Dose de poder

Tribunais definem limites da atuação dos Juizados

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21 de setembro de 2010, 18h27

Dois processos em andamento no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal podem definir os limites de atuação dos Juizados Especiais no país. No STF, alega-se que os Juizados ultrapassaram a esfera de sua competência ao julgar um caso de grande complexidade e que necessita de extensa produção de provas. No STJ, sustenta-se que a Turma Recursal decidiu de forma contrária à jurisprudência mais do que pacificada pelo Tribunal Superior, o que requer o reexame da decisão.

Os dois casos discutidos na semana passada chamaram a atenção para um fato que é motivo de preocupação: o de que, em muitos casos, as Turmas Recursais dos Juizados acabam se tornando a última instância de decisão, ainda que essas decisões não sigam os precedentes do STJ e do Supremo. A boa notícia é que os tribunais criaram mecanismos para que as partes não fiquem sem uma resposta da Justiça nos casos em que se sentem injustiçadas.

No STJ, a ministra Nancy Andrighi recebeu Reclamação do Banco Cruzeiro do Sul contra decisão da 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis do Rio de Janeiro, que o condenou a pagar R$ 8 mil a um cliente. O banco foi condenado sob acusação de descontar valores excessivos da folha de pagamento de um cidadão ao cobrar parcelas de um empréstimo consignado.

A instituição financeira contestou a decisão da Turma Recursal, que inverteu o ônus da prova com base no Código de Defesa do Consumidor e declarou diversas cláusulas contratuais abusivas sem que o cliente tivesse requerido tal ato. Ao acolher o recurso do banco e processá-lo como Reclamação, a ministra indicou que a decisão afronta a jurisprudência fixada na esfera dos recursos repetitivos do STJ.

As decisões tomadas por meio de recurso repetitivo no Superior Tribunal de Justiça não obrigam as instâncias inferiores a segui-las. Nestes casos, contudo, o recurso é devolvido para que o tribunal local faça um juízo de retratação e adeque sua decisão à jurisprudência da corte. Ou seja, é prudente julgar de acordo com o que já decidiu o tribunal por uma questão de racionalidade.

A posição da ministra Nancy Andrighi é embasada em decisão do Supremo Tribunal Federal no ano passado. A relatora do processo na Corte Suprema, ministra Ellen Gracie, anotou que enquanto não é criada a turma de uniformização para os Juizados Especiais Estaduais, poderia haver a “manutenção de decisões divergentes a respeito da interpretação da legislação infraconstitucional federal”. E determinou que até a criação da turma de uniformização, as questões sejam processadas por meio de Reclamação no STJ.

Segurança jurídica
Para o advogado Vicente Coelho Araújo, da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados, a decisão é alvissareira. “A importância desse entendimento é que, agora, a parte tem a possibilidade de recorrer contra decisões de Turmas Recursais dos Juizados Especiais quando não há tema constitucional em discussão. Antes, isso não era possível”, afirma.

“Uma questão que necessariamente precisa ser observada, inclusive levando em consideração a política judiciária dos dois tribunais, é que o jurisdicionado não pode ficar atado sem a possibilidade de recorrer em algumas situações”, observa Araújo. O advogado anota que isso impede que questões complexas sejam definidas pelos Juizados que, muitas vezes, ultrapassam os limites de sua competência legal.

Até a decisão da ministra Ellen Gracie, os recursos contra decisões de Turmas Recursais de Juizados Especiais eram fadados ao fracasso. Na falta de matéria constitucional em discussão, o Supremo não os julgava. Tampouco o STJ, que sustentava não haver previsão legal para os recursos. Agora, o quadro é outro.

Mesmo com a possibilidade de recorrer, a admissão destes recursos pelo STJ ainda depende de critérios objetivos. Por se tratar de uma atribuição anômala, ou seja, não prevista em lei, os ministros editaram a Resolução 12 para estabelecer as regras da Reclamação e se baseiam no exemplo dos recursos para a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, que funciona no âmbito do Conselho da Justiça Federal.

O ministro Luis Felipe Salomão afirma que o processamento das reclamações ainda será discutido pelas seções do tribunal. Ainda há questões controversas sobre o tema. Muitos ministros, a exemplo de Salomão, não conhecem dos recursos se eles são impetrados em prazo superior a 15 dias. Também são rejeitados os casos em que se contestam questões processuais. Apenas são conhecidos e processados aqueles em que se discute a questão de mérito.

“Será preciso estabelecer também qual o alcance da nossa resolução. Se julgaremos cada um dos casos ou se serão selecionados apenas aqueles nos quais o interesse da discussão ultrapasse o interesse das partes”, afirma o ministro Salomão.

Apesar disso, apenas a possibilidade de recorrer é considerada uma vitória para os advogados. Até então, era possível recorrer apenas das decisões das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais. Esses recursos são analisados pelo Conselho da Justiça Federal, órgão criado para evitar conflitos entre as Turmas de Juizados Federais dos 26 estados do país e do Distrito Federal.

Simples complexidade
No Supremo, os ministros discutiram um recurso da Souza Cruz contra decisão de Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis de São Paulo, que condenou a empresa a pagar indenização R$ 4 mil a um fumante que alegou ter sido “induzido à dependência química, sem que soubesse do fato da nicotina ser altamente viciante”. O autor do recurso fuma há 44 anos.

Os Juizados rejeitaram a alegação da empresa de que a matéria é de grande complexidade, demanda perícias e ampla produção de provas, o que escapa às atribuições dos Juizados, criados para discutir causas mais simples. A Souza Cruz recorreu ao Supremo.

Na quinta-feira passada, o julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Ayres Britto. Cinco ministros já reconheceram, contudo, que a matéria, por ser complexa, não é de competência dos Juizados Especiais. O relator, Marco Aurélio, e os ministros Dias Toffoli, Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia declararam que os Juizados não podem decidir discussões dessa natureza. O ministro Gilmar Mendes não chegou a votar, mas adiantou que concorda com a tese, até agora, majoritária.

Os ministros não examinaram o mérito da causa. Ou seja, se o fumante tem ou não direito à indenização com a alegação de que não sabia que a nicotina vicia. Segundo Marco Aurélio, no caso, “é inviável a submissão da controvérsia ao STJ como ocorre quanto aos acórdãos das Turmas Recursais”. Isto porque, o caso envolve o inciso I do artigo 98 da Constituição Federal, que versa sobre a atribuição dos Juizados Especiais de atuar em causas cíveis de menor complexidade e em infrações penais de menor potencial ofensivo.

“Para assentar a responsabilidade da recorrente pelo dano, estão em jogo valores a gerar complexidade”, disse Marco Aurélio, ao entender que a causa é complexa por conta da legitimidade da comercialização do cigarro, da participação do Estado ao autorizá-la e ao cobrar tributos, da manifestação de vontade do cidadão ao usar o produto e da possível responsabilidade de quem o comercializa quanto a danos à saúde dos consumidores.

Para o ministro, “dizer se o consumo de certo produto gera, ante a repercussão no organismo humano, direito à indenização pressupõe definição que extravasa a simplicidade das causas próprias aos Juizados Especiais”. O relator observou que as decisões de Juizados são normalmente redigidas com extremo poder de síntese. Mas observou que, no caso, a sentença e o acórdão têm, respectivamente, seis e 21 folhas, algo raro no âmbito dos Juizados Especiais, o que sinaliza a complexidade da controvérsia.

Notícia correta, mas incômoda
Em novembro do ano passado, a revista Consultor Jurídico foi condenada a retirar do ar a notícia sobre a condenação por negligência do cirurgião plástico Alexandre Orlandi França, pelo Tribunal de Alçada de Minas Gerais, em 2002. Em caso de descumprimento, a multa diária chegaria a R$ 6 mil. A decisão foi da 2ª Turma Recursal de Belo Horizonte. Graças aos novos mecanismos criados pelos tribunais, a ConJur pôde recorrer da decisão.

O médico foi condenado a indenizar uma paciente em R$ 25 mil por danos morais e patrimoniais. A paciente sofreu deformações estéticas depois de ter sido operada pelo médico. A ConJur reproduziu a notícia à época e a manteve no ar, como acontece com todos os textos que são publicados na revista — e em qualquer site da internet.

No pedido, o médico não questionou a veracidade da notícia, o que foi confirmado tanto pelo Juizado Especial que examinou o caso quanto pela Turma Recursal. O cirurgião plástico alegou apenas que o texto foi publicado de maneira resumida, o que não permitiria “ao leitor entender o alcance da condenação, visto que ela não decorreu de ‘erro médico’ e sim do entendimento firmado pelo Judiciário de que a paciente não teria sido informada dos riscos que correria ao se submeter à cirurgia”.

O médico também sustentou que a ConJur já tinha cumprido a sua legítima função de informar a sociedade, não podendo “representar exposição eterna da intimidade e imagem de um indivíduo”. Em primeira instância, o juiz Márcio Idalmo Santos Miranda afirmou que “o ponto essencial em debate nos autos consiste em verificar se a manutenção da mencionada notícia representa exercício legítimo da liberdade de imprensa, ou se está a ensejar a indevida violação às garantias de intimidade e imagem do requerente”.

Depois de constatar que a notícia havia sido publicada há sete anos, o juiz sustentou que “o direito à informação foi suficientemente atendido, na medida em que tal comunicado ali perdura há tanto tempo. Em outras palavras, quem queria se informar sobre o ocorrido, já o fez. O certo é que perdurando o informe, o prejuízo para o autor é enorme”.  E concluiu: “O direito à informação, não pode representar exposição eterna da intimidade e imagem de um indivíduo”.

Para a Turma Recursal, a sentença do Juizado Especial Cível de Belo Horizonte não mereceu “qualquer reparo, por ter seu subscritor decidido a lide com acerto e precisão, consoante a melhor doutrina e jurisprudência aplicável ao caso”. A turma entendeu que “a primazia conferida pela Constituição ao interesse coletivo, realiza-se pela proteção à necessidade dos indivíduos de receberem informações verdadeiras e capazes de bem expressar o pensamento de quem as produziu, o que não autoriza, contudo, qualquer violação à intimidade ou à privacidade, direitos da personalidade, considerados hierarquicamente superiores a outros direitos”.

A defesa da ConJur, representada pelos advogados Alexandre Fidalgo, Rafael Kozma e Daniel Diniz Manucci, do escritório Lourival J. Santos, sustenta no recurso que se a notícia é lícita e não é o tempo de permanência da notícia à disposição da sociedade que a torna ilegal, passível de condenação. Ou seja, um texto jornalístico lícito não pode se tornar ilícito pelo tempo em que fica acessível aos leitores.

Os advogados destacam também que, ao contrário do que constou na inicial do médico, o texto noticiou fato verídico, sem máculas, lastreado no julgamento do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, hoje TJ mineiro, que efetivamente condenou o cirurgião. E observam que a sentença, da forma posta, ainda ofende princípios basilares do Direito, como o do devido processo legal, da ampla defesa e da fundamentação das decisões judiciais (artigo 5º, inciso LIV e LV, e artigo 93, inciso IX, da Contituição Federal). Citam, ainda, o princípio da liberdade de expressão com base em voto do ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal.

Para o ministro, é preciso intenção de ofender para que um jornal seja condenado por texto publicado, por mais crítico e duro que seja. Não basta que o personagem da notícia se sinta ofendido. “Uma vez dela ausente o animus injuriandi vel diffamandi, a crítica que os meios de comunicação social dirigem às pessoas públicas, especialmente às autoridades e aos agentes do Estado, por mais acerba, dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos da personalidade”, esclarece o decano.

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