Carta a Gil Vicente

Quem censura arte é que é capaz de degolar

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25 de setembro de 2010, 6h51

Caríssimo Gil Vicente,

Soube, por meio da livre Folha de S.Paulo, que seus auto-retratos Inimigos foram alvejados por ofensiva amiga. Segundo consta, suas obras poderiam não ser expostas na 29ª Bienal de Artes de São Paulo. Por isso, pergunto-lhe: Gil, estaria você incorrendo em apologia ao crime por expor a degola do presidente Luiz Inácio Lula da Silva? Estaria você incorrendo em desprezo à figura humana por apontar uma arma para a têmpora do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso? Ora, Gil, muito me surpreende o fato de você lançar mão do judicioso recurso da ironia para retratar insignes representantes do poder constituído, incitando a inocente população civil ao crime e à violência.

Caro Gil, como você bem sabe, Johann Wolfgang Von Goethe, em Sobre verdade e verossimilhança das obras de arte*, narrou-nos a seguinte anedota:

Um grande naturalista possuía entre os seus bichos de estimação um macaco, que de repente tinha sumido e depois de muita procura foi encontrado na biblioteca. Lá, o bicho estava sentado no chão e tinha em torno dele espalhadas gravuras de uma obra de história natural. Admirado por este estudo zeloso do amigo da casa, o senhor se aproximou e viu, para sua admiração e para seu aborrecimento, que o animal curioso havia roído todos os insetos.

Retratista Gil Vicente, não haveria no caso uma confusão — ou por outra, um embaralhamento — entre a realidade tangível e a representação verossimilhante? Ora, ainda que você tenha se auto-retratado como inimigo público número um de Lula e FHC, trata-se do Gil Vicente pernambucano ou de suas linhas a carvão transpostas à tela segundo o artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal, no qual se lê:

É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

Se o macaco de Goethe fosse seu animal de estimação, Gil, certamente o presidente Lula já se encontraria degolado e o ex-presidente FHC teria exposta, sem quaisquer escrúpulos, a sua massa encefálica.

Por sorte, o macaco (imaginário) só existe como representação, e não como agente pragmático. Sendo assim, a mimese artística não se confunde com o poder instituído ali retratado. Por sinal, um dos pilares do Estado Democrático de Direito consiste na não coincidência do poder instituído com os mandatários investidos de seus cargos temporários. (Lembremos, apenas de maneira contingencial, que todo e qualquer mandatário em um Estado Democrático de Direito, foi e é eleito pela população.) Seria decorrência de tal cadeia argumentativa o direito de o público assistir à exposição ao lado de seu direito de expô-la?

Um velho pensador alemão certa vez afirmou com pesar que a história sempre se repete como farsa. Por vezes, Gil, é preciso constatar que a farsa se repete como história. Você se lembra do problema em que se envolveu Gustave Flaubert? Por causa de seu romance Madame Bovary, o escritor francês foi levado a julgamento. A acusação: denegrir a moral e os bons costumes com a retratação das aventuras de Ema Bovary, a adúltera.

— Sr. Flaubert, diga-nos: existe ou não existe uma tal Ema Bovary que o tenha inspirado na construção de seu romance? A sociedade exige uma resposta.

Premido e humilhado pelo banco dos réus, Gustave Flaubert pode ainda proferir:

— Madame Bovary sou eu!

Os detratores de sua obra, Gil, poderiam, neste momento, replicar:

— Mas você não dissera que não pode haver coincidência entre a representação e a realidade? Como pode Gustave Flaubert afirmar de forma tão categórica a sua identidade com Ema Bovary?

Eis a importância, Gil, de não se pronunciar meia verdade, mas uma verdade e meia. Flaubert não destratou o princípio de verossimilhança ao se identificar com sua protagonista. Implicitamente, o parentesco poético com Ema implicava o distanciamento daqueles que, sem compreender os princípios de constituição da arte, só faziam corroborar o poder constituído e a moral dos bons costumes.

Se sua obra de fato é uma afronta à paz social, Gil, o que poderíamos dizer do romance Crime e Castigo? A personagem central de Fiodor Dostoiévski, o estudante de Direito Ródion Raskólnikov, não apenas questiona todo e qualquer princípio moralmente válido, como comete um duplo homicídio de modo a tornar coerente sua teoria niilista. E mais: não esboça qualquer tipo de remorso ou arrependimento em relação aos delitos cometidos; pelo contrário, afirma que a Amália Ivanovna, a velha usurária assassinada, era de fato um mero piolho, cuja existência parasitária nada significava. Por isso, aquele que se arrogasse o direito de uma Nova Palavra, aquele que quisesse continuar o legado de Napoleão, poderia passar por cima de quaisquer quinquilharias sentimentais. Gil, meu caro, sofre Dostoiévski a mordaça da censura? Muito pelo contrário, como sabemos. O escritor russo é um dos que mais se encontram em voga — apesar de, muito provavelmente, seus detratores nem de longe o conhecerem.

Dizer que o apoio, Gil, expressa menos minha indignação. Se Flaubert se aproximou de Ema Bovary para não ser confundido, quem poderia empunhar a arma em riste e a faca da degola senão os detratores que ora calam a apreciação pública de sua livre criação?

Sem mais, e sob o uso de minhas livres prerrogativas, despeço-me com um amargo sorriso de soslaio.

 


* In Escritos sobre arte, Tradução de Marco Aurélio Werle, Imprensa Oficial, São Paulo, 2005. pp. 138 e 139.

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