Drama da corte

Deficiente não pode ser forçada a evitar gravidez

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8 de setembro de 2010, 6h14

Aos 25 anos, uma inglesa, aqui chamada apenas por A, conheceu um jovem inglês mais ou menos da mesma idade, identificado como B. Dois anos depois, A e B se casaram. Desde então, vivem um relacionamento a três. Não que A ou B tenha algum amante ou coisa do gênero. A terceira ponta desse casamento é a Assistência Social do governo inglês. A e B, ambos com deficiência mental, uma espécie de retardamento, são acompanhados de perto por funcionários públicos, mas moram sozinhos. Ela exige mais cuidados. Ele, nem tanto.

Recentemente, o triângulo amoroso ganhou uma quarta perna. Provocada por assistentes sociais, a Justiça entrou na relação. No final de agosto, veio a público tanto o pedido da Assistência Social como a decisão do juiz. A Court of Protection (em português, Corte de Proteção) rejeitou pedido para que A fosse obrigada a tomar anticoncepcional. A assistência social pedia a contracepção forçada, nem que, para isso, fosse preciso invadir a casa onde ela mora com B com a ajuda da Polícia, sedá-la e aplicar a injeção que a impediria de ter filhos pelo próximo mês, pelo menos.

O caso de A e B – sempre com as suas identidades protegidas – se tornou público graças a uma maior abertura que vem sendo adotada pela chamada Court of Protection. A corte foi criada em 2007 pelo chamado Mental Capacity Act 2005, a lei britânica que cuida das pessoas consideradas mentalmente incapazes. Como dizem respeito a problema pessoais, os casos que iam parar na corte corriam sob forte sigilo. Isso até o fim do ano passado, quando o tribunal começou a passar por um processo de abertura.

Provocado por um grupo de jornais britânicos, a corte permitiu que jornalistas assistissem o julgamento de um artista conhecido na Inglaterra, considerado mentalmente incapaz. Em março, essa decisão foi confirmada. As decisões da corte, também, aos poucos passam a ser publicadas, sempre preservando o nome dos envolvidos e outros dados que possam levar à sua identificação.

A história de A e B fez parte de uma leva de decisões publicadas em agosto, dois meses depois de um juiz da corte ter rejeitado o pedido da Assistência Social. O drama do casal, no qual estranhos metem sim a colher, ilustrou de uma maneira bem realista os desafios que a ainda jovem corte britânica enfrenta. Pelo Mental Capacity Act 2005, ela pode tomar decisões ou mesmo nomear alguém para decidir pela pessoa considerada incapaz. E, visando o melhor interesse dessa pessoa, pode, por exemplo, decidir onde o deficiente mental vai morar, o que vai comer, até mesmo determinar um aborto ou um tratamento médico, como aconteceu há pouco tempo.

Recentemente, a Justiça britânica autorizou médicos a sedarem uma mulher, que tem câncer no útero, e a levarem para ser operada, mesmo contra a sua vontade. Embora no Reino Unido os doentes possam recusar tratamento de saúde, neste caso a Justiça considerou que a doente, por sofrer de problemas psicológicos – ela tem fobia de hospitais e agulhas –, não tinha plena capacidade para tomar essa decisão.

Há poucos dias, a imprensa britânica noticiou o drama de uma mãe que implora aos médicos para fazerem uma histerectomia na sua filha, ou seja, para que retirem o útero da adolescente de 15 anos. A menina sofre de problemas mentais sérios, sequelas de uma paralisia cerebral, e, de acordo com relatos da mãe, sofre a cada vez que fica menstruada. Os sintomas da variação hormonal e a própria menstruação deixam a menina confusa e, segundo a mãe, ferem a dignidade da adolescente. Como ela nunca vai ser uma adulta normal, casar e ter filhos, o melhor para ela é deixar de menstruar, diz a mãe.

Prevenir ou remediar
No caso de A e B, o dilema que teve de ser enfrentado pela Court of Protection foi outro. Aqui, o tratamento de saúde (já reconhecido como tal em terras inglesas) é a prevenção de uma possível – e provável – gravidez. O juiz que analisou a história do casal, Mr. Justice Bodey, teve de escolher qual situação ofereceria menos danos para os dois: forçar o uso do anticoncepcional ou apenas fortemente aconselhar, como tem sido feito, e deixar a escolha para eles. Preferiu a segunda opção.

Na decisão (clique aqui para ler em inglês), o juiz reconhece que A não entende perfeitamente qual a importância de uma contracepção e nem tem capacidade plena para decidir sobre o assunto. No entanto, ainda assim, acredita que, até o momento, pelos relatos feitos, as consequências de permitir que a Polícia entre na casa do casal e leve A sedada para tomar injeção anticoncepcional seriam muito ruins para os dois. Por conta desse entendimento, o juiz chegou a ser criticado pela imprensa. A linha fina pela qual teve de transitar até escolher um lado, no entanto, não foi exatamente considerada pelos críticos.

Antes de conhecer B, A já teve outros dois filhos, ambos tirados dela logo depois do nascimento e colocados para a adoção. Isso porque, durante a gravidez, avaliações concluíram que ela era incapaz de cuidar de uma criança. A nem sempre sabe responder sua idade, se confunde quando perguntada sobre os meses do ano, não lembra o nome dos seus pais, tem dificuldades para escrever e ler e, muitas vezes, é contraditória nos seus relatos.

Com B, A não tem um casamento tranquilo. E nem poderia ser diferente. A deficiência mental dele é bem menor do que a dela, mas ainda assim ele tem dificuldades de entender. No relacionamento deles, de acordo com análises de psicólogos, é ele o lado dominante. Em diversos relatos para amigos, assistentes sociais e psicólogas, A chegou a narrar agressões físicas por parte de B. Outras vezes, negou que ele batesse nela.

Em algumas ocasiões, afirmou que não tomava mais o anticoncepcional porque B queria um filho. Em outras, disse que ela mesma queria um bebê. B chegou a impedir a interferência da Assistência Social no casamento e proibiu A de se encontrar com esses profissionais. Depois de ouvir esses relatos e o depoimento dos dois protagonistas, o juiz considerou que o conflito familiar se devia a uma inabilidade dos assistentes de lidar com o casal. A é a deficiente incapaz, mas B é visto por eles apenas como seu algoz. Para o juiz, as limitações de A deveriam ser mais bem explicadas para B, e ele também deveria ter apoio dos conselheiros sociais.

É nessa nova estratégia de diálogo que o magistrado aposta suas fichas para evitar uma nova gravidez de A. Ele não autorizou que a jovem seja submetida a um teste para saber sua capacidade de ser mãe. De acordo com o juiz, é interferência indevida numa família, e mais ainda: quem sabe quem está preparado para criar uma criança? O que ele considerou é que deve ser dada informação e toda a assistência necessária para o casal, inclusive para que evitem filhos. Mas nada forçado.

Para Bodey, o histórico de A não pode ser usado para impedir, a todo custo, uma nova gravidez. Agora, segundo o juiz, ela vive uma fase diferente, está casada e não mora mais sozinha. Se engravidar, nova avaliação terá de ser feita dentro desse novo contexto para definir o destino do bebê. Forçá-la a tomar a injeção para remediar um futuro problema, agora, seria provocar mais sofrimento e conflitos para esse casal.

Clique aqui para ler a decisão em inglês.

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