Justiça nos quadrinhos

A visão dos quadrinhos sobre o mundo da Justiça

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28 de setembro de 2010, 15h36

Zeenat Mansoor
Super-heróis na corte! A lei e as revistas em quadrinhos” Exposição na Galeria de Exibição de Obras Raras Lillian Goldman da Bibilioteca da Escola de Direito da Universidade Yale - Zeenat Mansoor

A Galeria de Exibição de Obras Raras Lillian Goldman da Bibilioteca da Escola de Direito da Universidade Yale (New Haven, Connecticut) abriu, semana passada, uma mostra peculiar para os rígidos padrões de seleção que orientam a curadoria do material usualmente apresentado na área de exposições da biblioteca.

Ocupada quase sempre com a exibição de exemplares de obras e documentos raríssimos da história do Direito e do sistema de Justiça nos Estados Unidos, a galeria abrigará em suas dependências, por mais de três meses, a mostra “Super-heróis na corte! A lei e as revistas em quadrinhos”. Trata-se de uma exposição de quadrinhos raros em que a Justiça é o tema central.

Mike Widener, o bibliotecário que dirige a área de obras raras da biblioteca, convidou Mark S. Zaid, um promotor de Washington D.C. e colecionador de gibis que valem uma fortuna, para organizar a mostra, dispondo, para tanto, de parte da coleção pessoal de Zaid. Ambos resolveram usar justamente a gigantesca e sisuda biblioteca da renomada Escola de Direito de Yale para expor o material. O promotor está convencido de que, no imaginário da sociedade, a relação entre histórias de super-heróis e nossas concepções sobre Justiça é mais estreita do que a maioria de nós percebe.

Zeenat Mansoor
Super-heróis na corte! A lei e as revistas em quadrinhos” Exposição na Galeria de Exibição de Obras Raras Lillian Goldman da Bibilioteca da Escola de Direito da Universidade Yale - Zeenat Mansoor

Widener e Zaid são eloquentes quando se trata de argumentar que histórias de cruzados-de-capa que combatem o crime correspondem à mais ampla representação do sistema de Justiça na cultura popular, mais do que no cinema ou em qualquer outra forma de arte e entretenimento.

Mesmo para quem não leu quadrinhos na infância e não é estudante ou profissional de Direito, a mostra chama a atenção logo na entrada da galeria. Primeiro, pelas datas de publicação dos gibis. Os exemplares mais antigos são da década de 1930 e estão em um estado de conservação impressionante. Em segundo lugar, pela quantidade de histórias dedicadas a cenas de tribunais, a juízes, a advogados, promotores e a situações de depoimentos de testemunhas. Diversas das capas estampam super-heróis em audiências, dividindo a cena com criminosos e o júri.

O acervo da bibilioteca da Escola de Direito de Yale é considerado um dos melhores e mais completos do mundo por abrigar raridades dos cinco continentes sobre Direito e Justiça. Até 16 de dezembro próximo, tomos de tratados jurídicos em latim, originais de processos judiciais históricos e edições raras de autoria de juristas consagrados vão dividir o espaço com a impressionante coleção de gibis do promotor Mark S. Zaid.

O retrato de advogados e da Justiça pintado pelos quadrinhos norte-americanos, alguns deles de mais de sete décadas atrás, vai da ingenuidade, do maniqueísmo passando pelo humor e ironia para com o sistema. Na coleção de Zaid, há até mesmo publicações em que advogados e promotores estão em primeiro plano, são protagonistas e não apenas aliados ou parceiros de policiais e super-heróis.

É o caso do gibi “Crime Exposed” (Crimes expostos). Uma das edições apresentadas na mostra, de fevereiro de 1951, traz a história de promotores de Nova York que levam aos tribunais uma dupla de criminosos conhecida como “Cachorros loucos”. Na capa, um texto provocador explica que, depois de enfrentarem o juiz e o júri, os bandidos estariam mais para “cachorros mansos”. Há também as histórias de “Crime Detective Comics” (Quadrinhos de crimes e detetives), do final da década de 1940, que apresentavam enredos baseados em “casos policiais e  julgamentos verídicos”.

A exibição traz ainda publicações que celebram o heroísmo de advogados e promotores, os convertendo em verdadeiros protetores da sociedade. A revista em quadrinhos “Mr. District Attorney” (Senhor Promotor), em circulação nos anos 1940, trazia um promotor mascarado que, além do expediente no tribunal, combatia o crime também nas ruas. O gibi era baseado num popular programa de rádio, criado por um ex-estudante universitário de Direito, que foi ao ar entre 1939 e 1942.

Zeenat Mansoor
Super-heróis na corte! A lei e as revistas em quadrinhos” Exposição na Galeria de Exibição de Obras Raras Lillian Goldman da Bibilioteca da Escola de Direito da Universidade Yale - Zeenat Mansoor

As obras exibidas na mostra incluem ainda revistas como “The Defenders” (Os defensores), que circulou nos anos 1960, baseada numa série televisiva que mostrava pai e filho, ambos atuando como advogados de defesa trabalhando em casos complexos para auxiliar vítimas desfavorecidas. Não exerciam o Direito simplesmente, dedicavam-se a longas investigações sobre os casos em que se debruçavam. Eram uma espécie de ‘advogados-detetives’.

“The Young Lawyers” (Os jovens advogados), também presente na mostra, publicada nos Estados Unidos durante os anos 1970, apresentava a rotina de um escritório de advocacia e as aventuras de uma equipe de advogados no início de suas carreiras.

Algumas das revistas trazem também super-heróis populares como Super-Homem e Hulk envolvidos em situações de tribunal. Na verdade, é surpreendente o número de gibis voltados ao público infanto-juvenil dedicados ao mundo dos tribunais. A capa da edição de número 359 da revista “Action Comics”, de 1967, traz o Super-Homem sentado no banco dos réus, sendo acusado por uma menina de ter assassinado o seu pai. O título desta história: “O caso do povo contra o Super-Homem”. Há ainda o Hulk em uma edição da revista “O incrível Hulk” de 1972, esmagando uma sala de audiência e partindo para cima do juiz depois de desaprovar sua sentença de condenação.

Direitos autorais e censura
Além de gibis, a mostra também exibe documentos raros de cunho legal e jurídico que revelam os bastidores de disputas de direitos autorais por trás do mercado de quadrinhos e as campanhas de censura e perseguição sofridas pelas publicações.

Os artistas que criaram o Super-Homem (e por conta disso acabaram fundando toda uma indústria) passaram a vida brigando em tribunais pelos direitos do personagem que inventaram. Jerry Siegel e Joe Schuster, que lançaram o Super-Homem nos anos 1930, viriam a conquistar legalmente o direito de serem creditados como criadores somente em 1975.

A mostra apresenta a correspondência original datilografada e assinada por Jerry Siegel, de 24 de março de 1941, reclamando novamente ao seu editor, Jack Liebowitz, o uso do personagem sem qualquer menção de crédito ou pagamento de direitos autorais.

Jerry Siegel, ao longo de toda sua vida, levou a cabo inúmeras ações judiciais contra a editora DC Comics e a Time Warner, proprietárias dos direitos de uso de imagem do super-herói até hoje. Após a morte de Siegel em 1996, os herdeiros seguiram com muitas dessas ações. Há processos em curso até hoje. Os descendentes de Siegel reclamam, por exemplo, a autoria do personagem Superboy, que também teria sido criado por Jerry Siegel e rejeitado pela editora antes do artista servir ao exército e partir para a Europa ao ir lutar na 2ª Guerra Mundial. Enquanto Siegel servia na Europa, a editora publicou a primeira história com a versão mirim do Super-Homem.

Em março de 2006, o juiz federal Ronald S. W. Lew concedeu o ganho de causa à família Siegel. A Warner Bros. e a DC Comics entraram então com recurso e ajuizaram uma moção em janeiro do ano seguinte. Em julho de 2007, outro juiz federal, que substituía Lew, revogou a primeira sentença.

São disputas de décadas que iniciaram tão logo o Super-Homem apareceu em revistas. A mostra em Yale expõe também um telegrama do editor Jack Liebowitz a Jerry Siegel, datado de abril de 1939. Na breve correspondência, o editor tentava convencer o artista a depor em uma audiência do processo que a DC Comics movia por plágio contra uma editora concorrente que lançara um personagem muito parecido com o Super-Homem.

Nos anos 1940 e 1950, os quadrinhos nos Estados Unidos enfrentaram ondas de censura e ataques puritanos. Estudos assinados por psiquiatras sugeriam que os gibis comprometiam o desenvolvimento cognitivo dos jovens. Comissões formadas por senadores e deputados publicaram documentos tentando motivar a criação de leis que organizassem o mercado que crescia. Todo esse movimento acabou originando as regras do “Comics Code Authorithy”, uma espécie de selo de permissão que vigora até hoje. O selo foi criado pelas próprias editoras que se auto-censuram, evitando assim interferências do governo. As revistas em quadrinhos precisam deste selo para circular embora ele não tenha validade legal.

Dois documentos particularmente significativos estão expostos na biblioteca da Escola de Direito de Yale. O texto da “Comissão de Senadores sobre Revistas em Quadrinhos e Deliquencia Juvenil”, de 1955, e em contrapartida, outro documento da “União das Liberdades Civis” sobre a censura inapropriada aos quadrinhos, do mesmo ano.

O bibliotecário-chefe Mike Widener acredita que compreender como a cultura popular vê o sistema de Justiça de um país é algo que deveria interessar a todo estudante de Direito ou profissional da Justiça. A ideia para organizar a exposição surgiu ao “constatar o quanto os quadrinhos, ao longo das décadas, reiteraram os interesses das instituições”, disse Widener em razão da abertura da mostra.

O bibliotecário e o curador deixaram claro que o critério para se realizar uma exposição sobre cultura popular numa faculdade de Direito, sobretudo sobre quadrinhos, é de que essa forma de entretenimento não trata apenas de histórias sobre heroísmo, são também sobre personagens que defendem um modelo de Justiça. “Nos EUA, super-heróis quase sempre são guardiões do establishment”, observou o bibliotecário.

De fato, figuras mais populares como Super-Homem, Batman, Homem-Aranha raramente são justiceiros que agem por conta própria, alheios à observação das leis. E mesmo quando não atuam com a anuência do sistema, comportam-se como guardiões do sistema. Entregam os criminosos à autoridade policial, os levam à corte. São personagens que figuram como guardiões do modelo de organização da sociedade em que vivemos.

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