009, instaurado por Freire e Seghese. O ICP tem por objetivo investigar “a possível omissão da Superintendência no combate ao crime organizado e ao tráfico de armas e de drogas”.

Falcão falou aos procuradores no dia 1º de julho de 2010. Na ocasião, fez críticas veladas à administração de Gioia por ele ter retirado pessoas da delegacia do aeroporto – “com relação ao trabalho de repressão ao tráfico internacional de entorpecentes a diminuição do número de policiais atuantes na fiscalização pode de alguma maneira ter contribuído para uma diminuição do número de apreensões e flagrantes”. Também se queixou da desativação das máquinas de Raio X que serviam na inspeção da bagagem de quem desembarcava.

Em nome do contraditório, tal como fizeram com outros depoimentos, os procuradores encaminharam ao superintendente uma cópia do que falou o delegado Falcão. Foi depois disto que o Relint considerado inidôneo teve o seu sigilo suspenso pelo superintendente Gioia e foi entregue a Freire.

Embora tivesse ouvido falar deste Relatório, oficialmente Falcão só foi ter a confirmação da sua existência no último dia 18 de março, quando a ConJur publicou a reportagem “Controle externo desata guerra judicial entre PF e MPF no Rio de Janeironarrando a briga entre o MPF e o DPF em torno dos documentos de inteligência. A reportagem citava que os procuradores Freire e Seghese, no Mandado de Segurança, esclareceram que o sigilo do Relint 499/2008 só foi suspenso por Gioia depois do desentendimento com Falcão. E comentaram que a difusão de relatórios de inteligência "não deve estar submetida a um ecossistema de conveniências e oportunidades do gestor do SIP/SR/DPF/RJ e do Superintendente Regional. A discricionariedade na difusão do Relint ofende de forma cabal o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública e os princípios da moralidade e impessoalidade que devem conduzir toda a ação de um agente público".

Mesmo antes da reportagem, como forma de dirimir dúvidas provocadas pelos boatos da existência do Relatório, o delegado Falcão requisitou certidões junto às diversas delegacias da Superintendência, questionando as informações existentes a seu respeito. Nas respostas obtidas é que sugiram as informações de que a inidoneidade do Relint fora constatada no mesmo ano em que ele teria sido redigido.

A certidão do Setor de Inteligência da superintendência registrou que o “relatório (499/2008- SIP/RJ) é proveniente de ‘fonte classificada de B3’, ou seja, documento cujo conteúdo é inidôneo e duvidoso, além de possuir forte caráter emocional, sem apontar maiores informações de materialidade”.

O mesmo documento ressalta que DIP (Diretoria de Inteligências Policial) não criou qualquer restrição à nomeação de Falcão como corregedor, por não ter considerado relevante os termos do Relint 499/2008. Em 19 de dezembro de 2008, um fax desta diretoria garantia nada constar contra o delegado nos seus arquivos, apesar de já ter conhecimento do Relint 499. Quatro dias depois, foi o Setor de Inteligência da Superintendência que atestou não haver impedimento à sua indicação para a Corregedoria.

A resposta do Núcleo de Identificação – NID/RJ – ao pedido de esclarecimento de Falcão, confirma nada constar contra ele no Sistema Nacional de Informações Criminais (Sinic). Também a Delegacia de Defesa Institucional (Delinst), o antigo DOPS, emitiu Certidão Negativa de Antecedentes Criminais e o Núcleo de Disciplina – Nudis/RJ – atestando a inexistência de Processo Administrativo Disciplinar.

“A “denúncia” anônima feita a mim e a três delegados da “safra nova” é absolutamente falsa, “plantada” por canalhas, desafetos prejudicados em seus interesses escusos, e/ou por fantoches/marionetes, e parece servir a propósitos inconfessáveis”, escreveu Falcão nos comentários à matéria publicada na Conjur em março. Ele questiona também como poderia ter ocupado um cargo de confiança do superintendente – a corregedoria – caso o Relatório de Inteligência fosse verdadeiro.

Na semana passada, de posse de todas as certidões, Falcão protocolou um requerimento ao Diretor Geral do DPF, delegado Leandro Daiello Coimbra, solicitando que o superintendente licenciado apresente provas das denúncias que imputou genericamente aos servidores, tais como: condutas deturpadas, nefastas e contrárias ao interesse público, clientelismo, uso indiscriminado de viaturas oficiais e apreendidas, sem mencionar quais seriam esses servidores, quais seriam essas condutas, quais os períodos e as providências adotadas.

Licenciado do cargo por três meses e aguardando a sua possível nomeação como adido policial da embaixada brasileira em Roma, Gioia foi procurado pela ConJur, mas seu celular deu sempre fora de área. Através da assessoria de comunicação da Superintendência, foram encaminhadas quatro questões ao mesmo:

1 – Ele, como superintendente, não sabia que o documento era inidôneo?

2 – Se desconhecia isto, por que nomeou o DPF Falcão para um cargo de confiança, havendo um relatório que o envolveria, no mínimo, por negligência?

3 – Se sabia que era inidôneo, por que encaminhou ao MP Federal como se fosse um documento sem suspeitas?

4 – Se ele foi informado que era inidôneo, mandou investigar a origem?

Até a segunda-feira (18) nem Gioia, nem a assessoria de comunicação, deram qualquer resposta ou explicação às questões colocadas.

Leia também:

18 de abril de 2011 – Controle externo desata guerra judicial entre PF e MPF

21 de março de 2011 – Delegado defende entrega de Relints ao MPF

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