Mercado segurador

Nova taxa já produz efeitos no exercício de 2010

Autor

  • Irapuã Beltrão

    é procurador federal professor de Direito Tributário e Constitucional especialista em Direito Econômico pela FGV-RJ e em Direito do Estado pela UERJ; Master of Law pela University of Connecticut; Mestre e Doutorando pela UGF/RJ e autor de diversas obras de Direito Tributário.

24 de outubro de 2010, 6h14

Seguindo os padrões dos mercados supervisionados e submetidos ao poder de polícia das autoridades reguladoras, as empresas de seguro, previdência privada aberta e de capitalização convivem com a existência de uma taxa de fiscalização, com recursos revertidos para a autarquia, que exerce o poder de polícia.

Funda-se a tributação não apenas nas estruturas conhecidas das taxas (artigo 145, II, CRFB, e artigos 77 e 78 do Código Tributário Nacional), mas, principalmente, na competência da União Federal para o setor, ex vi a atribuição do artigo 22, VII, também do texto constitucional.

No Brasil, o aparecimento mais claro da missão regulatória acompanhou a evolução da burocracia estatal, sendo que os órgãos mais marcantes dessa função ganham estabilidade institucional a partir da reforma administrativa iniciada na década de 1960. Consolidam-se, nesse momento, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade)[1], o Banco Central do Brasil (Bacen)[2] e a Superintendência de Seguros Privados (Susep)[3], dentre outros, que antecederam as atuais agências reguladoras independentes.

No caso do mercado segurador, apesar de criada a Superintendência naquela década, a designação de recursos tributários e a criação de taxa para o financiamento da estrutura autárquica criada somente ocorreu com a promulgação da Lei 7.944, de 20 de dezembro de 1989.

Edificada no poder de polícia da Susep, aquela taxa possuía alíquota específica fundada em tabela com a segmentação das atividades, unidades da federação e faixas de patrimônio líquido das pessoas jurídicas daqueles setores de seguro, previdência privada aberta e de capitalização.

Contudo, a arquitetura traçada foi agitada pela abertura do mercado na parte do resseguro com a Lei Complementar 126, de 15 de janeiro de 2007. Alterando parcialmente o Decreto-Lei 73, de 21 de novembro de 1966, dispôs sobre a política de resseguro, retrocessão e sua intermediação, mas determinou que a taxa de fiscalização a ser paga pelos resseguradores locais e admitidos seria estipulada na forma da lei, conforme o artigo 7° da referida lei complementar.

Apesar daquela previsão em 2007, a instituição do novo modelo de taxa somente veio à tona com a Medida Provisória 472, de 15 de dezembro de 2009, recentemente transformada na Lei 12.249, de 11 de junho de 2010. Como esses dois veículos normativos trataram de diversos assuntos, destacamos que a estrutura da taxa do mercado segurador está compreendida nos artigos 48 a 58 do ato final de conversão.

Grande parte do arcabouço tributário da nova lei aproveitou o já contido na figura anterior, notadamente no que tange ao reconhecimento do fato gerador o exercício do poder de polícia atribuído à Susep (artigo 50). Contudo, motivada pela abertura do mercado mencionada, a definição dos contribuintes abraçou não apenas sociedades seguradoras[4], sociedades de capitalização e entidades abertas de previdência complementar, mas também resseguradores locais e admitidos (artigo 51).

Essa estipulação, além de cumprir a diretriz do artigo 7° citado, também se funda na classificação estabelecida no novo marco regulatório do resseguro – artigo 4° da LC 126 –, que categorizou as operadoras em locais, admitidos e eventuais. Esta última forma, como não possui sede ou sequer escritório de representação no território nacional, naturalmente, não foi atingida pela norma de incidência tributária.

Nesse novo modelo, a taxa desse mercado mantém recolhimentos trimestres apurados com base em tabela (Anexo I da Lei) de alíquota específica, mas alterando a antiga sistemática da base de cálculo com base no patrimônio líquido para a margem de solvência do setor.

Solvência, no senso geral, é o estado em que se encontra um organismo econômico que dispõe de meios pecuniários e valores realizáveis suficientes para satisfazer integralmente suas obrigações quando vencerem e se tornarem exigíveis. Assim, diz-se solvente o sujeito de direito cujo ativo, comercial ou não, mostra-se suficiente para cobrir inteiramente o passivo. Em linguagem coloquial, aquele que se acha em condições de satisfazer pecuniariamente o que deve. Ou seja, aquele que paga suas dívidas.

A avaliação de solvência de uma seguradora ou desses outros entes submetidos ao poder de polícia da Susep possui natureza probabilística, que leva em conta várias ocorrências – por exemplo, a despesa com os sinistros, que representa uma variável aleatória pela própria natureza do mecanismo de prestação dos serviços. Ademais, para a aferição dessa solvência, é necessário investigar uma série de fatores, tais como a constituição adequada das provisões técnicas, a gestão apropriada dos ativos dados como cobertura das provisões, a necessidade de capital para eventuais perdas, etc.

A ação estatal, nesse aspecto, deve visar precipuamente ao acompanhamento eficiente da capacidade de as empresas honrarem seus compromissos, zelando pelo interesse dos consumidores e interessados, bem como executando um monitoramento constante do desempenho do mercado. A análise global de uma empresa que opera com riscos aleatórios induz a uma aferição matemática que representa a margem de solvência a ser preservada.

Em breve escorço histórico, lembramos que o cálculo da margem de solvência iniciou-se com estudos avançados na Europa, concluindo-se, com base na Teoria Coletiva do Risco, que a atividade seguro, exercida empresarialmente, poderia ser definida como um processo estocástico. Como tal, sob certas circunstâncias político-econômicas, as empresas deveriam apresentar-se solventes, com certo grau de probabilidade, ou seja, o ativo excedendo o passivo com certa "margem de segurança", em relação ao excesso admitido como "reserva global de contingência".

À grandeza de "reserva global de contingência", em relação à "margem de segurança", convencionou-se chamar "margem de solvência". Os referidos estudos foram simplificados por economistas, que adotaram a sistemática constante de diretivas da Comunidade Econômica Europeia referentes aos seguros direitos vida e não vida. Partindo dessas avaliações, tomou-se comum o estudo e introdução dos conceitos e regulamentação da margem de solvência em toda a comunidade de seguros.

No Brasil, a partir de 1971, o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) fixou parâmetros para o controle da solvência das seguradoras, publicando resoluções em que se estabeleceram critérios para constituição das provisões técnicas, de capital mínimo e, mais tarde, parâmetros de margem de solvência. A abordagem do regulador brasileiro seguiu o modelo utilizado no mercado europeu, que é bem mais simples que o norte-americano, mas igualmente eficiente.

Essa margem representa, portanto, um parâmetro de mensuração próprio do setor, demanda a verificação específica de cada empresa e deve constituir, pois, uma garantia adicional aos fundos atuarialmente calculados, formada como um "ativo guarda-chuva" destinado a garantir os desvios dinâmicos de solvência que possam vir a comprometer o patrimônio da seguradora.

Em razão desse critério próprio e para cumprimento da reserva de lei e da tipicidade, pontua o novel diploma que se deve considerar não apenas a existência dos prêmios de seguro ou dos patamares de sinistro de cada pessoa jurídica, mas também os elementos próprios do setor para melhor aferição dos riscos assumidos por cada personagem do sistema nacional de seguros.

Para tanto, esclarece o artigo 49 que deve ser considerado o prêmio retido, assim compreendido não apenas aqueles emitidos em razão dos contratos subscritos, mas com as devidas deduções das restituições e as cessões de risco realizadas.

De igual forma, para melhor ponderação dos critérios próprios, devem ser verificados os patamares de sinistro retido, englobando o nível total deste, afora os sinistros correspondentes a cessões de risco. Esses dois elementos são fundamentais para a adequada compreensão da tributação no setor, uma vez que representam o melhor retrato da atividade securitária que naturalmente convive com a cessão de riscos e prêmios para dispersão dos riscos.

Justamente neste ponto reside a principal novidade da taxa, já que a lei cuidou da definição dos padrões de cálculo para cada um dos segmentos. Fica explícita não somente sua base de cálculo da taxa de fiscalização, como também os elementos que a compõem, ou seja, os prêmios e os sinistros[5].

Na forma do artigo 52 da Lei 12.249, de 2010, surge a necessidade de se aplicar uma fórmula para alcançar o valor da margem de solvência, associado aos parâmetros da tabela constante no Anexo I do diploma legal. Essa sistemática com as duas variáveis (prêmios e sinistros) explicita, de forma direta, a capacidade contributiva das empresas e organizações reguladas.

Tal sentido caminha na mesma direção já traçada pela Suprema Corte, que, ao analisar a taxa de fiscalização decorrente do poder de polícia da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), conclui:

A base de cálculo dessa típica taxa de polícia não se identifica com o patrimônio líquido das empresas, incorrendo, em consequência, qualquer situação de ofensa à cláusula vedatória inscrita no artigo 145, parágrafo 2º, da Constituição da República. O critério adotado pelo legislador para a cobrança dessa taxa de polícia busca realizar o princípio constitucional da capacidade contributiva, também aplicável a essa modalidade de tributo, notadamente quando a taxa tem, como fato gerador, o exercício do poder de polícia[6].

De igual forma, amparada nas lições colhidas da taxa de fiscalização do mercado de capitais, esse formato da utilização de alíquotas específicas com base em faixas para a identificação dos contribuintes efetiva os ditames constitucionais da igualdade, observando-se as conclusões do escólio do Pretório Excelso:

[…] 3. Ausência de violação ao princípio da isonomia, haja vista o diploma legal em tela ter estabelecido valores específicos para cada faixa de contribuintes, sendo estes fixados segundo a capacidade contributiva de cada profissional. 4. Taxa que corresponde ao poder de polícia exercido pela Comissão de Valores Mobiliários, nos termos da Lei 5.172, de 1966 – Código Tributário Nacional. […].[7]

Outrossim, essa técnica resultante da inclusão dos parâmetros prêmios e sinistros na lei da taxa reflete ainda adequadamente o binômio capacidade contributiva vs. custo da atividade estatal, considerando que aquela medida de solvência havida na norma também reflete as medidas de polícia necessárias para a regulação e controle setorial.

Ainda no aspecto quantitativo, a adoção do tributo de forma fixa na base daquelas tabelas e variáveis mencionadas acima afasta qualquer eventual debate sobre a constitucionalidade da base de cálculo adotada, uma vez que, definitivamente, não emprega a matéria tributável integral de qualquer imposto.

Nesse contexto, a referida mensuração da taxa, além de bem representar a capacidade contributiva das organizações jurídicas reguladas, coaduna-se com a interpretação definida pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula Vinculante 29[8] no início deste ano de 2010.

Por tudo isso, essa nova hipótese tributária consolida os melhores aspectos e parâmetros do setor e das taxas de polícia do mercado financeiro, mantendo, no mais, aspectos da estrutura anterior, tal qual o recolhimento trimestralmente até o último dia útil do primeiro decêndio dos meses de janeiro, abril, julho e outubro de cada ano (artigo 53 Lei 12.249, de 2010), com apuração pelas demonstrações financeiras encerradas em 30 de junho e 31 de dezembro (artigo 53, parágrafo único).

Por fim, importa destacar que a nova taxa já produz os seus efeitos neste exercício de 2010, considerando a publicação da medida provisória ainda em dezembro de 2009. Tanto assim que, explicitamente, determina o artigo 139, II, da Lei 12.249, de 2010 a produção de efeitos a partir do segundo trimestre, respeitada regra nonagesimal. E, como não poderia deixar de ser, expressa revogação (artigo 140, I, da Lei 12.249, de 2010) da Lei 7.944, de 1989. Cabe apenas agora convivermos com esse remodelado tributo.


[1] Criado pela Lei 4.137 de 1962; é a agência judicante do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.

[2] Criado no seu atual modelo pela Lei 4.595, de 1964, para regular as atividades do sistema financeiro, além de ser a autoridade monetária.

[3] Criada com o Decreto-Lei 73, de 1966, para regular as atividades do sistema de seguros privados.

[4] Excetuam-se as seguradoras especializadas em seguro saúde, já que tais sociedades não estão submetidas ao poder de polícia da Susep, mas, sim, supervisionadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), dada a especialização anteriormente determinada pelo art. 1º da Lei 10.185, de 2001: “Art. 1° As sociedades seguradoras poderão operar o seguro enquadrado no art. 1°, inciso I e § 1°, da Lei n° 9.656, de 3 de junho de 1998, desde que estejam constituídas como seguradoras especializadas nesse seguro, devendo seu estatuto social vedar a atuação em quaisquer outros ramos ou modalidades”.

[5] Destacamos este ponto, uma vez que não havia referência explícita na lei anterior de que os prêmios e os sinistros compõem a base de cálculo da margem de solvência.

[6] STF – 2a Turma, RE-AgR n° 191.417-PE – Rel. Min. Celso de Mello, julg. 9/5/2000.

[7] STF – Pleno, ADI n° 453/DF – Rel. Min. Gilmar Mendes, julg. 30/8/2006.

[8] “É constitucional a adoção, no cálculo do valor de taxa, de um ou mais elementos da base de cálculo própria de determinado imposto, desde que não haja integral identidade entre uma base e outra.”

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    é procurador federal, professor de Direito Tributário e Constitucional, especialista em Direito Econômico pela FGV-RJ e em Direito do Estado pela UERJ; Master of Law pela University of Connecticut; Mestre e Doutorando pela UGF/RJ e autor de diversas obras de Direito Tributário.

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