Transação disciplinar

Tribunais têm dúvidas de como aplicar CBJD

Autor

  • Milton Jordão

    é advogado presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB-BA e ex-membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça.

16 de setembro de 2010, 9h16

O Código Brasileiro de Justiça Desportiva, reformado com a Resolução 29/2009, trouxe novos institutos que demandarão dos Tribunais de Justiça Desportiva e seus integrantes esforços incomuns para aplicá-los e regulamentá-los. As noviças alterações se colhem ao longo de todo o CBJD, mudou-se a estrutura sobremaneira. De fato, este novo diploma é um divisor de águas para o Direito Desportivo, é bom exemplo do aperfeiçoamento da Justiça Desportiva no Brasil, embora exija deveras dos operadores do direito desportivo empenho na sua plena adequação e ajustamento.

Não obstante o Ministério do Esporte o Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, no ano passado, haverem realizado uma série de consultas públicas, em nove cidades brasileiras, apresentando uma minuta de alteração do CBJD, promovendo debates e colhendo sugestões, este novo Código ainda suscitará debates intensos.

Esta coluna pretende iniciar um debate sobre um destes novos institutos jurídicos, nascido da reforma do CBJD: a Transação Disciplinar Desportiva (TDD). Interessa, para conhecimento, reproduzir o caput do artigo 80-A: A Procuradoria poderá sugerir a aplicação imediata de quaisquer das penas previstas nos incisos II a IV do artigo 170, conforme especificado em proposta de transação disciplinar desportiva apresentada ao autor da infração.

Pode-se asseverar, em suma, que a TDD, ao que parece, inspirou-se em instituto jurídico-penal trazido pela Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei Federal 9.099/1995) – Transação Penal, artigo 76 da mencionada lei – e significa uma proposição de acordo entre Procuradoria e Denunciado, visando suspensão a não instauração ou suspensão do processo[1], desde que este se submeta ao cumprimento de medidas fixadas no Código[2], não implicando a sua aceitação em condenação – evitando-se, como disposto no parágrafo quinto do referido artigo, a reincidência.

Prima facie, é uma inovação que aprimora o modelo de Justiça Desportiva, principalmente, porque permite a negociação e abreviamento do juízo, conferindo maior celeridade. No entanto, com estranheza, estabeleceu o CBJD que esta medida requer homologação por um Auditor do Tribunal Pleno (cf. artigo 80-A, parágrafo 4°[3]).

Diz-se isso porque a maioria dos feitos relacionados como passíveis de oferecimento de TDD tramita na Comissão de Disciplinar, assim, como é que os Tribunais de Justiça Desportiva deverão lidar com tal hipótese?

Este questionamento deve permear a cabeça dos mais diversos integrantes da Justiça Desportiva, pois se trata de direito objetivo do Denunciado, inclusive, podendo ser pleiteada pela Defesa, quando a Procuradoria não se manifestar previamente, desde que preenchidos os critérios legais[4].

E agora, como fazer?

Quando será o momento de oferecer a transação? E, o qual será o procedimento a ser seguido pela Secretaria quando o feito for de competência da Comissão Disciplinar? Será distribuído antes a um Auditor do Pleno?

Inúmeras perguntas são feitas após acurada leitura deste artigo 80-A.

Ora, evidencia-se que o CBJD foi cauteloso quando delegou ao Auditor do Pleno a exclusiva competência de homologar acordo firmado entre as partes litigantes. Porém, faltou maior sensibilidade e apego à realidade, quando esta competência não fora outorgada ao Auditor relator do feito (seja ele membro de Comissão Disciplinar ou do Tribunal Pleno).

Muitos Tribunais de Justiça Desportiva brasileiros contam com mais de uma comissão disciplinar, que terminam por julgar grande número de processos e boa parte dos denunciados, saliente-se, se enquadram nas disposições admitidas como passíveis de transação disciplinar desportiva. Portanto, a redação legal imporá aos Tribunais Plenos uma sobrecarga, já que se exige de um de seus membros decida, homologando ou não, o acordo.

Pois bem. Outra questão de ordem prática integra este debate: oferecida a transação, antes de recebida a denúncia, o feito será interrompido e levado ao Presidente do TJD para nova distribuição para fins de homologação por um Auditor do Pleno. Esta delonga ainda pode acarretar, nalguns casos, a impunidade devido a prescrição.

Se a referida proposta for negada, sendo interposto recurso, o temor revelado acima se torna mais presente. Logicamente, não se tem o direto à ampla defesa como mal, rogando a sua supressão, ou mesmo, se contesta a existência de lapso prescricional, somente se demonstra que um excesso de burocracia indevida poderá malferir os valores que sempre foram baliza da Justiça Desportiva.

Veja-se mais, por exemplo, se a Procuradoria não quiser oferecer a benesse legal, a Defesa poderá recorrer ao Pleno para que decida a questão, afinal, a Comissão Disciplinar não poderá, por razões lógicas, decidir sobre esta matéria. Assim, poder-se-á criar um óbice legal à fluidez que é costumeira nas ações desportivas.

Por certo, isto implicará em necessária adequação dos Tribunais para que não se ultraje o princípio da celeridade e pro competitione.

E, ainda, surge mais uma incerteza: quando houver mais de um denunciado no mesmo processo, sendo que somente um deles faz jus à transação, deverá, então, ser o feito desmembrado? A quem competirá dizer isso?

Com efeito, o CBJD nada diz sobre isso. Ao nosso sentir, criou-se perigosa brecha para que a célere marcha processual possa ser brecada. Ademais, um eventual desmembramento nestas condições fere normas fundamentais da teoria geral do processo.

Poder-se-ia imaginar como solução a delegação de poderes do Auditor do Pleno para o da Comissão Disciplinar. Infelizmente (ou não), o texto de lei é deveras claro, ao ponto que sequer não se pode haver delegação por via regimental do Auditor do Pleno para seu colega da Comissão Disciplinar, sob pena de nulidade absoluta, posto que, a homologação é ato decisório, com caráter definitivo. Assim, qualquer delegação de poder implicaria em ofensa ao princípio constitucional do juiz natural.

Seguramente, a questão demandará esforço coletivo já que uma mudança na redação não parece ser factível. Ao nosso pensar, o ideal é que as Cortes busquem conceber seus Regimentos Internos disciplinando este instituto, principalmente, o momento e forma ideal em que e como a Procuradoria fará sua oferta, ou quando esta vier no curso do processo desportivo, ajustar para que sua interrupção não implique em prejuízos ao bom andamento dos trabalhos forenses.

No entanto, toda atenção se impõe para que a norma regimental não fira as disposições do CBJD, que lhe são hierarquicamente superiores. É certo que se pode até discordar de pontos deste diplomas, porém, é vedado transmutá-lo, pois compete unicamente do Conselho Nacional do Esporte fazer isso.

Então, urge às Cortes Desportivas criar disciplina própria, através de regimento interno, para, ao menos, evitar que as pautas de julgamentos sejam trancadas por conta da necessária remessa a nova distribuição para apreciação da Transação. Ou, na pior das hipóteses, que os pretórios optem por ignorar a sua aplicação dada dificuldade em disciplinar este instituto, harmonizando-o com o ritmo veloz que a Justiça Desportiva sempre teve.

O debate ainda renderá muitas e variadas respostas às indagações acima lançadas. Porém, dentro do espírito de aprimorar a prestação jurisdicional, impõe-se que os operadores do direito desportivo pensar, equacionar e solucionar as lacunas e fendas concebidas com o ingresso da transação disciplinar desportiva no ordenamento jurídico-desportivo nacional.

Quiçá, o Seminário “A Reforma do CBJD”, organizado pelo Ministério dos Esportes, que está envolvendo e motivando a comunidade jurídico-desportiva pátria, a se reunir em Brasília, nos dias 24 e 25 de março, possa produzir indicativas e sugestões a serem incorporadas pelos Tribunais de Justiça Desportiva a fim de que as preocupações declinadas possam ser solucionadas.


[1] § 7º A transação disciplinar desportiva a que se refere este artigo poderá ser firmada entre Procuradoria e infrator antes ou após o oferecimento de denúncia, em qualquer fase processual, devendo sempre ser submetida à apreciação de relator sorteado, membro do Tribunal Pleno do TJD ou STJD competente para julgar a infração, suspendendo-se condicionalmente o processo até o efetivo cumprimento da transação.

[2] § 5º Acolhendo a proposta de transação disciplinar desportiva, o relator aplicará a pena, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente a concessão do mesmo benefício ao infrator no prazo de trezentos e sessenta dias.

[3] § 4º Aceita a proposta de transação disciplinar desportiva pelo autor da infração, será submetida à apreciação de relator sorteado, que deverá ser membro do Tribunal Pleno do TJD ou STJD competente para julgar a infração.

[4] § 1º A transação disciplinar desportiva somente poderá ser admitida nos seguintes casos: – I – de infração prevista no art. 206, excetuada a hipótese de seu § 1º; II – de infrações previstas nos arts. 250 a 258-C; III – de infrações previstas nos arts. 259 a 273.

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    é advogado criminalista, membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, do Conselho Estadual da seccional baiana da Ordem dos Advogados do Brasil, procurador e ex-defensor dativo do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol da Bahia, diretor presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA), membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD) e professor de Direito Penal da Faculdade Ruy Barbosa.

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