Experiências humanas

Tuskegee, Guatemala, medicina, Bioética e Biodireito

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26 de outubro de 2010, 14h35

No início de outubro, os Estados Unidos pediram desculpas formais ao governo e ao povo da Guatemala por uma polêmica pesquisa realizada nos anos 40, por médicos americanos, que culminou na infecção proposital de prisioneiros, mulheres e doentes mentais guatemaltecos com o vírus da sífilis. O objetivo do estudo, envolvendo cerca de 700 pacientes, era testar a eficácia da penicilina, recém desenvolvida na época. Tudo muito simples: os presos eram infectados por prostitutas e depois tratados com o antibiótico.

“O estudo de inoculação da doença transmitida sexualmente conduzida entre 1946 e 1948 na Guatemala foi claramente antiético. Embora esses eventos tenham ocorrido há mais de 64 anos, estamos indignadas que uma pesquisa tão repreensível possa ter ocorrido sob a fachada de saúde pública. Lamentamos profundamente o ocorrido e pedimos desculpas a todos os indivíduos que foram afetados por tais práticas abomináveis de pesquisa”, disseram a secretária de Estado Hillary Clinton e a secretária de Serviços Humanos e de Saúde Kathleen Sebelius em um comunicado oficial. O próprio Barack Obama pediu desculpas ao presidente da Guatemala, Álvaro Colom, que classificou os experimentos como “um crime contra a humanidade”.

As experiências na Guatemala foram descobertas por uma pesquisadora de Massachusetts, autora de um livro sobre uma pesquisa médica semelhante feita na cidade de Tuskegee, no Alabama, durante impressionantes quatro décadas — entre 1932 e 1972 — e que só foi interrompida quando ganhou as manchetes dos principais jornais dos EUA. Em Tuskegee, os pesquisadores recrutaram 399 “voluntários”, todos negros, para receberem “tratamento gratuito” contra uma doença (a sífilis) que eles simplesmente desconheciam.

A intenção dos pesquisadores em Tuskegee era estudar a evolução da doença. Os pacientes recebiam placebo e acreditavam que estavam sendo tratados. O saldo foi trágico: dos 399 “voluntários”, apenas 74 sobreviveram ao experimento. Quarenta mulheres haviam sido contaminadas e 19 crianças nasceram com sífilis congênita. A pesquisa é considerada uma das experiências mais infames da história da área de saúde pública e provocou mudanças significativas na legislação.

O Caso Tuskegee, assim como o primeiro transplante de coração, realizado pelo cirurgião sul-africano Christiaan Barnard, em dezembro de 1967, entre outros registros médicos, contribuíram para a criação e o desenvolvimento da Bioética, sustentam Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves, ambos doutores em Direito pela PUC-Minas Gerais, no livro Manual de Biodireito, lançado pela Editora Del Rey. A obra, repleta de informações atualizadas, desperta o interesse do leitor, independente da área de especialização.

O livro traça a trajetória do Biodireito e da Bioética — termo que apareceu pela primeira vez na obra Ponte para o Futuro, publicado em 1971 pelo oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter — deixando clara não apenas suas diferenças, mas também os pontos de intersecção das duas ciências. Maria de Fátima e Bruno Torquato reconhecem o fato de que o Biodireito é uma disciplina incipiente no universo jurídico e que ainda não ocupou o seu lugar nem nos currículos das faculdades de Direito. “Seu estudo é normalmente setorial”, afirmam.

Os casos, autores e precedentes citados no livro revelam um estreito entrelaçamento entre os discursos médico, ético e jurídico. “O nascimento, a morte ou a intervenção médica não são apenas fatos médicos que podem suscitar problemas éticos. São fatos jurídicos, no conceito técnico da Teoria Geral do Direito”, afirmam. “São acontecimentos naturais ou humanos que trazem consequências jurídicas, pois criam, modificam ou extinguem situações e relações jurídicas.”

No caso do primeiro transplante de coração realizado pelo cirurgião Christiaan Barnard, os dois autores recorrem ao psiquiatra chileno Fernando Lolas, autor de Bioética: o que é, como se faz, lançado no Brasil em 2001, para levantar algumas dúvidas e provocações, assim como para reforçar a importância da abordagem multidisciplinar exercitada no livro.

“Para proceder ao transplante foi necessário remover o coração ainda em funcionamento de um indivíduo com morte encefálica. Deparamos assim com questões como: quando alguém pode ser considerado morto? Quem determina esse momento, a Ciência ou o Direito? A vida consciente é a única forma de vida? Morto o encéfalo, morre também a pessoa?”

Talvez nem todas as respostas estejam no Manual elaborado por Maria de Fátima e Bruno Torquato, ao contrário dos fundamentos, todos didaticamente contextualizados ao longo das 364 páginas do livro, que aborda o Biodireito, desde a concepção humana até o fim da vida, em linguagem clara e didática, características nem sempre presentes entre os especialistas de várias áreas do conhecimento.

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