Independência jurisdicional

Ameaça a juiz é atentado contra o Estado de Direito

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12 de setembro de 2010, 9h15

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A independência dos juízes corre perigo. Falta de reposição salarial por anos seguidos, projetos que restringem a autonomia dos magistrados e abalam sua vitaliciedade e ausência de juízes de carreira em tribunais superiores vêm provocando o esvaziamento da profissão que é o alicerce das liberdades e garantias sociais. Essa é a opinião do presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Gabriel Wedy.

As reclamações não são bandeiras corporativistas, sustenta o juiz federal, mas um alerta necessário para o fato de que as investidas contra a magistratura podem acabar por enfraquecer o próprio Estado de Direito. “O juiz federal precisa de respaldo do Estado, tem de ser considerado como membro de poder. É necessário resgatar esse conceito em benefício da sociedade. No dia em que o juiz tiver medo, o Estado Democrático de Direito correrá riscos”, afirma.

Wedy tomou posse da presidência da Ajufe há três meses. Mas já levantou tantas bandeiras que parece ter o comando da entidade há anos. Sob sua gestão, os juízes já conquistaram ao menos uma importante vitória para a categoria no Conselho Nacional de Justiça: a equiparação das vantagens e benefícios entre membros da Magistratura e do Ministério Público.

Para o juiz, eleito pela chapa de oposição às administrações anteriores, os magistrados sofrem tantas restrições que se transformam em meios cidadãos. “Nós temos cidadania ativa, podemos votar. Mas não temos cidadania passiva, não podemos receber votos”, diz. Mais um motivo para terem garantias que não se estendem a outras categorias.

Em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico na sede da entidade em Brasília, o 14º presidente da história da Ajufe defendeu as férias de 60 dias para a magistratura, voltou a criticar a falta de juízes de carreira no Supremo Tribunal Federal e reforçou o apoio à proposta do presidente do STF, ministro Cezar Peluso, de impedir que advogados e membros do Ministério Público que tomam posse como desembargadores nos tribunais em vagas do quinto constitucional sejam alçados ao Superior Tribunal de Justiça em vagas destinadas à magistratura.

Leia a entrevista:

ConJur — O senhor tomou posse há três meses e já defendeu escutas em parlatórios, conseguiu a equiparação de vantagens e benefícios entre juízes e membros do Ministério Público e fez uma lista de juízes de carreira para o Supremo Tribunal Federal. Vai manter esse pique durante toda a gestão?
Gabriel Wedy — O objetivo é fazer uma gestão combativa. Essa linha de atuação foi uma reivindicação da carreira, que se transformou em plataforma de campanha. Então, estamos apenas cumprindo os compromissos assumidos na campanha. Nós entendemos que os juízes devem ter maior participação no preenchimento das vagas para o STF e ocupar as vagas de origem no STJ.

ConJur — Vem daí o apoio ao projeto do presidente do STF, Cezar Peluso, que quer impedir desembargadores que entraram nos tribunais em vagas do quinto constitucional ocupem cadeiras da magistratura no STJ?
Gabriel Wedy  Sim. Isso já acontece no Tribunal Superior do Trabalho. A Emenda Constitucional 45, da Reforma do Judiciário, garantiu que as vagas de juízes do Trabalho para o TST sejam ocupadas por magistrados de carreira. Nós pensamos, inclusive, em entrar com uma ação no Supremo para defender que as vagas da magistratura federal no STJ sejam ocupadas por juízes de carreira. A Associação dos Magistrados Brasileiros já entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade nesse sentido, para resguardar o espaço dos juízes estaduais. A ideia é garantir a simetria com a Justiça do Trabalho.

ConJur — Historicamente, a magistratura contesta a existência do quinto constitucional. Qual a posição da atual direção da Ajufe sobre o quinto?
Gabriel Wedy  Ainda não houve deliberação da carreira. Pessoalmente, sou favorável ao quinto. Considero salutar essa composição que mescla advogados, membros do MP e juízes. O que não pode acontecer é os juízes de carreira serem preteridos na hora de ocupar suas vagas no STJ e esquecidos nas escolhas para o STF. Não pretendemos tirar o espaço das outras carreiras. Mas queremos garantir o lugar dos juízes federais para que os tribunais, inclusive o Supremo, fiquem mais plurais e democráticos.

ConJur — O senhor acredita que o presidente Lula vai levar em conta a lista feita pela Ajufe?
Gabriel Wedy  Ele disse em entrevista à revista CartaCapital que sim, que levará em conta a lista apresentada pela entidade.

ConJur — O Supremo Tribunal Federal é um tribunal político. Uma corte cuja principal atribuição é exercer o controle de constitucionalidade. As atribuições são diferentes das de um juiz. Dessa ótica, faz sentido querer estabelecer cotas para juízes no STF?
Gabriel Wedy  O presidente da República tem sensibilidade política para resolver isso. A intenção da lista é fortalecer a democracia e aperfeiçoar o regime republicano. Ela não exige a criação de cotas, apenas dá mais opções para o presidente da República fazer sua escolha. E o tribunal não pode ser apenas político. Tem que ser técnico também.

ConJur — Um dos juízes mais votados foi o Fausto De Sanctis [titular da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo]. Dentre os seis, ele é o que mais se destaca por suas posições e decisões polêmicas na comunidade jurídica. Qual sua opinião sobre o trabalho dele?
Gabriel Wedy  Os seis juízes que compõem a lista são grandes magistrados, que ocupariam com brilho uma cadeira no Supremo. O Fausto é um juiz competente. Pode ter suas decisões questionadas pela imprensa e por pessoas que têm posições diferentes das suas, mas é um magistrado exemplar, sério, correto, ético e trabalhador.

ConJur — O senhor concorda com a análise feita há tempos pelo ministro Gilmar Mendes de que muitas vezes a Polícia, o MP e os juízes formam um consórcio na acusação que desequilibra o julgamento do caso?
Gabriel Wedy  Admiro a capacidade do ministro Gilmar Mendes como julgador e constitucionalista, mas discordo dele neste ponto. Não existe consórcio. Cada um cumpre a sua função no processo. A Polícia investiga, o Ministério Público acusa, o advogado faz a defesa com ampla liberdade e o magistrado julga.

ConJur — O Brasil forma bons juízes?
Gabriel Wedy  Sim. Os concursos públicos são rigorosos e, hoje, acompanham as discussões contemporâneas com matérias como filosofia, Direito Ambiental e Direito Econômico, por exemplo. Há tempos conseguimos selecionar grandes juízes, capacitados e com bom nível cultural e intelectual.

ConJur — Mas o senhor não acha que há uma distorção quando mais de 90% dos candidatos são reprovados nos testes de múltipla escolha e, no estágio probatório, que afere a vocação, todos passam?
Gabriel Wedy  Não é bem assim. Nas fases finais, nas provas orais, nos testes que existem dentro do estágio, muitos são reprovados. Mas a perfeição é impossível. Estamos em busca do aperfeiçoamento. Uma boa evolução foi a exigência de três anos de atividade profissional antes do concurso. A experiência na advocacia ou em outros setores do serviço público é importante porque amadurece o magistrado. Faz ganhar sensibilidade social. Eu advoguei por seis anos e atesto que a experiência foi fundamental para o meu trabalho como juiz.

ConJur — A Justiça Federal é superavitária?
Gabriel Wedy  Além de prestar serviços importantíssimos à sociedade, a Justiça Federal arrecada mais do que gasta. O levantamento Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça constatou que, em 2009, a arrecadação das varas de execução do Judiciário Federal foi de R$ 11,5 bilhões. E seu custo total, com estrutura, subsídios e vencimentos foi de R$ 5,5 bilhões. Ou seja, a Justiça Federal arrecada mais do que o dobro do seu custo total. E um dos trabalhos mais importantes feito pelos juízes federais é a concessão de benefícios como auxílio-doença, auxílio-moradia, aposentadoria por invalidez e por idade, quando esses benefícios são negados indevidamente pelo INSS. Desde 2001, os Juizados Especiais Federais pagaram para a população brasileira cerca de R$ 18 bilhões.

ConJur — Não deixa de ser uma forma de distribuição de renda…
Gabriel Wedy  Exato. Foram pagos R$ 18 bilhões para oito milhões de brasileiros neste período. Os casos são de pessoas simples, que não conseguem obter seus benefícios pela via administrativa depois de sofrer nas filas do INSS, e recorrem ao Judiciário.

ConJur — O senhor disse que foram atendidas oito milhões de pessoas desde 2001 pelos Juizados. Logo, podemos dizer que, se o INSS cumprisse a lei, teríamos, por ano, quase um milhão de pessoas a menos com ações na Justiça, correto?
Gabriel Wedy  Exatamente.

ConJur — Não é possível fazer uma composição administrativa com o INSS para convencê-lo a conceder os benefícios que já se sabe de antemão que a Justiça irá conceder?
Gabriel Wedy  Vamos trabalhar por isso. Até o momento, temos conversado com a Advocacia-Geral da União para que as decisões sejam cumpridas com rapidez, sem que haja recurso nos casos em que a União sabe que não terá êxito. É preciso ter sensibilidade para construir uma saída consensual acima de qualquer vaidade. Há um embate a ser resolvido principalmente na questão de distribuição de medicamentos e concessão de tratamentos médicos e cirurgias. É necessário que as decisões judiciais nesse sentido sejam cumpridas imediatamente, sob pena de ceifar a vida de quem precisa do tratamento ou do remédio.

ConJur — A Justiça Federal tem estrutura para atender a essa demanda?
Gabriel Wedy  As turmas recursais, por exemplo, estão mal estruturadas. Não existe o cargo de juiz de turma recursal. Na 1ª Região, por exemplo, o juiz acumula o trabalho da vara com o da turma recursal e não recebe qualquer adicional por isso. Na 4ª Região, o juiz se afasta da vara. A ideia é trabalhar com o Conselho da Justiça Federal para uniformizar isso e melhorar a estrutura. Um avanço nesse sentido foi a criação das 230 novas varas federais, que até 2014 serão completamente instaladas.

ConJur — Como o senhor vê as críticas à ação da Ajufe por meio da qual o CNJ garantiu aos juízes as mesmas vantagens recebidas por membros do Ministério Público, como o direito de vender um terço das férias, de receber auxílio alimentação, licencia prêmio, entre outras?
Gabriel Wedy  Atuamos para que o texto constitucional fosse cumprido. Quando o professor Luís Roberto Barroso [advogado da Ajufe na ação] se deparou com essa causa, ele não teve dúvidas em relação ao nosso direito porque a simetria entre as carreiras é prevista de forma cristalina na Constituição. Na verdade, o Supremo deveria ter reconhecido de ofício essa equiparação. Há juízes federais que chegam a receber até R$ 7 mil a menos do que procuradores da República. Nós não recebíamos auxílio-moradia, auxílio-alimentação ou gratificação por exercer a jurisdição em locais de difícil acesso. Isso era uma distorção. Há um ponto importante: um juiz, hoje, ganha em média R$ 13 mil líquidos por mês.

ConJur — Por isso a Ajufe defendeu o anteprojeto que reajusta os salários do ministros do Supremo e, em consequência, de toda a magistratura?
Gabriel Wedy  Rui Barbosa dizia que mexer na subsistência do magistrado é mexer na sua dignidade. É com isso que estamos preocupados. O anteprojeto repõe perdas inflacionárias e foi atacado porque enxergaram no texto um gatilho salarial. Não há gatilho. O texto prevê a reposição inflacionária anual de acordo com as perdas inflacionárias, limitada à Lei de Diretrizes Orçamentárias. A reposição anual já é prevista, mas o Congresso ficou cinco anos sem cumprir essa determinação. De 2006 a 2009, os juízes ficaram sem qualquer reposição. Muitas vezes, quatro ou cinco servidores de gabinete ganham mais do que o juiz titular da vara. Somos um poder de Estado e recebemos menos do que muitas carreiras jurídicas. A batalha é para que sejamos tratados, de fato, como membros de um poder de Estado. Há setores da carreira que defendem paralisação.

ConJur — Greve de juízes?
Gabriel Wedy  — Sim. Seguindo o exemplo do que aconteceu na Espanha e em Portugal. Particularmente, sou contra paralisação no Judiciário, porque, como poder de Estado, não pode se ausentar. Mas se isso for deliberado em assembleia, defenderemos o que a maioria decidir. É preciso dar um basta ao esvaziamento da figura do juiz. Recebemos menos do que muitas outras categorias. Estamos perdendo nossa representação no STJ e no STF. Agora, querem acabar com a nossa vitaliciedade. Há uma proposta no Congresso que prevê que o juiz poderá perde o cargo por decisão administrativa. Como um juiz que pode perder o cargo por mera decisão administrativa vai ter independência para julgar político e empresários influentes? Ou até membros de organizações criminosas? São garantias do juiz a vitaliciedade, irredutibilidade de vencimentos e a inamovibilidade. Querem acabar com duas das três garantias. Isso é um risco não para o juiz, mas para a sociedade brasileira. Como o juiz terá independência para julgar? Se não tivermos independência, a sociedade terá um Judiciário acuado e amedrontado.

ConJur — A defesa dessas garantias é salutar. Difícil discordar. Mas como defender certos privilégios, como as férias de 60 dias? Ou o fato de um juiz condenado administrativamente por corrupção ganhar aposentadoria compulsória, no lugar de ser expulso da categoria com a perda de vantagens?
Gabriel Wedy Não somos os únicos que têm 60 dias de férias.  Professores e parlamentares também têm recesso duas vezes por ano. E é preciso informar que os juízes trabalham nas férias para cumprir metas. Eu mesmo nunca usufruí as férias em sua plenitude. Sempre levei trabalho para casa. Essa é a realidade da maioria.

ConJur — Mas se o juiz usa metade das férias para trabalhar, não haveria problema em reduzir para 30 dias, certo?
Gabriel Wedy Não é a mesma coisa. O juiz usa esse período para colocar em dia o trabalho que não consegue fazer no gabinete, por conta da dinâmica de uma vara. Ele julga nas férias os casos conclusos para sentença, estuda os mais complexos. É quando tem tempo para fazer isso. A sociedade tem recebido bom retorno disso. A Justiça Federal, por exemplo, tem cumprido as metas impostas pelo CNJ. E os juízes sofrem inúmeras restrições, são meios cidadãos.

ConJur — Por quê?
Gabriel Wedy Nós temos cidadania ativa, podemos votar. Mas não temos cidadania passiva, não podemos receber votos. Na história republicana, só o juiz e o preso não podem fazer parte da casa do povo, do Congresso Nacional. O juiz não pode nem ser síndico de prédio. Temos limitações que o cidadão comum não tem. Não podemos ter filiação partidária. Os 14 juízes da Corte Constitucional da Alemanha têm filiação partidária. Não podemos ser indicados a cargos no Executivo. Não temos representação no Congresso. Por isso, temos dificuldade de aprovar projetos que interessam à magistratura. Não seria positivo juízes dentro do Congresso, para participar das reformas do Código de Processo Civil e do Código de Processo Penal, por exemplo?

ConJur — Mas os juízes não são chamados?
Gabriel Wedy São chamados. Mas uma coisa é você ser um representante do povo, eleito para isso. Outra é opinar fora do processo de aprovação de um projeto.

ConJur — E a questão da aposentadoria compulsória nos casos em que o juiz cometeu desvios?
Gabriel Wedy O juiz deve ser aposentado. Não se pode confundir a relação de punição do juiz com as suas contribuições previdenciárias. Ele recebe vencimentos proporcionais ao tempo de contribuição. Ou seja, o juiz é efetivamente punido, mas recebe aposentadoria em face de uma relação distinta.

ConJur — Recentemente, diversos juízes foram vítimas de violência. O caso mais rumoroso foi o do presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe, que teve o carro metralhado. Fatos como esses dão força a projetos como o do juiz sem rosto?
Gabriel Wedy O projeto da Ajufe não é de juiz sem rosto. É diferente. O que defendemos é o julgamento colegiado de certas questões criminais para dispersar a atenção de um só juiz, para que a responsabilidade seja dividida e o magistrado seja protegido. É perigoso um juiz assumir sozinho a responsabilidade de condenar, por exemplo, um líder de organização criminosa. Prova disso é que juízes estão sendo baleados. Nossa ideia é proteger o magistrado, mas sem tirar o direito de o cidadão saber quem foram os juízes que tomaram determinada decisão.

ConJur — A Ajufe recebe muitos relatos de violência?
Gabriel Wedy Sim. Eu costumo dizer que todo juiz brasileiro hoje corre risco, não só quem trabalha nas varas criminais. O juiz que julga uma ação popular, uma ação de improbidade envolvendo grandes interesses está com a sua segurança vulnerável. No caso de juízes criminais, a ameaça é coisa corriqueira. Quem condena os líderes do PCC? Quem condena os sonegadores, os traficantes de drogas, os autores de crimes colarinho branco, de crimes ambientais, de crimes contra a ordem econômica? São os juízes federais. Todas essas questões são de competência federal. Por isso eu defendo que o juiz federal tenha um respaldo do Estado. Ele precisa ser considerado como membro de poder de Estado. Precisamos resgatar esse conceito em benefício da sociedade. No dia em que o juiz tiver medo, o Estado Democrático de Direito correrá riscos.

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