Sistema complexo

Eleitor vota sem conhecer o sistema eleitoral

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30 de outubro de 2010, 6h12

Um eleitor que é contra os abusos em investigações e quer apenas fazer graça ou protestar votando no palhaço Tiririca pode estar longe de imaginar que sua escolha pode ser suficiente para eleger o delegado Protógenes Queiroz. Se soubesse, talvez optasse por votar em branco ou nulo. Isso acontece porque o sistema eleitoral brasileiro, de acordo com especialistas, é muito complexo e defasado. E por este motivo o eleitor não sabe o que pode acontecer com seu voto.

A frase "Voto em Deus, pois não conheço os candidatos", do filme O Voto é Secreto, do iraniano Babak Payiami, faz uma sátira ao sistema eleitoral daquele país, mas que pode ser perfeitamente enquadrada no cenário brasileiro, demonstrando a insegurança e a incerteza do cidadão diante do processo eleitoral. Para tentar oferecer maior clareza e compreensão dos eleitores sobre o sistema eleitoral e suas leis é que uma Comissão de Juristas foi criada pelo Senado para a elaboração de um novo Código Eleitoral.

O promotor de Justiça, coordenador das promotorias eleitorais de Minas Gerais e integrante da Comissão, Edson Resende, afirma que o atual sistema eleitoral do Brasil está caótico e defasado. Para ele, a "desatualização da legislação vigente faz com que a cada eleição novas resoluções, consultas e normas específicas sejam aprovadas". Isto é, cada eleição tem suas próprias regras.

De acordo com o juiz e presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais, Márlon dos Reis, o defasado sistema eleitoral possibilita a elaboração de uma lista "clandestina", em que o eleitor só saberá quem são seus integrantes após o resultado das eleições. Nas eleições proporcionais, um candidato, além de se eleger pela quantidade de votos, pode levar consigo outros candidatos pertencentes ao partido e à coligação. "A lista aberta não nos dá uma noção de quantos candidatos de determinado partido serão eleitos antes do resultado das eleições e do quociente eleitoral", relata.

Por esta razão, "acredito que uma solução seria substituir a lista aberta pela lista fechada, assim os eleitores já iriam para as urnas sabendo em quais candidatos de determinando partido votar. A lista de cada partido seria definida antecipadamente. Um exemplo de que a lista aberta não é eficaz é que, nas eleições de 2010, dos 503 deputados federais só 35 se elegeram por conta própria", acrescenta Reis.

Para corroborar que o eleitor vota sem saber quais os resultados o seu voto pode alcançar, o sub-relator da Comissão de Reforma do Código Eleitoral, o advogado Torquato Jardim, explica que por usarmos a lista aberta de escolha de candidatos para as eleições proporcionais, o voto tem duas aplicações. "A primeira é que o voto, mesmo sendo dado diretamente ao candidato, é primeiramente do partido. Ou seja, um candidato que recebe 500 mil ou 1 milhão de votos pode levar consigo outros candidatos do partido de acordo com o quociente eleitoral", explica.

Mas em relação à substituição da lista aberta pela fechada, Torquato diz que a solução não é substituir, pois, "isso é impor ao eleitor em quem votar. A lista fechada é uma lista autoritária. É dizer em quem o cidadão deve votar, o que fere a democracia. Além disso, predeterminar em quem alguém vai votar figura-se abuso de poder econômico", ressaltou.

Essa complexidade e as falhas apresentada pelo sistema eleitoral do Brasil faz com que os cidadãos se rebelem e façam um protesto, "que na maioria das vezes é mais um tiro no pé do que, verdadeiramente, um protesto. A exemplo disso, é a chegada do Tiririca à Câmara dos Deputados, mas o problema maior é que através dele outros candidatos, que às vezes você não queria ver representando o povo, se elegeram. A população vota sem saber o que, de fato, o seu voto pode causar", disse Edson Resende.

Essa forma de protesto também é retratada no cinema. O filme Man of the year, (O homem do ano) — de 2006, dirigido por Barry Levinson e estrelado por Robin Williams — conta como o apresentador de um talk show, Tom Dobbs, transforma em comédia os acontecimentos políticos. Em uma de suas apresentações, uma pessoa da plateia diz que está desiludida com os políticos e sugere que ele seja candidato à presidência. Como forma de protesto, toda a plateia aplaude. Dobbs, então se candidata. E vence.

Sistema de escolha
O atual sistema eleitoral brasileiro foi definido pela Constituição Federal de 1988 e antes pelo Código Eleitoral, instituído pela Lei 4.737/1965, além de ser regulado pelo Tribunal Superior Eleitoral no que lhe for delegado pela lei. É o único da história do país não revisto após a promulgação de uma nova Constituição: vigora há mais de quatro décadas e sofreu um natural envelhecimento, tanto pela promulgação da nova Constituição de 1988 quanto pela modernização que a tecnologia impôs às eleições, à votação e à apuração.

Na Constituição, são definidos três sistemas eleitorais distintos, que são detalhados no Código Eleitoral. São eles: eleições proporcionais para a Câmara dos Deputados, espelhado nos legislativos das esferas estadual e municipal, eleições majoritárias com 1 ou 2 eleitos para o Senado Federal e eleições majoritárias em dois turnos para a Presidência da República e demais chefes dos Executivos nas outras esferas. A Carta Magna define ainda, em seu artigo 14, o "sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos", princípio que pauta os três sistemas eleitorais presentes no país.

O sistema eleitoral majoritário é usado, no Brasil, para eleger os chefes do Executivo de todas as esferas (presidente, governador e prefeito), e também para as eleições ao Senado Federal. De acordo com a Constituição Federal, nas eleições presidenciais o sistema empregado é de maioria absoluta, onde o eleito precisa obter mais de 50% dos votos válidos, desconsiderados os brancos e nulos, para ser eleito.

Para garantir a obtenção dessa maioria num sistema pluripartidário, a eleição pode se realizar em dois turnos. O primeiro disputado pela totalidade dos candidatos, e o segundo disputado apenas pelos dois candidatos mais bem votados no primeiro pleito. O segundo turno só se realiza caso nenhum candidato atinja a maioria absoluta no primeiro turno da eleição. Este sistema é utilizado também nas eleições para governadores dos estados e prefeitos das cidades com mais de 200 mil habitantes.

Esse modelo de dois turnos foi adotado na França e, depois, estendeu-se por vários países, inclusive o Brasil, que passou a optar por ele a partir das eleições presidenciais de 1989, como explica a obra Curso de Direito Constitucional, que tem o ministro Gilmar Mendes entre os autores.

Como o Senado Federal é renovado a cada quatro anos nas proporções de 1/3 numa eleição e 2/3 na seguinte, cada estado elege, por conseguinte, 1 ou 2 senadores a cada quatro anos. Por esse motivo, a eleição para o Senado se dá de forma majoritária dentro de cada estado, para escolher os senadores que representarão aquele estado.

Quando apenas um candidato deve ser escolhido, usa-se a maioria relativa dos votos com eleições separadas para cada estado. Neste sistema, cada eleitor vota em apenas um candidato e vence a eleição aquele que obtiver o maior número de votos, sem necessidade de segundo turno caso não obtenha maioria absoluta.

Nas eleições ao Senado onde dois senadores serão eleitos para cada estado, usa-se o sistema majoritário plurinominal. Os eleitores votam nos dois nomes de sua preferência e os dois candidatos com maior votação são eleitos.

Outra característica dos sistemas majoritários no Brasil é a formação de chapas. Os candidatos ao cargo de vice-presidente, vice-governador e vice-prefeito, bem como os dois suplentes de cada senador devem registrar sua candidatura junto com a candidatura do titular da chapa. Quando o eleitor vota, ele escolhe apenas o titular, sendo que o vice ou suplente é eleito automaticamente. Este sistema, apesar de amplamente empregado para o Poder Executivo em todo o mundo, é criticado no caso do Senado, pois alguns suplentes "usam" a imagem do titular para eventualmente assumir o cargo em seu lugar.

De acordo com o jornalista João Ubaldo Ribeiro em seu livro, Política: quem manda, por que manda, como manda, o princípio que orienta o sistema majoritário é simples — "quem tem mais votos, ganha". No entanto, ele explica que, na prática, há diversas complicações envolvidas. Para ilustrar isso, Torquato Jardim diz que uma das complicações é a cassação de mandado, anulação e realização e novas eleições, "como é possível perceber agora, com a aplicação da Lei da Ficha Limpa nestas eleições".

Nas eleições para a Câmara dos Deputados e para os órgãos legislativos estaduais e municipais, a Constituição Federal preconiza o uso de um sistema proporcional. Na esfera federal, a eleição deve ser realizada, de forma separada, em cada um dos estados e territórios. Candidatos à Câmara só poderão ser votados no estado em que se lançam candidatos, e concorrerão apenas às cadeiras reservadas àquele estado. Além dessas restrições, a CF impõe ainda o limite mínimo de 8 e máximo de 70 deputados para cada estado, definidos de forma proporcional à população de cada um.

O Código Eleitoral determina que o sistema proporcional utilizado é um sistema de lista aberta, onde os votos são nominais aos candidatos e as listas partidárias são compostas pelos membros mais votados de cada partido. Nos sistemas desse tipo, cada partido obtém um número de vagas proporcionais à soma dos votos em todos os seus candidatos, e estas vagas são distribuídas, pela ordem, aos candidatos mais votados daquele partido.

O Código permite também a formação de coligações entre partidos para eleições proporcionais como forma de conseguir um maior número de cadeiras, especialmente no caso de partidos pequenos que não as obteriam sozinhos.

No entanto, o grande problema das eleições proporcionais é o calculo exato das proporções devidas a cada partido. Como o número de votos quase nunca é um múltiplo exato da proporção entre cadeiras e eleitores, um sistema de arredondamento e redistribuição das vagas não preenchidas deve ser utilizado.

Quociente eleitoral
No Brasil, utiliza-se o quociente eleitoral, que leva em conta as variações de número de habitantes e votantes no país, em cada eleição. É indispensável que o cidadão saiba a quantos habitantes "equivale" um deputado. As cadeiras não preenchidas através do quociente eleitoral, são preenchidas com as sobras dos votos daqueles que se elegeram. Este sistema é equivalente ao usado em Portugal e diversos países europeus.

O quociente eleitoral é definido como o total de votos válidos dividido pelo número de vagas — são os votos dados para candidatos individuais e os votos dados só para o partido, mas não os brancos nem os nulos. Cada partido, então, tem seus votos divididos por este quociente e obtém-se assim o quociente partidário. A parte inteira desse quociente corresponde ao número de vagas reservadas àquele partido. As vagas restantes são divididas usando-se o método de distribuição das sobras entre os partidos que atingiram o quociente eleitoral.

De acordo com os especialistas, os limites mínimo e máximo para cada estado entre os deputados federais impediriam uma verdadeira proporcionalidade do voto, valorando o voto nos estados com menor população, em detrimento dos estados mais populosos.  O número mínimo é 8 e o máximo, 70.

Enquanto em São Paulo são necessários 304.533 votos para eleger um deputado nas eleições deste ano, no Rio de Janeiro foram necessários 173.884. Haveria, dessa forma, uma violação do princípio "um homem, um voto", ou, contrariando a previsão constitucional, um voto não teria "valor igual para todos". Especialistas em Direito Eleitoral explicam que esta situação não se aplica diretamente ao sistema proporcional, mas sim aos limites específicos impostos pela Constituição no número de representantes de cada estado.

Outro ponto de discussão em relação aos sistemas proporcionais é que a lista aberta seria a possibilidade de eleger representantes que obtiveram votação inferior a outros que não se elegeram, ou mesmo eleger candidatos que não obtiveram nenhum voto.

Um exemplo disso ocorreu nas eleições de 2002, quando o falecido candidato Enéas Carneiro, do Prona, obteve seis cadeiras para o partido apenas com os seus votos. Os eleitos foram Enéas, com 1.573.642 votos, Amauri Robledo Gasques, com 18.421 votos, professor Irapuan Teixeira, com 673 votos, Elimar, com 484, Ildeu Araújo, com 382 votos e Vanderlei Assis, com 275 votos e que ficaria em 634º lugar se a eleição fosse pelo princípio majoritário, de acordo com Márlon dos Reis.

Reforma eleitoral
De acordo com os integrantes da Comissão do Anteprojeto do Novo Código Eleitoral, Edson Resende, Torquato Jardim e Dias Toffoli, os pontos centrais de discussão para elaboração do novo Código são os sistemas de listas nas eleições proporcionais, o financiamento público e formas de dar maior celeridade às decisões de deferimento de registro e cassações de diplomas e mandatos de políticos envolvidos em abuso de poder econômico e político.

Em relação à legitimidade de doações de dinheiro para campanhas eleitorais feitas por empresas, o relator da Comissão, ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, afirmou nesta sexta-feira (29/10), durante XIII Congresso Brasiliense de Direito Constitucional, que tem dúvidas se a Constituição Federal possibilita a participação de pessoa jurídica no processo eleitoral por meio de doação de recursos financeiros. "Pessoa jurídica não vota. Quem vota é o cidadão. Por isso, é preciso discutir a participação das empresas neste processo", disse.

O ministro acredita que a permissão de doação de pessoas jurídicas afasta do cidadão da participação no processo eleitoral porque é muito mais cômodo para os candidatos irem a grandes empresas ou bancos do que tentar obter doações dos cidadãos. Para Toffoli, a principal dicotomia a ser debatida hoje não é entre financiamento privado e financiamento público, mas sim entre pessoa física e pessoa jurídica.

Assim como ele, Torquato Jardim, afirma que doação de empresas para campanhas eleitorais é uma forma de investimento. "E o lucro ou retorno que as empresas doadoras terão, será através de contratos e licitações que serão feitos após seus patrocinados ganharem as eleições", disse. "Os eleitos já chegam em seus cargos devendo a seus financiadores. Essa forma de financiamento só aumenta o clientelismo entre candidatos e empresas", confirma Márlon dos Reis.

Para Edson Resende, um assunto que incomoda muita gente é a mudança da lista aberta para a fechada. Porque isso reflete diretamente no financiamento de campanha. "Hoje cada candidato tem de procurar recurso para a sua campanha. E o sistema proporcional de lista fechada concentra financiamento nos partidos."

Em relação a isso, o que se vive hoje é um jogo de faz de conta, "o Ministério Público Eleitoral finge que fiscaliza as contas dos partidos e doações e a Justiça Eleitoral finge que aprova ou desaprova alguma irregularidade. O MPE não tem estrutura para fiscalizar as eleições e analisar cerca de 20 mil contas de candidatos", desabafa Márlon.

Para uma fiscalização eficaz, Resende diz que ninguém ousaria defender o sistema de financiamento público com listas abertas. "O Estado entregando recursos nas mãos de candidatos para fazerem campanha. O financiamento público deve pressupor as listas fechadas para que o estado entregue recursos para os partidos financiarem as suas campanhas", finaliza.

A comissão é formada, além de José Antônio Dias Toffoli, pelos juristas Admar Gonzaga Neto, Arnaldo Versiani Leite Soares, Carlos Caputo Bastos, Carlos Velloso, Edson de Resende Castro, Fernando Neves, Geraldo Agosti Filho, Hamilton Carvalhido, Joelson Costa Dias, José Eliton de Figueiredo Júnior, José Rollemberg Leite Filho, Luciana Muller Chaves, Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, Márcio Silva, Marcus Vinicius Furtado Coelho, Roberto Gurgel, Cezar Britto, Torquato Lorena Jardim e Walter de Almeida Guilherme.

Leia aqui o Código Eleitoral Brasileiro.
Veja aqui os temas de discussão para elaboração do Anteprojeto do Novo Código Eleitoral.

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