Bienal de arte

Gosto da OAB sobre obra não interessa a ninguém

Autor

20 de setembro de 2010, 10h50

Lembro-me de Arnaldo Jabor falando, há alguns anos em seu espaço no Jornal Nacional, que o mundo estava de cabeça para baixo, e demonstrava isso com alguns fatos internacionais. Dizia o cineasta: “O mundo está de cabeça para baixo mesmo. O melhor rapper do mundo é branco, o melhor golfista é negro, a Alemanha não quer ir para a guerra e o pior: O Super-Homem morreu!”.

Após informar-me na Consultor Jurídico de que a Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo, e o Instituto dos Advogados de São Paulo repudiaram e reclamam a não exposição na Bienal que se aproxima, de gráficos do artista plástico pernambucano Gil Vicente, nada pude fazer senão pasmar-me.

Nos gráficos – ao menos os dois representados na matéria e a que tive acesso – figuram, em posição de vítimas, o atual presidente da República e seu antecessor. Um, com arma apontada para sua cabeça, o outro, com faca no pescoço.

A Ordem dos Advogados, por seu presidente, e o IASP, também por seu representante maior, despendem comentários sobre a liberdade de manifestação e incitação e apologia de delitos, o que in tese teria cometido o autor das peças e pedem a não exposição das obras; em pleito bastante tresloucado, abençoa-se a liberdade de expressão, mas reclama-se a não publicação ou exposição das gravuras – que em matéria de artes plástica é idêntica a censura).

Ou impedir que um quadro seja visualizado pelo grande público não é idêntico a impedir a leitura pública de um livro? Ao autor só se permitirá compartilhá-los com amigos próximos?

A obra, como toda manifestação artística, será recebida pelo público por meio do filtro do aplauso ou da reprovação, e é esse o mecanismo celebrado pelo costume e pela Constituição Federal, esta última ao imperar a liberdade de expressão como bem inviolável, com restrições apenas ao elogio e manifestações aprovadoras de crimes cometidos ou de seus autores.

Sim, o fato é atípico, mas não é preciso sequer entrar na seara técnica do direito penal para perceber a injustiça cometida pelas representações advocatícias.

Há muito, aqueles nomeados pelos latinos de homo iudicius parecem utilizar seus cargos para exporem suas próprias opiniões ou exporem-se à maneira de Narciso. Promotores super expostos, juízes pseudo-heróis e combatentes do crime, e não julgadores isentos, e agora os advogados, fechando o tripé de nossa Justiça, demonstram quanto o homem tem deturpado a idéia motriz de nossas instituições republicanas e porque é o principal fator de descrédito do povo nessas.

Que os promotores e os juízes falem de suas instituições, se é que podem.

A questão aqui é a Ordem dos Advogados do Brasil, e aqui não farei diferença entre seção São Paulo ou Federal, reclamando tal absurdo.

Medito um pouco e percebo serem alguns advogados bastante avessos à liberdade de manifestação. Sem dúvida estão mais preocupados com suas carreiras e os benefícios que os cargos podem lhes trazer do que com as benesses da democracia. Vamos mapear dois precedentes hipócritas de homens da ordem dos advogados, e não da Ordem – esta maior, melhor e sempre futura.

O primeiro remonta do julgamento de Doca Street. Na oportunidade, alguns da Ordem dos Advogados quiseram censurar o grande Heleno Claudio Fragoso por críticas feitas à decisão do júri, ou seja, impedir que professor de direito criticasse, à luz do direito penal, a decisão de legítima defesa da honra, com excesso culposo, no auge dos movimentos feministas.

Na oportunidade seu maior defensor foi – e isso demonstra a diferença de advogados com voz na Ordem – aquele que deveria se sentir ofendido com o comentário técnico, ou seja, o imortal advogado Evandro Lins e Silva, defensor de Doca.

Outro precedente esclarecedor, e bem exposto por Jason Tércio em A espada e a balança, refere-se às tratativas na Ordem dos Advogados em censurar outro gigante, Antônio Evaristo de Moraes Filho[1], já então com leucemia, por ter aceitado defender o ex-Presidente Fernando Collor.

A Ordem já ousou querer censurar um advogado por aceitar defender o seu cliente. Pode? O pior é que pode.

A luta da Ordem dos Advogados do Brasil é, sem dúvida alguma, direcionada à manutenção da ordem democrática e política brasileira, mas – e escrevo isso sem nenhum viés político ou demonstrando afeição a um ou outro pretendente aos cargos máximos da carreira – o gosto artístico de Luiz Borges D’Urso não interessa a ninguém.

Algum dia, qualquer petista afirmará em artigo de jornal que o presidente FHC quase tomou um tiro na cabeça ao privatizar serviços antes estatais, ou algum tucano que o presidente Lula, à época do mensalão, esteve com a faca no pescoço. Sairão os representantes dos advogados, oficiais ou não, pedindo a não publicação dessas hipotéticas palavras?

Sim, o mundo está de cabeça para baixo, o Super-Homem morreu e os representantes dos advogados, em demonstração de desconhecimento das leis penais – por não se tratar a obra de crime sob a luz do tipo “apologia ao crime” – pedem censurar a manifestação artística de respeitado ilustrador brasileiro.

Precisamos, nos dias hodiernos, revisitar o passado de nossas instituições e aprender com o suor dos que já se foram, para que nossas palavras, hoje, não façam suar as gerações futuras.

De algumas imagens nascem pensamentos instrumentalizados por nós em palavras, assim como palavras são assimiladas por nós e transformam-se automaticamente em imagens.

Por exemplo: não sai de mim imagem concebida com a leitura de José Saramago em que Deus, o Diabo e Jesus conversam por dias sentados num barco. Como posso afirmar com todas as palavras possíveis o medo e espanto que senti do tenebroso julgamento final de Michelangelo na Capela Sistina. Histórias são contadas por gravuras, como palavras podem desenhar, aos ouvidos de um cego, a magnitude de um quadro.

Essa é a arte: livre, plena e assimilada por cada um de um jeito próprio.

O adjetivo é o alimento do artista, instrumento do crítico e liberdade de todos. Só um adjetivo o artista não merece: o de criminoso. “E só há um lugar para gravuras: paredes”. Que a tolerância àquilo que nos desagrada seja um referencial democrático e não um impulsionador de silêncios.

[1] Márcio Thomaz Bastos afirmou, em artigo publicado em livro organizado por Luis Guilherme Vieira e Ricardo Lira intitulado Antônio Evaristo de Moraes Filho, por seus amigos, ter sido Evaristo o maior advogado brasileiro da segunda metade do século XX. 

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!