Acima da especulação

Mesmo privada, propriedade tem função social

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10 de outubro de 2010, 10h00

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Ricardo Lira - Spacca - Spacca

A cidade não é apenas de quem é proprietário, mas de quem vive nela. Por esse motivo, imóveis não podem ficar eternamente sem construção ou desocupados acumulando valor comercial. Práticas especulativas como essa podem, inclusive, causar expropriação pelo poder público. É o que lembra um dos mais respeitados especialistas em Direito Urbanístico e de Cidades do Rio de Janeiro, o advogado e professor Ricardo-Cesar Pereira Lira. 

Com 77 anos, 50 dos quais passou dando aulas na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Ricardo Pereira Lira recebeu, há pouco mais de uma semana, o título de professor emérito da instituição. 

Ele foi o precursor da Pós-Graduação na Universidade, que começou com um curso nada convencional: o de Direito das Cidades. Morando na capital fluminense a poucos metros de um morro ocupado irregularmente — algo bastante comum na cidade —, o advogado, especializado em Direito urbanístico, passou a ver a ocupação metropolitana de forma diferente.

Ricardo Lira engrossa as fileiras dos que defendem a urbanização das favelas, e está na linha de frente dos que combatem a especulação imobiliária. 

Para ele, moradias não regularizadas, principalmente nas regiões mais pobres, são o custo da urbanização e da concentração de renda nas capitais e, por isso, não podem ser tratadas com descaso. É a população que trabalha nos grandes centros e ajuda a aquecer a economia que, na maioria das vezes, é obrigada a viver de forma precária. É dever do poder público regularizar essas áreas e fornecer os serviços essenciais.  

Pai de José-Ricardo e Jerônimo José, Ricardo Pereira Lira formou-se em Direito em 1955 pela antiga Universidade do Estado da Guanabara, a atual Uerj. Foi procurador do Estado, presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), diretor e vice-diretor da Uerj, e diretor-geral da Escola Superior de Advocacia da OAB-RJ. Também atuou na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Leia a entrevista.

ConJur — De onde surgiu a ideia de um curso de pós-graduação em Direito da Cidade?
Ricardo Pereira Lira — Quando era diretor da Faculdade de Direito da Uerj, em 1987, eu e os colegas da faculdade estávamos preocupados com o problema da ocupação absurdamente irregular e injusta do solo urbano. Resolvemos fazer uma área de concentração em Direito da Cidade, que procurava exatamente analisar as causas da má ocupação do solo urbano. Os instrumentos jurídicos poderiam ser utilizados para organizarmos a cidade, através dos planos diretores municipais, partindo da função social da propriedade para chegarmos a uma função social da cidade, em que todos, de alguma forma, pudessem ter o direito de habitação razoavelmente atendido. Nós criamos várias disciplinas exatamente partindo das causas dessa ocupação.

ConJur — E quais foram essas causas?
Ricardo Pereira Lira — A primeira delas foi a própria maneira inteiramente desordenada com que se deu a emancipação dos escravos no Brasil. O Brasil foi o último país a implementar a libertação dos escravos, e por pressão da Grã Bretanha. Essa libertação se deu sem nenhuma assistência aos afrodescendentes, sem nenhuma preocupação em mantê-los no campo. Os que permaneceram ficaram totalmente desatendidos, sem emprego. A política de imigração substituiu a mão-de-obra negra, que foi para os grandes centros urbanos. Foi quando surgiu a primeira favela no Rio de Janeiro. A segunda causa foi a inexistência de uma verdadeira política de fixação do homem no campo. Apesar das tentativas, o Brasil ainda hoje peca por não ter planos do governo. Cada governo que entra tem um determinado plano. A outra grande causa da ocupação irregular do solo urbano foi a industrialização enfaticamente ocorrida com o plano de metas do presidente Juscelino Kubitschek. Como dizem os planejadores urbanos, para toda industrialização existe uma urbanização correspondente, uma atração para os centros urbanos. A ocupação se realizou de maneira inteiramente desordenada. A migração do Nordeste para o Sudeste fez com que os migrantes passassem a ocupar, no Rio de Janeiro, os picos dos morros e, em São Paulo, as periferias. Hoje, os números de praças públicas na periferia paulista ocupada são impressionantes.

ConJur — E de que modo o Direito pode ajudar a resolver esses problemas de urbanização?
Ricardo Pereira Lira — Estudamos as causas. Foi elaborado o Estatuto da Cidade, uma lei de 2001, com vários instrumentos novos e já em atendimento àqueles princípios básicos que haviam sido estabelecidos pela Constituição de 1988. Sobretudo, o estabelecido no artigo 182, parágrafo 4, que trata do problema do parcelamento compulsório e da edificação compulsória. Houve toda uma mudança no sentido de propriedade.

ConJur — Em que sentido?
Ricardo Pereira Lira — A noção clássica da propriedade abrange três direitos: um é usar, outro é gozar, ou seja, auferir frutos da coisa da qual se é dono, e outro é o de reivindicar o que uma pessoa detém injustamente, quando já foi despojada daquilo. Nesse sentido, o direito de propriedade dá ao proprietário prerrogativas com relação a terceiros sobre as coisas que estão sob seu domínio. Ao longo do tempo, com a evolução da doutrina, partiu-se para a concepção de que ser proprietário de um determinado bem não significa que só haja prerrogativas sobre esse bem com relação a terceiros. Significa que há também deveres para com terceiros. Quem é proprietário de algo tem deveres para com a comunidade. A propriedade tem uma função social. A Constituição de 1988 absorveu isso. Em determinadas circunstâncias, são estabelecidos parâmetros de acordo com as regras federais e conforme o plano diretor que venha a ser votado pela Câmara de Vereadores. Esse plano pode prever esses instrumentos da edificação compulsória e do parcelamento compulsório.

ConJur — O dono do terreno não constrói quando bem entende?
Ricardo Pereira Lira — Não. Ele pode ser obrigado a construir em determinado prazo por imposição de uma lei municipal, devidamente constitucional, em que dentro de um certo prazo é obrigado a construir, sob pena de uma exacerbação do imposto predial. Se não cumprir essa obrigação, pode chegar até a uma expropriação sancionatória, em que é expropriado de sua propriedade imóvel, porque a deixou vazia, sem construção. Nesse caso, evidentemente, é preciso haver indícios de especulação imobiliária. O município obriga o proprietário a construir ou parcelar.

ConJur — Isso já aconteceu?
Ricardo Pereira Lira — Sim, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Há o perímetro urbano, os vazios urbanos, e depois a periferia, onde se instalam os migrantes. O especulador compra lotes nesse vazio e espera o momento em que o prefeito do município, pressionado pelos que estão na periferia, instala equipamentos urbanísticos comunitários nesses vazios. Nesse momento, o indivíduo que adquiriu os lotes vazios os vende, agregando valor que conseguiu em razão exatamente da instalação e da implementação de equipamentos urbanísticos comunitários. Esse é exatamente o fenômeno da especulação imobiliária. Há instrumentos fundamentais para que haja uma função social da cidade. A cidade não é apenas de quem é proprietário nela. É de quem vive nela, mesmo que não seja proprietário. Pode ser inclusive de estrangeiros residentes e não proprietários, e até de meros turistas, que precisam ter uma cidade devidamente organizada e com bens suficientes para momentos de lazer.

ConJur — No caso da favelização de espaços públicas, seria aplicável o instituto do usucapião?
Ricardo Pereira Lira — Jamais. O usucapião é um instrumento muito lento e complicado. As ações de usucapião levam, quando chegam ao fim, 20 ou 30 anos. Não se consegue nunca chegar a uma regração fundiária, a meu ver, através desse instrumento. Eu acho que não é por meio do usucapião que nós vamos chegar a soluções urbanísticas. Nós vamos ter que ter novos instrumentos.

ConJur — A urbanização de favelas é um caminho?
Ricardo Pereira Lira — Eu sou inteiramente favorável à urbanização. É evidente que nem o socialismo real igualaria a todos. Mas o importante é que sejam assegurados a todos os bens essenciais para uma vida digna. Todos têm que ter — e isso não há — a garantia do mínimo de bens essenciais para uma vida digna. Estamos em um processo, que não começou com o governo estadual atual, mas já era esboçado por projetos anteriores, que visa a urbanização da população carente.

ConJur — A urbanização das favelas não atrai ainda mais gente?
Ricardo Pereira Lira — É inevitável. A política de urbanização será acompanhada de uma ascensão econômica das pessoas que estão nos níveis de pobreza. O evitável é impedir a ocupação de áreas de risco, o que o governo historicamente permite. Pessoas em áreas de risco precisam ser removidas para locais próximos, com moradia decente. Isso não se limita à urbanização das favelas, mas demanda também a regularização da ocupação imobiliária. Uma das formas de regularização fundiária em sentido estrito é dar títulos de propriedade ou, eventualmente, de posse. Se durante certo tempo não aparecer nenhum domínio evidente com relação àquela área, a posse pode ser transformada em propriedade. Há muitos anos, uma pastoral fez uma enquete em uma favela. A intenção era saber se as pessoas preferiam a titulação pela posse ou pela propriedade. Eles foram unânimes em dizer que queriam a titulação pela propriedade, demonstrando o fetiche da propriedade imobiliária.

ConJur — O que fazer para abrigar pessoas que trabalham nas áreas mais valorizadas?
Ricardo Pereira Lira — Esse é um problema gravíssimo, tratado por um segmento do conhecimento que se chama mobilidade urbana. Para enfrentar isso, são necessárias políticas públicas fundamentais e dinheiro público drenado para ações concretas. A locomoção para lugares distantes é absolutamente inconveniente, a não ser que se garanta transporte adequado, com linhas de metrô e condução barata. Do contrário, haverá dificuldades até para a economia. O empregador, capitalista que é, não vai empregar uma pessoa com quem tenha que gastar R$ 20 de condução por dia.

ConJur — O senhor foi precursor da pós-graduação na Uerj. Como foi a experiência?
Ricardo Pereira Lira — Eu achei que era o momento de criarmos uma pós-graduação, e que deveríamos fazer logo uma pós-graduação stricto sensu, com mestrado e doutorado. E deveríamos fazer em uma área de concentração pioneira e desafiadora, e não como outros programas, aprofundados em Direito Civil, Processual Civil, Tributário e do Consumidor. 

ConJur — Qual sua avaliação do ensino jurídico no país?
Ricardo Pereira Lira — Primeiro, nós temos que estabelecer a absoluta necessidade de concursos públicos para o provimento dos cargos docentes nas universidades públicas. É o concurso que realmente seleciona, e que promove o aperfeiçoamento da docência. Também é preciso estudar com muita paciência uma modificação curricular. A universidade clássica, do saber pelo saber, tinha uma atividade muito intensa, é verdade. Mas com a chegada do século XVIII, surgiram três revoluções muito importantes: a científica, a industrial e a democrática. A universidade passou a compreender que tinha de cooperar com as mudanças e transformações sociais. A universidade tem que estar atenta à realidade da vida, e não acastelada na criação do saber. Tem que estar integrada nas comunidades, e deve aplicar esse saber. 

ConJur — A falta de qualificação do mercado de trabalho reflete isso?
Ricardo Pereira Lira — Esse é um problema que o Brasil está começando a sentir. Há empregos, mas não há qualificação técnica. A meu ver, o aluno vai ter que obter qualificação técnica em uma integração da universidade com as empresas. Temos que ter uma transformação curricular, sobretudo na pós-graduação, e com mais intensidade até no doutorado, local ideal para experimentações mais sofisticadas. Na graduação, é preciso haver mais ênfase no Direito Ambiental, Urbanístico. 

ConJur — Quais os progressos no ensino do Direito nos últimos 50 anos?
Ricardo Pereira Lira — Há uma maior qualidade no corpo docente. Tive grandes mestres, figuras ordinariamente sabedoras, mas nem todos tinham a capacidade didática de ensinar bem. Se tive três bons professores, entre dezenas na minha formação jurídica, foi muito. De fato, eram todos cabeças pensantes, extraordinários, gênios. Mas não eram pessoas com a formação específica para serem professores. Nisso há um progresso. Também há uma importância muito grande no desenvolvimento da pós-graduação. Tenho analisado dissertações extraordinárias.

ConJur — Tanto nas universidades públicas quanto nas particulares?
Ricardo Pereira Lira — As universidades particulares devem ser analisadas com muita cautela. No Brasil, sobretudo, elas ficam enraizadas em determinadas famílias. Isso é muito ruim, porque nem sempre os descendentes têm a mesma preocupação e a mesma formação intelectual dos grandes impulsionadores e desencadeadores do processo. O ensino não deve ser mercantilizado. A ênfase deve ser dada às universidades públicas.

ConJur — Milhares de bacharéis em Direito saem todos os anos das faculdades, mas nem todos conseguem passar no Exame de Ordem da OAB. Isso mostra a utilidade da prova?
Ricardo Pereira Lira — Enquanto o ensino jurídico não for o que imaginamos como o ideal, o Exame de Ordem é uma necessidade. As universidades convencionais, por exemplo, ainda conservam uma certa qualidade por causa da velha tendência da educação dos jesuítas. 

ConJur — Qual sua opinião sobre cotas para estudantes nas universidades públicas?
Ricardo Pereira Lira — Sou inteiramente favorável a cotas sociais que, no fundo, vão refletir nas raciais. Quem arca com os problemas sociais, em princípio, são os negros no Brasil. Mas o princípio é o das cotas sociais. A Uerj é pioneira nisso, cumprindo uma lei estadual sobre as cotas. A primeira observação sobre a novidade, no entanto, me deixou um pouco preocupado. Meus colegas dizem que há uma certa segregação dos cotistas, que não se integram inteiramente com os demais alunos. Também há relatos de que certos alunos estão desnutridos, chegando a passar mal nas aulas. Quando a universidade entra em greve, às vezes por até seis meses, e a biblioteca fecha, eles não estudam, já que dependem da biblioteca. No dia em que tivermos um ensino fundamental devidamente cuidado e aperfeiçoado, não vamos ter a necessidade de cotas. Enquanto isso não acontece, sou inteiramente favorável à política de cotas, mas desde que se dê bolsas mais significativas para os cotistas.

ConJur — O Supremo entendeu que as universidades públicas podem cobrar pelos cursos de pós-graduação. Há planos para isso na Uerj?
Ricardo Pereira Lira — A Constituição Estadual impede a Uerj de cobrar qualquer taxa, de qualquer níquel. Na pós-graduação, pelo menos até o tempo em que fui professor, os alunos eram procuradores do estado, do município, desembargadores, juízes federais, pessoas muito bem colocadas na vida. Nós teríamos que mudar o texto constitucional para cobrar os cursos de pós-graduação. 

ConJur — Isso precisaria mudar?
Ricardo Pereira Lira — A Uerj não cobra nem o estacionamento. O Antonio Celso Alves Pereira, que foi reitor há alguns anos, já pensou em cobrar pelo menos isso. Carros caríssimos ficam estacionados e ninguém paga nenhum centavo. Se a pós-graduação é elitista, por que ninguém pode pagar? Nós precisamos rever isso.

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