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Sabesp não tem legitimidade para propor ACP

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9 de abril de 2011, 9h43

Para buscar na Justiça a defesa dos interesses da sociedade, a empresa pública precisa ter legitimidade e pertinência temática. Não basta ser uma empresa pública, mas ter como finalidade a defesa dos interesses difusos e coletivos. Esse foi o fundamento que o juiz Maurício Kato, da 21ª Vara Federal Cível de São Paulo, usou ao extinguir, sem análise de mérito, Ação Civil Pública da Sabesp contra empresas condenadas pelo chamado Cartel dos Gases.

A Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) pedia que as empresas condenados por cartel fossem obrigadas a reparar danos patrimoniais e morais sofridos pela ela e seus consumidores. A empresa pública usa gases no processo de tratamento da água. Com o sobrepreço praticado pelo cartel, os serviços prestados tiveram um acréscimo, que foi repassado ao consumidor.

De acordo com a Lei da Ação Civil Pública, são legítimos para promover a ACP o Ministério Público, a União Federal, os estados, os municípios, as autarquias, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as associações civis. No caso específico das associações civis, elas precisam ter, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

Segundo o juiz Maurício Kato, o interesse da Sabesp é individual, e não difuso ou coletivo. "A autora pretende seu ressarcimento por eventuais danos materiais e morais pela comercialização de gases industriais em regime de cartel e, ainda que esse direito subjetivo caiba a outros interessados e legitimados, o pleito não extrapola a esfera privativa de seus titulares imediatos", destacou.

Kato, em sua decisão, afirmou que a Ação Civil Pública tem a função de defender os interesses sociais, individuais indisponíveis, difusos e coletivos. E de acordo com a Constituição Federal, o Ministério Público é legítimo para usá-la. "Não ficou demonstrado o legítimo interesse jurídico da Sabesp na causa, já que sua finalidade institucional não corresponde à legitimidade para ajuizar Ação Civil Pública na defesa de direito difuso ou coletivo", disse Kato.

De acordo com o advogado Fabricio Cobra Arbex, do escritório Ferraz de Camargo e Cobra Advogados, o juiz foi rigoroso ao considerara que a Sabesp não é parte legítima para entrar com Ação Civil Pública em defesa de direitos difusos e coletivos. Segundo o advogado, ele aplicou a especificidade das associações às empresas públicas. "No caso da legitimação de empresa pública, a lei não exige a pertinência temática. Dessa forma, não cabe ao intérprete exigir o que a lei não exige, além do fato da empresa pública ter presunção de boa-fé. A diferenciação na lei foi inserida para evitar que uma associação seja constituída apenas com a finalidade de ingressar com Ação Civil Pública."

Arbex explica o Judiciário utiliza duas interpretações e o assunto ainda não está consolidado. Primeiro: a temática deve estar presente apenas para as associações, "como pretendeu o legislador a fim de evitar o uso abusivo delas", diz o advogado. Entretanto, o entendimento aplicado por Maurício Kato também é aceito, "de que as especificidades das associações também se aplicam às empresas públicas".

A reportagem da ConJur entrou em contato com a Sabesp, mas a empresa, através de sua Assessoria de Imprensa, disse que não irá se manifestar sobre o caso.

Cartel dos gases
No Cartel dos Gases, como ficou conhecido o caso no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), as fabricantes foram acusadas de dividir os clientes. Na época, inclusive, o órgão administrativo afirmou que existiam regras, nas próprias companhias, explicitando como se dariam as operações.

Em setembro de 2010, a White Martins, Linde Gases, Indústria Brasileira de Gases, Air Products Brasil, Aga e Air Liquide Brasil foram condenadas pelo Cade  por formação de cartel. Ao final das investigações, multas estratosféricas foram estabelecidas. Juntas deveriam desembolsar R$ 2,9 bilhões.

A gigante White Martins, por exemplo, foi condenada ao pagamento de R$ 2,2 bilhões, a maior multa já aplicada pelo Cade. O valor equivale ao seu faturamento bruto multiplicado por dois, já que é reincidente. O Conselho fixou as multas da Aga S.A., Air Liquide Brasil Ltda. e Air Products Brasil Ltda. em um quarto de seus faturamentos brutos, ou R$ 237,7 milhões, R$ 249,3 milhões e R$ 226,1 milhões, respectivamente.

Além das empresas, os executivos das companhias foram multados. Moacyr de Almeida Netto (AGA) foi multado em R$ 457,4 mil. Newton de Oliveira (sócio-proprietário da IBG), em R$ 84,5 mil. José Antônio Bortoleto de Campos (funcionário da White Martins), em R$ 4,4 milhões. Walter Pilão (funcionário da Air Liquide), em R$ 498,5 mil. Carlos Alberto Cerezine, Gilberto Gallo e Vítor de Andrade Perez (funcionários da Air Products), em R$ 452,2 mil. Hélio de Franceschi Júnior (funcionário da Air Liquide) não foi multado.

A Indústria Brasileira de Gases foi a única a conseguir suspender, na Justiça, a multa de R$ 6,7 milhões do Cade. No último 15 de dezembro de 2010, o juiz federal substituto Roberto Luis Luchi Demo, da 14ª Vara Federal em Brasília, acatou pedido da empresa. Na condenação, o Cade entendeu que a IBG, em uma posição retardatária, só aderiu ao esquema depois de todas as outras. Por isso, foi multada em 10% de seu faturamento bruto.

Para Fabricio Cobra Arbex, a empresa deveria ingressar com ação de responsabilidade por perdas e danos. "A Sabesp deveria ingressar com ação civil de responsabilidade por perdas e danos já que ela comprou os gases industrias para a atividade de saneamento básico, com base nas provas de existência de cartel do julgamento do Cade", finalizou.

Leia a sentença:

0000233-25.2011.403.6100 – CIA/ DE SANEAMENTO BASICO DO ESTADO DE SAO PAULO – SABESP
(SP221681 – LUCAS NAVARRO PRADO E SP053245 – JENNY MELLO LEME E SP250692 – LUIS FELIPE DE FREITAS KIETZMANN E SP078514 – SILVIA CRISTINA VICTORIA CAMPOS)
X WHITE MARTINS GASES INDUSTRIAIS LTDA
X LINDE GASES LTDA
X IBG IND/ BRASILEIRA DE GASES LTDA
X AIR PRODUCTS BRASIL LTDA
X AIR LIQUIDE BRASIL LTDA

… Trata-se de ação civil pública pela qual a autora pretende a condenação dos réus a reparar danos patrimoniais e/ou morais sofridos pelos interessados e legitimados por conta de infrações à ordem econômica e sobrepreços de cartel, além do pagamento de danos materiais.

A parte autora sustenta, em apertada síntese, que no desempenho de sua atividade institucional faz uso de gases industriais, comercializados aos milhões de toneladas pelas rés agrupadas em cartel, conforme Processo CADE 08012.009888/2003-70, com sobrepreço, fatos que caracterizam, no seu entender, danos materiais e morais a direitos individuais e homogêneos.

A inicial veio acompanhada de documentos (fls. 27/2655). Intimado, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE manifestou seu interesse em integrar o feito como assistente da autora. É o Relatório. Decido.

A autora não é parte legítima para propor a presente demanda. A Constituição Federal de 1988 atribuiu, expressamente, ao Ministério Público, a função institucional de defender os interesses sociais, individuais indisponíveis, difusos e coletivos (art. 127, caput e 129, III), notadamente pela via da ação civil pública.

Os interesses transindividuais ou metaindividuais, denominação que reúne as categorias de difusos, coletivos e individuais homogêneos, ainda não estão firmemente conceituados, mas assumem duas notas distintivas essenciais, uma no que se refere a sua titularidade e outra, relativamente ao seu objeto.

Tanto os direitos difusos, quanto os coletivos caracterizam-se pela extrapolação do campo individual, mais restrita no caso dos coletivos, pois sua amplitude está limitada aos componentes de grupo, classe ou categoria, a qual, ainda que aparentemente indeterminável, é passível de determinação. Já os interesses difusos perpassam a órbita individual a ponto de tornar inviável a identificação de seus titulares.

Diferenciam-se também pela disposição do objeto da demanda, que na hipótese dos direitos difusos não se verifica, por se tratar de interesses indisponíveis. Outrossim, os sujeitos nos interesses coletivos estão unidos por relação jurídica-base que os agrupam em classe, categoria ou grupo, enquanto nos de natureza difusa, pela própria indeterminação dos titulares, a união se dá por mero vínculo de fato.

Os direitos individuais homogêneos formam categoria cuja transindividualidade é legal e instrumental, porque nesse caso os sujeitos são determináveis, o objeto é perfeitamente divisível e disponível e os indivíduos estão unidos por núcleo comum de questões de direito ou de fato. São interesses, portanto, que assumem especial relevância social e jurídica, singularizados pelo espectro subjetivo que desenham, pois de um mesmo fato podem decorrer interesses individuais (sentido clássico), individuais homogêneos (multiplicidade de titulares de um mesmo interesse), coletivos (sentido estrito), difusos e até públicos.

O caso vertente, analisado sob o influxo dessas considerações, e, como reconhecido na inicial, não pode ser considerado como difuso ou coletivo, porque veicula pretensão de índole puramente individual, já que a autora pretende seu ressarcimento por eventuais danos materiais e morais pela comercialização de gases industriais em regime de cartel e, ainda que esse direito subjetivo caiba a outros interessados e legitimados, o pleito não extrapola a esfera privativa de seus titulares imediatos.

De qualquer sorte, a legitimidade para promover ação civil pública objetivando a defesa de direitos individuais homogêneos e disponíveis ocorre em hipóteses restritas, quando houver interesses público e social relevantes ou, no caso da lei atribuir tal legitimidade, o que não é o caso dos autos.

Por outro lado, ainda que se atribua à pretensão conotação de direito coletivo ou difuso, imperioso destacar que a parte autora não demonstrou, objetivamente, a relação de pertinência entre sua finalidade institucional e o pedido veiculado na demanda.

A interpretação literal dos artigos 5º, da Lei 7.347/85 e artigo 82, IV, do Código de Defesa do Consumidor permitiria concluir que só às associações civis exige-se o requisito da pertinência temática, entretanto, onde há a mesma razão deve-se aplicar a mesma disposição, pois as entidades da administração pública também têm seus fins peculiares, os quais, nem sempre, se coadunam com a defesa de interesses difusos e coletivos.

E esse é o caso dos autos, pois a autarquia é expressão da descentralização administrativa, de modo que desenvolve capacidade específica para a prestação de determinado serviço ou desempenho de função, como a autora que foi criada para planejar, executar e operar os serviços públicos de saneamento básico.

Não ficou demonstrado, portanto, o legítimo interesse jurídico na causa, já que sua finalidade institucional não corresponde à legitimidade para ajuizar ação civil pública na defesa de direito difuso ou coletivo.

ISTO POSTO e por tudo mais que dos autos consta, indefiro liminarmente a petição inicial, em razão de ilegitimidade parte ativa, extinguindo o feito sem resolução do mérito, nos termos dos artigos 267, I e 295, II, do Código de Processo Civil.Com o trânsito em julgado, observadas as formalidades legais, arquivem-se os autos….

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