Ideias do Milênio

"Obama só é radical no que se refere à raça"

Autor

1 de abril de 2011, 8h05

Reprodução/GloboNews
David Remnick - Reprodução/GloboNews

Se tem uma pessoa no mundo que não está decepcionada com o desempenho de Barack Obama na presidência dos Estados Unidos é o jornalista americano David Remnick, diretor da prestigiosa revista New Yorker. Por uma razão muito simples: Remnik já conhecia Obama bem antes de sua meteórica ascensão até o mais alto posto executivo do planeta. E sabia que ele é assim mesmo, desde sempre: um homem normal, que não costuma estabelecer relações pessoais mais fortes e que não tem nada de revolucionário. "Ele não é o líder de um movimento messiânico", disse o jornalista na entrevista que concedeu em … ao jornalista Jorge Pontual, do programa Milênio da GloboNews. Para Remnik a única coisa de revolucionária que existe em Obama é o fato de ter se eleito o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. "O que não é pouca coisa". 

O Milênio é transmitido pela Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça-feira, às 5h30 de quarta e às 7h05 de domingo.

Leia a seguir a transcrição da entrevista de David Remnik.

Quem é Barack Obama? Por incrível que pareça, muitos americanos dizem não saber quem é o primeiro presidente negro do país. Dizem que ele é um mistério, ou uma fraude, um muçulmano secreto ou um estrangeiro que não poderia ser presidente. Até para o grande contingente que votou nele, Obama surpreende. Esperavam que ele fosse lutar por causas de esquerda, mas ele se mostrou centrista moderado. Mas será que Obama é mesmo um enigma? O jornalista David Remnick, autor do best-seller A Ponte: Vida e Ascensão de Barack Obama prova que não, para quem o conhece. Lendo os seus livros de memórias e estudando a sua vida, Obama é um livro aberto. Sempre foi um conciliador. Exatamente por ser a ponte entre o movimento dos direitos civis e a nova geração de herdeiros de Martin Luther King; a ponte entre negros e brancos, por ser filho de mãe branca e pai negro; a ponte que quer superar a divisão entre direita e esquerda. David Remnick recebeu o Milênio na revista New Yorker, que ele dirige, para contar o que descobriu ao escrever sua detalhada e exaustiva biografia de Obama

Jorge Pontual — Você escolheu a metáfora da ponte para Obama porque ele é a ponte entre Martin Luther King e a nova geração, a ponte entre negros e brancos. Então ele pode avançar a questão da raça, mas isso também o torna a pessoa que cede, o mediador, o conciliador, não é?
David Remnick — Sim, ele é um político. Ele não é o líder de um movimento messiânico, não… Ele não é Martin Luther King. Só abrindo um parêntese: eu diria que a coisa mais radical a respeito de Barack Obama, na verdade, a única coisa radical, é ele ser um afro-americano que chegou à presidência dos EUA. Isso foi uma ruptura radical na continuidade da presidência dos EUA, que era de branco anglo-saxões protestantes com exceção de um católico, John Kennedy. Essa ruptura radical foi como uma ponte, para usar uma metáfora, atravessando nossa mais dolorosa ferida histórica, como no Brasil: a questão da raça, a saga da raça, desde os escravos, os movimentos pelo direito civil etc. Essas coisas não se resolvem de uma só vez, elas são resolvidas através de avanços, quer seja a guerra civil, a Reconstrução, os movimentos pelo direito civil ou a eleição de Obama para presidente. Então a metáfora é nesse sentido. Se acho que ele é conciliador e busca meio-termos? Acho que todos os políticos de sucesso, políticos que ocupam cargos eletivos são assim. Se alguém acreditava que Barack Obama assumiria o cargo como se fosse Martin Luther King, ou algum tipo de político radical, estava certamente enganado. Ele é um homem de centro-esquerda, está em sintonia com o Partido Democrata, em termos de políticas, o aspecto radical dele é a questão da raça. E essa questão quase desapareceu desde a eleição. 

Jorge Pontual — Eu não sabia quase nada sobre a mãe de Obama antes de ler seu livro. Ela não é o personagem mais fascinante da história dele?
David Remnick — Acho que o próprio Obama é o personagem mais fascinante. Mas a mãe… Eu pensei… Não sei o que você acha, mas, na eleição, ela foi mostrada como uma hippie sentimental. Usando saias estampadas, no estilo de uma hippie que ouve Mammas & the Papas, Beatles

Jorge Pontual — Um pouco por fora das coisas.
David Remnick — É, um pouco ingênua. Até a descrição dela nas memórias do Obama dá pouca atenção a ela, eu acho. Quanto mais descobri sobre ela… Eu li a tese de doutorado dela de 1.000 páginas, conversei com a meio-irmã de Obama e muitos amigos… Ela, na verdade, é uma pessoa muito interessante, intelectualizada, que fez coisas radicais. Aos 17 anos, ela se casou com um africano negro, se divorciou dele pouco depois de ter um filho, se casou com um indonésio. Por anos, morou várias vezes na Indonésia, se envolveu com assuntos que estavam à frente do seu tempo, a conquista do poder pelas mulheres do Terceiro Mundo, microcrédito, um programa que agora tem seus problemas… Ela era fascinante e morreu muito jovem, com 50 e poucos anos. E eu acho que ela influenciou fortemente Obama.

Jorge Pontual — Como?
David Remnick — Acho que, pelo idealismo dela, por seu cosmopolitismo, pela sofisticação intelectual. Isso é muito raro nos nossos presidentes. Quantos presidentes dos EUA moraram no exterior ou tiveram esse tipo de vivencia internacional? Muito poucos. E Obama, quando fez faculdade, não procurou apenas um certo tipo de amigos. Seus melhores amigos eram indianos, paquistaneses, negros e brancos de todo o mundo. Isso faz parte dele.

Jorge Pontual — Ela também o incentivou a se ligar à história afro-americana?
David Remnick — Pois ela não podia fazer isso por ele. Lembre que Obama cresceu no Havaí. O Havaí é um lugar muito singular e especial. É um lugar que se considera como multicultural. Com chineses, japoneses… Principalmente, asiáticos. Mas ele não tem um importante componente americano: os afro-americanos. Os afro-americanos que moram no Havaí, quase em sua totalidade estão em bases militares. Obama estudou numa escola particular extremamente sofisticada, chamada Punahou, que é como se a Escola de Eton ficasse à beira mar, algo assim, e ele era um dos poucos alunos afro-americanos e estava perdido. Ele voltava para casa à noite, para sua mãe branca ou, quando ela estava na Indonésia, para seus avôs brancos. Mas, quando ele olhava no espelho, via que era afro-americano. Ele teve que aprender lendo, viajando, arranjando novos amigos, saindo do Havaí, o que era ser afro-americano. E a maioria de nós aprende sobre sua religião ou etnia na mesa de jantar, isso existe em casa. Não foi assim para Obama.

Jorge Pontual — O pai de Obama era uma figura trágica. Ele parece um fantasma na vida de Obama, mas, ao contrário de Hamlet, Obama não virou uma pessoa em conflito. Como ele se reconciliou com esse fantasma?
David Remnick — É uma boa pergunta. Uma coisa interessante que é preciso saber sobre o pai de Obama é que Obama nunca o conheceu realmente. O pai de Obama o abandonou quando ele era criança e, quando Obama tinha 10 anos, o pai voltou para o Havaí por dez dias. Isso é tudo. 

Jorge Pontual — E não foi uma boa visita, não é?
David Remnick — Foi uma visita extremamente pesada. Acho que foi tensa e… O pai de Obama chegou como se fosse do espaço e tentou impor todo tipo de ideias e restrições. Foi um fracasso. Então Obama conheceu o pai principalmente pelo ponto de vista da sua mãe. E a mãe queria contar a melhor história possível. Aliás, o pai de Obama era muito inteligente. Ele achou que seria um dos líderes do Quênia pós-colonialismo, mas fracassou. Ele era muito sincero, mas nunca realizou completamente suas ambições. Ele brigou com os detentores do poder, tornou-se um alcoólatra. Era um pai violento nas famílias que teve depois, era um péssimo marido… Foi um fracassado e morreu num acidente de carro. E Obama nunca conheceu toda a história dele até depois de ele morrer, até ele ir ao Quênia, conhecer sua família, e eles contarem a verdadeira história. Se o pai de Obama ajudou a formar o caráter dele, foi dando um contraexemplo, não um exemplo. Os livros direitistas, completamente equivocados, na minha opinião, que são publicados agora nos EUA…

Jorge Pontual — Como Dinhesh D’Souza?
David Remnick — É, como o livro dela. Eles fingem de algum modo… Eles querem retratar o próprio Obama como um radical. Se o pai gostava do socialismo, dizem que ele era socialista. Coisa que, no vocabulário político dos EUA, é um pecado mortal. O pai era indisciplinado, obcecado pelo colonialismo etc. Por isso, o filho também deve ser assim. “Os filhos pagarão pelos pecados do pai.” Isso é absurdo. 

Jorge Pontual — Mas o livro dele se chama, em inglês, Sonhos do Meu Pai. Ele tenta se reconciliar com isso.
David Remnick — Acho que todos tentamos. A maioria de nós, se tem sorte, tem um pai presente e aprendemos pelo exemplo dele, temos lembranças do nosso pai com as quais podemos construir algo. Obama teve que praticamente pesquisar isso. 

Jorge Pontual — Não é apropriado que Obama, que criou sua própria identidade, inventou sua própria história, tenha chegado ao momento mais importante da sua vida quando escreve sua autobiografia aos 30 e poucos anos?
David Remnick — Bem… Primeiro, acho que, até certo ponto, todos nós inventamos nossa identidade. O caso de Obama é mais profundo. Acho que Obama, como eu disse, teve que descobrir o que a maioria de nós descobre em casa. Então ele foi ler Malcom X, Richard Wright e James Baldwin. Ele conhece a música, foi para Los Angeles fazer faculdade e conheceu mais jovens negros. Na Universidade de Columbia, entrou numa comunidade maior.

Jorge Pontual — O basquete foi importante para ele.
David Remnick — Sim, foi.

 Jorge Pontual — Jogar com outros jovens negros.
David Remnick — Mas, se formos comparar, basquete é coisa de criança, é um jogo. Então ele aprende o modo de falar, o jeito tradicional do basquete americano. Mas acho que só quando ele vai morar no sul da cidade de Chicago, que tem uma população quase totalmente negra. No começo, ele era líder comunitário. E lá ele encontrou um lar, um comunidade, uma igreja, sua identidade racial e uma esposa… Foi lá que tudo aconteceu. 

Jorge Pontual — Foi se casando com Michelle Robinson que ele se torna plenamente um homem negro?
David Remnick — Novamente, acho que isso acontece em etapas. Não posso falar com autoridade sobre a vida interior de Barack Obama aos 21 anos. Acho que quem tenta fazer isso é um impostor. O que posso fazer é falar com base nas provas que conheço, no grande número de entrevistas que fiz, nas entrevistas com o Obama, das leituras que fiz. Fica claro que, para si mesmo, Obama já tinha resolvido essa busca, esse dilema, quando ele tinha 20 anos.

Jorge Pontual — Obama era um político pequeno de Illinois, foi senador do estado, odiou isso. E, em 2004, quando concorreu ao senado federal, a vida dele mudou. E isso, em grande parte, foi por sorte.
David Remnick — Nem tenho como começar a explicar quanta sorte Barack Obama teve na sua carreira política. Ele era um senador do estado. É difícil explicar exatamente para o público brasileiro como esse cargo é inferior na hierarquia política. Cada estado tem seu próprio senado, seu próprio legislativo. Ele não era só um senador do estado, ele era do partido minoritário.

Jorge Pontual — E era novato.
David Remnick — Ficava coçando a cabeça a maior parte do tempo e se entediando. Viajando para Springfield, em Illinois. Longe da sua jovem esposa, que ele adorava. Sua esposa estava muito irritada por ele estar fazendo isso. Ele não ganhava muito dinheiro. Ele tinha sido o primeiro da classe de Direito de Harvard, poderia ter feito qualquer coisa. Isso era um ingresso para fazer parte da elite do país. E ele era senador do estado de Illinois. Daí ele perdeu a eleição para o congresso em 2000. E então concorreu ao senado federal em 2004. Havia muitos candidatos. Ele não tinha chance. Com certeza, não era um favorito. O candidato principal dos democratas perdeu por causa de um divórcio e escândalo sexual. Obama ganhou a eleição interna do Partido Democrata. O candidato republicano, que era muito forte, teve os papéis de seu divórcio revelados. E ele tinha obrigado a esposa, usando a força, pressionando-a, e ir a um clube sexual francês. Foi o fim da eleição! E Obama ganhou tranquilamente. No mesmo instante… No mesmo dia em que ele foi eleito senador federal, no seu primeiro dia no cargo, na primeira coletiva de imprensa, todas a perguntas eram sobre o mesmo tema: “Quando você vai concorrer à presidência?”

Jorge Pontual — Ele já tinha sido o astro da convenção democrata, não é?
David Remnick — Tinha feito um discurso que o tornou importante nacionalmente por uma noite.

Jorge Pontual — Foi um discurso incrível.
David Remnick — Foi ótimo.

Jorge Pontual — Chamou-se: “Animado”.
David Remnick — “Animado. Estados vermelhos e azuis”, blábláblá. Mas foi um discurso! Não havia nem 5 minutos que ele estava no nível nacional da política quando perguntaram da presidência. 

Jorge Pontual — Ele virou uma celebridade.
David Remnick — É. É a melhor descrição, virou uma celebridade política. Não se podia dizer que ele tinha realizado algo. Aliás, ele se cansou logo de ser senador federal e passou a maior parte do tempo, em que esteve no Senado, escrevendo um livro. E esse livro se tornou uma ferramenta para começar a campnha nacional, estou falando do segundo livro.

Jorge Pontual — A Audácia da Esperança.
David Remnick — Exatamente. Ele o escreveu à noite. Como você sabe, nos EUA, se você vai se candidatar a presidente, precisa ter um livro publicado. Ele se torna o seu cartão de visitas,a projeção da sua personalidade, assim como das suas políticas. O livro é inferior ao primeiro, pois é mais cauteloso, mais cuidadoso. Mas é claro que foi uma ferramenta para começar a campanha nacional. E foi isso que aconteceu. Ele fez a turnê de lançamento do livro, viu como era popular, lançou sua candidatura contra a família mais poderosa do Partido Democrata há gerações, e ganhou de Hillary Clinton.

Jorge Pontual — Naquela época, como li no seu livro, um dos auxiliares de Obama disse que ele não sabia receber um golpe como um boxeador recebe e supera isso. Como Muhammad Ali, e você escreveu a biografia de Muhammad Ali. Qual é a analogia aí?
David Remnick — A analogia é que certos boxeadores têm o chamado “queixo de vidro”. Ou seja, assim que levam um soco, vão a nocaute, ficam acabados. Obama, como um ser humano normal, como você e eu, se alguém falasse mal dele, isso o irritava muito mexia com ele. E você não pode se dar ao luxo de ser normal na política nacional, precisa ser um tipo de aberração.

Jorge Pontual — Ser muito insensível.
David Remnick — Muito. Não pode ter “queixo de vidro”, misturando inúmeras metáforas. Ele teve que aprender isso devagar, teve que descobrir se era Floyd Patterson, que tinha “queixo de vidro”, ou Muhammad Ali, que sabia sobreviver. 

Jorge Pontual — Por causa da recessão, a situação dos afro-americanos piorou depois que Obama foi eleito. O que realmente mudou na questão da raça fora os brancos se sentirem melhor porque elegeram o primeiro presidente negro?

Reprodução/New Yorker
Barack Obama e David Remnick - Reprodução/New Yorker David Remnick — Acho que as coisas pioraram, durante a recessão, para as pessoas de origem hispânica, brancas, negras, etc. A recessão não tem uma raça como alvo. Sem dúvida, a proporção é maior… Mas, historicamente, há uma proporção bem maior de negros entrando na classe média e classe média alta. Vamos ser historicamente equilibrado sobre o tema. Acho que o maior avanço é o simples fato de ele ser presidente. E, se você tivesse 10 anos e fosse um garoto negro no colégio, a percepção dos seus horizontes teria mudado por causa disso. Isso é sério. É importante. Uma criança perceber que alguém da sua cor pode fazer qualquer coisa… É isso que ser presidente dos EUA significa. Você pode virar bilionário, presidente… Essas coisas foram alcançadas, mas isso não é tudo. As prisões estão cheias de rostos negros de forma desproporcional, para dizer o mínimo. Os pobres ainda são desproporcionalmente não brancos. As escolas ruins são, desproporcionalmente, as de não brancos etc. Então há muito que fazer. Não apenas em relação à raça, mas em relação às classes e à desigualdade. Uma coisa que agrava isso é o aumento radical do desequilíbrio na renda e na riqueza, da desigualdade. O valor que os diretores executivos ganham agora comparado com o que ganhavam antes, nas empresas americanas, mudou bastante. Isso não passa despercebido para quem está sofrendo, para quem está desempregado. Não sou comunista ou socialista, nem chego perto de ser. Mas esse tipo de desequilíbrio radical tem um impacto sociológico, psicológico, e acho que tem um efeito desmoralizante.

Jorge Pontual — Mas não é uma sociedade “pós-raça”, como muitos disseram?
David Remnick — Não, isso é absurdo. E Obama seria o primeiro a dizer isso. “Pós-raça” quer dizer… Acho que o seu país, de formas diferentes, já teve esse tipo de diálogo, usando um termo educado. Acho que isso é sonho.

Jorge Pontual — Quais são as chances da reeleição de Obama? E que lugar você acha que ele terá na história dos EUA?
David Remnick — Bem, são duas perguntas diferentes. Sobre a primeira, quais as chances de ele ser reeleito… Olhe, não sou jogador, sou jornalista, mas se quiser que eu faça uma aposta rápida, acho que as chances dele são boas. Porque é fácil ver qual é a desvantagem dele: é o índice de 9,5% de desemprego. Por tudo que significa, é a maior desvantagem. Mas vamos supor que as previsões estejam certas e a economia vai melhorar devagar, mas de forma contínua. Agora houve uma retirada de tropas do Iraque. Vamos torcer para que essa seja a tendência no Afeganistão. Se essas duas tendências gerais se mantiverem, ainda não vejo um concorrente eletrizante para enfrentá-lo. Não vejo Sarah Palin assim, pois seus pontos negativos excedem muito os positivos. Ela tem uma base forte, mas a rejeição é bem mais forte. Mitt Romney é excepcionalmente desanimador. E há outros caras. Então acho que a chance de reeleição… Não apostaria minha casa, mas acho que há uma boa chance. O que a presidência dele significa? Não tenho ideia. Ele está há dois anos na presidência e há uma boa chance de ele ser presidente por oito anos. Acho que as previsões não têm…

Jorge Pontual — Ele chegou prometendo mudança.
David Remnick — Nós a conseguimos. Nós não viramos a França, nem a Suécia, nem o Brasil, mas, dentro do contexto da política americana desta era, estender a saúde pública a 30 milhões de pessoas é uma grande mudança. Resgatar o país de uma depressão é uma conquista enorme. Salvar a imensa indústria automobilística dos EUA, que estava à beira do colapso total, assim como os empregos dela, é uma conquista grandiosa. Avançar na questão dos direitos dos homossexuais, ser negro e se tornar presidente, fazer tudo isso em dois anos é muito significativo. Não é tudo. Não é um nirvana “pós-raça”. Acho que ele cometeu erros em coisas como direitos humanos em Guantánamo. Tenho muito a dizes sobre isso. Mas, considerando o todo e comparando com o tormento dos oito anos anteriores, eu tenho otimismo de sobra. 

Jorge Pontual — O que não ficou claro para mim é a relação dele com o cristianismo, como ele se envolve com a igreja do reverendo Jeremiah Wright. Essa história toda não está clara para mim.
David Remnick — A história é a seguinte: quando o Obama era jovem, ele era líder comunitário, e os líderes dependem muito das igrejas porque são as instituições oficiais mais organizadas em certas comunidades, principalmente no sul de Chicago. E em todo lugar aonde ele ia, as pessoas perguntavam: “De qual igreja você é?” E ele meio que fugia da pergunta. E ele acabou se interessando por Jeremiah Wright, pois Jeremiah era progressista na política, ajudava pacientes de aids, mandava crianças para a África de viagem. Ele era uma presença vibrante no sul de Chicago e ele era uma espécie de intelectual. Isso atraiu Obama. Mais uma vez, posso entrar na cabeça de Obama e ver até que ponto ele era um homem religioso? Não. Ele nos diz que é, lê a Bíblia, isso faz parte dele, e eu aceito isso plenamente. Além disso, na igreja de Jeremiah, havia uma mistura de pessoas. Tinha pessoas pobres, da classe média baixa, da classe média, gente que ganhou dinheiro suficiente para sair do sul da cidade e viver nos subúrbios, mas aos domingos ia à igreja de Mercedes ou BMW. Obama gostava dessa diversidade na comunidade, isso o atraía. Acho que Jeremiah Wright o interessou não só espiritualmente, mas também intelectualmente e no sentido de encontrar um lar, uma comunidade.

Jorge Pontual — Mas a teologia da libertação negra de Jeremiah Wright não é realmente a ideologia de Obama, é?
David Remnick — Vamos explicar o que é a teoria da libertação negra. É uma mistura de, digamos, Martin Luther King e Malcom X. Uma mistura de cristianismo e das políticas do fim dos anos 60, da individualidade e da autoafirmação negra. Lembre que Obama é bem mais novo que Jeremiah Wright. Barack Obama recebeu os frutos dos movimentos pelos direitos civis. Ele teve acesso a instituições que a geração anterior não teve. Ninguém o incomodava em uma lanchonete. Ele entrou na faculdade Ocidental, estudou Direito em Harvard. Ele provavelmente se beneficiou, como ele mesmo admite, das políticas de ação afirmativa. Ele não tinha notas muito altas no colégio. Quando se fala de raça nos EUA, é preciso também situar a discussão no tempo, situar dentro do contexto de onde se está no tempo. E Obama é da minha geração, viveu após os movimentos pelos direitos civis. Isso é importante. Enquanto Jeremiah Wright é da geração desses movimentos, é da geração de Jesse Jackson, de Martin Luther King, de uma geração de políticos negros que nunca conseguiria chegar à presidência.

Jorge Pontual — A popularidade de Obama aumentou depois que o partido dele perdeu a eleição. Isso também aconteceu depois do discurso dele em Tucson sobre o tiroteio que aconteceu lá. Ele conseguiu, como normalmente consegue, expressar o que os americanos querem ouvir do presidente. Ele está ficando mais forte?
David Remnick — Espero que sim. Meu trabalho como jornalista não é apoiar ou não alguém, não vejo meu trabalho assim. Meu trabalho, como editor e escritor também, é descobrir o que é verdade e revelar isso às pessoas, refletir sobre os temas e analisá-los. Eu não estou aqui para aprovar ou desaprovar alguém. Isso é idiotice. Mas eu acho que ele teve um êxito substancial nos seus próprios termos, nos primeiros dois anos. No sistema de saúde, no resgate da indústria automobilística, em, pelo menos, resgatar a economia de uma situação muito pior que a atual, apesar de ser difícil ser reconhecido por isso. E ele tem capacidade e êxito para divulgar os seus sucessos. E a forma como ele estava divulgando isso na campanha de 2008 foi surpreendentemente malsucedida.

Jorge Pontual — Por quê?
David Remnick — Eu não sei. Isso me espantou. Lembro que uma noite ele gravou um discurso no Salão Oval, o que é muito raro, pois ele é reservado para ocasiões muito importantes. E o discurso era para anunciar que, finalmente, haveria uma retirada expressiva de tropas do Iraque. Como diria George Bush: “Missão cumprida”. Mas só Deus sabe… Só Deus sabe como essa missão foi mal concebida, para começo de conversa. E foi um discurso horrível. Foi o tipo de discurso feito por comitês, tinha de tudo no discurso. Tentou agradar todo mundo, abordou todo tipo de assunto… Não havia clareza nem ligação emocional. Foi um discurso tímido e… Simplesmente não funcionou. Enquanto o discurso em Tucson, na hora de uma verdadeira tragédia em que as pessoas presentes no local e em casa precisavam de várias coisas: de consolo, da sensação de reconciliação, de superação… Ele foi emocionalmente, claro, corajoso e sincero. Acho que a popularidade dele, para ser franco, subiu vertiginosamente. No mesmo dia, Sarah Palin divulgou uma declaração em vídeo que foi o extremo oposto, foi um desastre. Eu acho que Obama ganhou muito com esse contraste entre ele mesmo e a… Não acho que ela seja a candidata favorita, mas, com certeza, ela é a personagem mais forte dentro da diversidade de políticos republicanos. 

Jorge Pontual — Obama é capaz de reagir nos momentos de crise, mas muitas pessoas dizem que ele não é um lutador. Bill Maher, por exemplo, diz que o branco que há dentro dele o segura. Mas você não concorda, diz que ele é um “lutador frio”. 
David Remnick — Bill Maher é um comediante e um provocador, esse é o trabalho dele. Mas, como analista político sério, desculpe… Antes de mais nada, dizer que o branco o está segurando é idiotice. 

Jorge Pontual — Mas o que é “um lutador frio”? Você o chama assim.
David Remnick — Foi muito interessante. Na campanha, houve hora em que os partidários dele diziam: “Por favor! Não aguento a sua tranqüilidade. Quero que você fique com raiva da Hillary.” E ele venceu. Todo mundo sempre vai dar conselhos contraditórios. Acho que Obama sabe quem é. Às vezes, o que parece ser fraqueza é um ponto forte dele. Ele simplesmente é assim. Ele não vai ser alguém que fica berrando e gritando, que incita os outros. A personalidade dele não é essa. Também não acho que ele seja acolhedor. Se você quer saber dos defeitos do Obama, acho que um defeito claro dele é não ter uma relação íntima com líderes estrangeiros. Vamos pegar, por exemplo, Bill Clinton. Bill Clinton, durante a presidência, teve uma série de relações sérias, relações políticas, ele não os estava namorando, com Yitzhak Rabin, Helmut Kohl, Tony Blair… E essas relações eram importante. Como Franklin Roosevelt e Churchill. Quer dizer, relações políticas são importantes. Algum líder estrangeiro acha que tem essa afinidade com Obama? Alguém do Brasil acha que tem? Alguém na Europa? Da América Latina ou de qualquer outro lugar? Obama não é hostil quando você o conhece. Ele não é extremamente arredio, mas ele tem certo acanhamento.

Jorge Pontual — Timidez?
David Remnick — Não, não é timidez. Ele não é tímido. Você não vira o presidente dos EUA sendo tímido. Você tem que ser muito duro de uma forma ou outra. Tornar-se presidente dos EUA é um processo muito difícil. Sem querer ser ridiculamente engraçado, Clinton era alguém que acolhia as pessoas. Esse é seu grande talento de certa forma, e foi o que o deixou em apuros. Obama não é assim. 

Jorge Pontual — Nosso ex-presidente tinha uma boa relação com Bush e ficou decepcionado porque não teve isso com Obama. Principalmente quando ele ofereceu ajuda ao Irã para tentar negociar algum tipo de diálogo. Coisa que o Obama tinha prometido na campanha. O que aconteceu?
David Remnick — Primeiro, Lula não devia ter levado isso para o lado pessoal, pois não existiam outras relações políticas em que Obama fosse caloroso com ninguém. Ele é correto. Suas relações com líderes estrangeiros são corretas, serenas. Quando se trata do Irã, as coisas mudam totalmente. Não acho que os EUA estejam preparados para mudar a visão que fazem de si e do mundo, mesmo que a percepção do mundo seja multipolar, como deve ser, e ver um diferente centro de poder lidando de forma independente com um assunto como o do Irã. Principalmente se considerarmos as particularidades da liderança iraniana. Eu acho que os americanos encararam esse acordo negociado separadamente com temor.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!