Faculdade controlada

Isonomia e individualização da pena não se excluem

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2 de setembro de 2010, 9h50

A legislação brasileira, ao dispor sobre as infrações administrativas, optou por elencar as diversas penalidades que, em tese, poderiam ser impostas em um determinado caso concreto ou por estabelecer gradação de determinada modalidade de penalidade. Como exemplo do primeiro caso, a Lei 6.385/1976 estabelece, no seu artigo 11, que a Comissão de Valores Mobiliários poderá impor penalidades às infrações no mercado de capitais que vão de advertência a proibição temporária de atuar no mercado pelo prazo de até dez anos. No segundo caso, o artigo 12 da Lei 11.371/2006 prevê multa de cinco a cem por cento do valor da operação para as infrações aos artigos 1º e 2º do Decreto 23.258/1933, que trata das operações ilegítimas de câmbio.

Esse sistema, que é semelhante ao adotado pelo Código Penal de 1940, tem a vantagem de dar ao julgador a “faculdade controlada” de escolher a sanção mais adequada, haja vista as circunstâncias de cada caso.

A escolha da modalidade e do quantum de penalidade aplicável não é ato de livre-arbítrio da autoridade. Em consonância com o princípio da individualização da pena, presente no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal, plenamente aplicável aos processos administrativos, o julgador deve levar em consideração as circunstâncias de cada caso concreto, explicitando-as na decisão.

De fato, a Lei 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, dispõe, no seu artigo 50, que “os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos” quando, entre outros, imponham sanções ou deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão. O parágrafo 1º do mesmo artigo deixa claro que a motivação deve ser explícita, clara e congruente.

Observe-se, nesse sentido, a esclarecedora ementa do Recurso em Mandado de Segurança 20.665, julgado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça em novembro de 2009, em que foi relatora a Ministra Laurita Vaz:

“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO CIVIL. PROCESSO DISCIPLINAR. PENA DE DEMISSÃO. ATO VINCULADO. APLICAÇÃO. ADVOCACIA E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. NÃO CARACTERIZAÇÃO DAS CONDUTAS UTILIZADAS COMO FUNDAMENTO DO ATO DEMISSÓRIO. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. PENA ANULADA.

1. A aplicação de penalidades, ainda que na esfera administrativa, deve observar os princípios da proporcionalidade e da individualização da pena, isto é, a fixação da punição deve ater-se às circunstâncias objetivas do fato (natureza da infração e o dano que dela provir à Administração), e subjetivas do infrator (atenuantes e antecedentes funcionais). A sanção não pode, em hipótese alguma, ultrapassar em espécie ou quantidade o limite da culpabilidade do autor do fato.

2. A motivação da punição é indispensável para a sua validade, pois é ela que permite a averiguação da conformidade da sanção com a falta imputada ao servidor. Sendo assim, a afronta ao princípio da proporcionalidade da pena no procedimento administrativo, isto é, quando a sanção imposta não guarda observância com as conclusões da Comissão Processante, torna ilegal a reprimenda aplicada, sujeitando-se, portanto, à revisão pelo Poder Judiciário, o qual possui competência para realizar o controle de legalidade e legitimidade dos atos administrativos. (…)”

 

 

Conforme mencionado na decisão acima, a autoridade administrativa deve, na fixação da penalidade, levar em consideração as circunstâncias objetivas do fato e subjetivas do infrator. Nesse sentido, por exemplo, a Lei 6.385/1976, no parágrafo 9º do artigo, determina que a CVM considere o arrependimento posterior ou a circunstância de qualquer pessoa, espontaneamente, confessar ilícito ou prestar informações relativas à sua materialidade. Em sentido semelhante, o Manual de Normas e Instruções do Banco Central do Brasil prevê que a autarquia deve levar em consideração, na sua atuação, as circunstâncias agravantes ou atenuantes, para efeito de aplicação de penalidade (4-1-1-4-“e”).

De forma a atender, em sua plenitude, à individualização da pena e ao princípio da proporcionalidade, a autoridade administrativa deve seguir as etapas previstas no artigo 68 do Código Penal para determinar o quantum de pena a ser imposta, respeitadas as particularidades do processo administrativo sancionador e o disposto na legislação especial aplicável ao caso.

Inicialmente, o julgador deve fixar a pena-base, partindo da pena mínima e considerando as circunstâncias previstas no artigo 59 do Código Penal, no que for aplicável, o que inclui a análise sobre a culpabilidade do agente, os antecedentes e os motivos. Em seguida, são consideradas as circunstâncias agravantes, como a reincidência, e as atenuantes, como o arrependimento posterior. Por fim, são aplicados os aumentos e diminuições previstos na lei, se for o caso. Cada uma dessas etapas deve ser objeto de motivação expressa pelo julgador.

A autoridade deve, ainda, observar os princípios norteadores da atividade jurisdicional, como determina o artigo 2º da Lei 9.784/1999, entre eles os princípios da razoabilidade e da isonomia, além da já mencionada proporcionalidade. A infração imposta deve, pois, guardar correlação com a gravidade da lesão e não pode se distanciar dos precedentes em casos semelhantes.

Convém destacar que os princípios da individualização da pena e da isonomia não são, de forma alguma, contraditórios ou excludentes entre si; pelo contrário, convivem em harmonia no sistema. A Administração, em nome da segurança jurídica, tem o dever de dar as mesmas soluções a casos essencialmente semelhantes, mas deve, na sua análise, levar em consideração as particularidades do caso concreto e do infrator.

A ausência da necessária motivação pode acarretar tanto a nulidade da pena aplicada, como ocorreu no caso cuja ementa foi transcrita acima e no Habeas Corpus 9.917, julgado pela 6ª Turma do STJ em setembro de 1999, em que foi relator o Ministro Vicente Leal, quanto a redução da pena ao mínimo legal, como decidido, entre outros casos, no Habeas Corpus 137.581, julgado pela 5ª Turma do STJ em maio de 2010, em que foi relator o Ministro Jorge Mussi.

Os processos administrativos sancionadores no âmbito do mercado financeiro e de capitais sujeitam-se aos mesmos princípios, o que equivale dizer, as decisões de primeira instância administrativa que padeçam de falta de motivação na aplicação da penalidade acima do mínimo legal devem ser revistas pela instância superior, no caso, pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, quer para reconhecer a nulidade da pena aplicada sem a necessária motivação, quer para determinar sua redução ao mínimo legal, conforme jurisprudência do STJ acima citada.

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