Constituição reconciliadora

Perdão é argamassa social na África do Sul

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

10 de outubro de 2010, 3h20

Hipótese de assimilação global do continente africano é pensada a partir do fim do apartheid na África do Sul. É que a África do Sul é país de perfil econômico distinto dos demais da África subsaariana. Há industrialização, diversificação econômica, presença mais densa na economia internacional. A Bolsa de Valores de Johannesburgo detém importante posição no concerto financeiro. Indústria manufatureira e mineração promovem a geração de recursos. A África do Sul ostenta níveis e referenciais estatísticos muito superiores a seus vizinhos no continente.

A diversidade de grupos humanos, de perspectivas, de línguas e de circunstâncias culturais bem nítidas é desafio para uma engenharia constitucional que parte de premissas de isonomia e de igualdade imaginada, no formalismo do constitucionalismo racional e iluminista. Reproduz-se na contemporaneidade o papel do missionário europeu do século XIX, que sob o disfarce da missão civilizadora do homem branco arrogou-se no direito de reformatar uma tradição normativa de tempos imemoriais.

O preâmbulo da constituição da África do Sul inicia-se com reconhecimento de injustiças do passado. Diz-se fazer honra àqueles que sofreram pela justiça e pela liberdade. Menciona-se respeito àqueles que trabalharam para a construção e desenvolvimento do país. A unidade na diversidade parece ser a linguagem constitucional. Tem-se a Constituição como elemento estruturante para a cura das divisões do pretérito como argamassa de sociedade baseada em valores democráticos, na justiça social e nos direitos humanos fundamentais. Invoca-se que Deus proteja o povo sul-africano, exortação feita nas diversas línguas faladas no país. Lêem-se então incitações como May God protect our people, Nkosi Sikelei iAfrika, Morena boloka setjhaba sa heso, God seëm Suid-Afrika, God bless South Africa, Mudzimu fhatutshedza Afurika, Hosi katekisa Afrika.

A República da África do Sul é definida como Estado soberano e democrático baseado em valores de dignidade humana, de busca da igualdade e do avanço dos direitos humanos, das liberdades, de luta contra o racismo e contra a discriminação sexual, de supremacia constitucional em relação às demais normas jurídicas. Adere-se também ao sufrágio universal. Insiste-se que a Constituição é a suprema lei da República, que toda lei ou conduta contrária ou inconsistente com a constituição é inválida e que as obrigações determinadas pelo texto constitucional devem ser cumpridas.

Menciona-se cidadania comum para todos os sul-africanos. A todos os cidadãos outorgam-se direitos, privilégios e benefícios de cidadania, com igualdade de sujeição. Remete-se à legislação ordinária nacional a regulamentação referente à aquisição, perda e restauração de cidadania. Escreveu-se que o hino nacional da República é determinado pelo Presidente por meio de proclamação. Indica-se que a bandeira nacional tem cores preta, dourada, verde, vermelha e azul, como descrita em anexo ao texto constitucional.

A diversidade do país, percebida em campo glotológico, é objeto de seção longa referente ao uso das várias línguas faladas na África do Sul. As línguas oficiais são sepedi, sesotho, setswana, siswati, tshivenda, xitsonga, afrikaans, inglês, isindebele, isixhhosa e isizulu. Reconhece-se a mitigação histórica no uso de várias línguas nativas, determinando-se que o Estado tome medidas no sentido de proporcionar retomada de uso, manutenção e desenvolvimento dessas várias falas. O governo federal e os governos provinciais devem utilizar as muitas línguas, no contexto em que elas têm maior expressividade e poder de comunicação. Governos municipais precisam levar em conta a linguagem e as preferências dos residentes. Uma Comissão de Línguas, segundo a constituição da África do Sul, deverá promover o uso das línguas oficiais, de línguas khoi, nama e san, de sinais de comunicação. Essa Comissão tem obrigação de promover o respeito por línguas utilizadas pelas várias comunidades da África do Sul, a exemplo do alemão, do árabe, do grego, do guajarati, do hindi, do português, do tamil, do telegu, do urdu. Determina-se também que o árabe, o hebraico, o sânscrito e outras línguas possam ser utilizadas com propósitos religiosos.

A declaração de direitos na África do Sul é tida como a pedra fundamental da democracia que se pretende ver vitoriosa no país. A declaração entroniza direitos do povo, afirmando os valores democráticos referentes à dignidade humana, bem como a igualdade e a liberdade. Escreveu-se que o Estado deve respeitar, proteger, promover e implementar os direitos previstos na Declaração de Direitos. Há seção que se presta para consubstanciar a aplicabilidade normativa e fática da declaração de direitos. Indica-se que essa declaração se aplica a todas as leis, vinculando os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como todos os demais órgãos do Estado. A declaração se aplica a pessoas físicas e jurídicas, explicitamente.

Toca-se em ponto historicamente complicado na África do Sul declarando-se que todos são iguais perante a lei, com direitos à proteção e benefícios da lei. A isonomia inclui, nos termos da constituição da África do Sul, total e igual gozo de direitos e liberdades. De modo a se promover a igualdade, medidas legislativas serão desenhadas para se coibir discriminações. Curioso que o texto fala em discriminação injusta (unfair discrimination). Ainda, na mesma seção, escreveu-se que a discriminação (…) é injusta a menos que se determine que seja justa. Consequentemente, pelo menos no plano retórico de traduzibilidade direta, sem transposição necessária em direito comparado, tem-se que, em tese, pode se falar em justa discriminação, no texto constitucional sul-africano.

Indica-se que todos têm dignidade inerente, bem como direito de respeito e de proteção para com essa dignidade. O direito à vida também está plasmado na constituição da África do Sul. O direito à liberdade não pode ser suprimido arbitraria ou injustamente. Pena de prisão exige julgamento prévio. Proíbe-se o direito de tortura. Vedam-se punições cruéis, desumanas ou degradantes. Conferem-se direitos a integridade física e psicológica, o que inclui o direito de se decidir sobre reprodução, segurança e controle do próprio corpo. Ninguém poderá ser submetido a experimentos médicos e científicos, sem que seja informado ou que dê consentimento.

Proíbe-se a escravidão, a servidão e o trabalho forçado. Protege-se a privacidade, o que significa proteção de invasão ao domicílio, de perda de propriedade, além de cuidados para com o sigilo de comunicações. Indica-se que todos têm direitos de liberdade de consciência, religião, pensamento, crença e opinião. Os cultos religiosos receberão apoio de instituições estatais, na medida em que se observe filiação religiosa livre e voluntária. Respeitam-se modelos e rituais tradicionais de direito de família, referentes a cerimônias de casamento, por exemplo. Há seção que consagra a liberdade de expressão, que compreende imprensa, criatividade artística, liberdade acadêmica e de pesquisa científica. A liberdade de expressão não alcança propaganda de guerra, incitação à violência ou ao racismo, entre outros. Vislumbram-se direitos de associação.

A seção que elenca os direitos políticos dá conta de que todo cidadão é livre para fazer escolhas políticas, que inclui direitos de, por exemplo, participar de atividades políticas. Escreveu-se que todo o cidadão tem direito de eleições livres, justas e regulares para todos os corpos do legislativo, como estabelecidos na Constituição. A todo adulto outorga-se o direito de votar e de ser votado. Proíbe-se que a cidadania seja subtraída de seu titular. Garante-se o direito de trânsito, incluindo-se o direito de se deixar o país. O direito ao passaporte é garantido em excerto da constituição da África do Sul.

A todo cidadão se garante o direito de escolha de trabalho, ofício ou profissão. O texto constitucional sul-africano disciplina relações de trabalho, permitindo liberdade de adesão a sindicato. Garante-se o direito de greve. A mesma seção garante também direitos de empregador.

O meio ambiente recebe tratamento em seção específica. Escreveu-se que todos têm direito a ambiente que não seja prejudicial à saúde e ao bem estar. Diz-se garantir um meio ambiente protegido, para o benefício das gerações presentes e futuras, por intermédio de medidas legislativas razoáveis, além de outras que possam prevenir a poluição e a degradação ecológica. Busca-se promover a conservação ambiental, assegurando-se desenvolvimento ecológico sustentável e uso de recursos naturais enquanto se promova também justificável desenvolvimento social e econômico.

Uma seção longa descreve o modelo constitucional sul-africano relativo a proteção da propriedade. Adianta-se que ninguém poderá ser privado da propriedade, exceto em termos de lei que tenha aplicação geral. Escreveu-se também que a lei não poderá permitir apropriação arbitrária da propriedade. Lei de âmbito geral que defina perda de propriedade deve atender a interesse público. Deve também submeter o Estado a pagamento de compensação justa, que atenda ao equilíbrio entre o interesse público e o do particular. Inúmeras circunstâncias relevantes devem ser levadas em conta, a exemplo do uso atual e histórico da propriedade, do valor da mesma, dos propósitos da desapropriação; a propriedade a ser desapropriada não se limita à terra.

Escreveu-se que todo sul-africano tem direito a serviços de saúde, inclusive acompanhamento para gravidez. O texto constitucional sul-africano ainda fala em garantia de comida e água suficientes, além de seguridade social, que inclui assistência social apropriada. A ninguém pode se recusar tratamento médico de emergência.

Uma seção extensa enumera os direitos das crianças. Há direitos ao nome, à nacionalidade, a cuidado familiar, ou alternativamente a outros tipos de cuidados, quando a criança for removida do ambiente doméstico. A constituição da África do Sul também prescreve que às crianças se deve nutrição básica, abrigo, atendimento de saúde e de serviços sociais. As crianças encontram-se constitucionalmente protegidas de maus tratos, negligência, abuso, degradação, exploração no trabalho. Não se permitem que crianças trabalhem em locais inapropriados para menores ou que coloquem em risco o bem estar, educação, a saúde física, mental e espiritual das mesmas, bem como o desenvolvimento moral e social. Determina-se que crianças não possam ser detidas exceto em casos de última necessidade; e ainda assim devem estar separadas de maiores de dezoito anos.

A educação recebe seção especial. A educação básica é direito consagrado no texto constitucional. Indica-se que é de todos o direito à educação em língua oficial ou língua de sua escolha, em estabelecimentos educacionais públicos. Tomou-se o cuidado de se indicar que a escolha da língua limita-se pela possibilidade de que a educação básica possa ser oferecida razoavelmente na modalidade lingüista apontada. A insistência com questões de língua revela preocupação nacional. Apontou-se que todos têm o direito de usar a própria língua e de participar de ambiente cultural de livre escolha, na medida em que tais escolhas não conflitem com a declaração de direitos. Proíbe-se que se obstrua o amplo uso da língua de escolha e dos costumes tradicionais. O direito à informação, de modo genérico, e especificamente em relação a dados em posse do Estado, está também consubstanciado na constituição da África do Sul.

Indica-se o livre acesso ao Judiciário e a todas as formas de justiça, abraçando-se aparente pluralismo jurídico. Especificou-se que todos têm o direito de submeter quaisquer disputas por meio da aplicação da lei, mediante audiência justa junto a tribunal ou, onde apropriado, junto a qualquer outro tribunal independente. O direito ao silêncio é garantia do preso. Escreveu-se que essa prerrogativa deve ser imediatamente informada pela autoridade policial. O prazo de prisão que antecede apresentação do detido a autoridade judiciária não pode exceder 48 horas. Não se admite uso de provas obtidas de modo contrário às previsões gerais da constituição sul-africana.

Ao disciplinar o estado de emergência a constituição da África do Sul concebe quadro de direitos que não podem ser suspensos, ou que podem ser limitados, de forma parcial. Igualdade, dignidade humana, vida, liberdade, segurança, entre outros, compõem o curioso painel. A generalidade da regra fica excetuada quando se veda sua aplicação a estrangeiros e aqueles que são detidos por motivo de conflito armado. Embora tenha se consignado que o Estado sul-africano esteja obrigado a vincular-se a padrões de internacional humanitário, especialmente em relação a tratamento dispensado a detidos.

A constituição da África do Sul possui seção hermenêutica, determinando-se o modo de interpretação da declaração de direitos. Diz-se que o exegeta deve promover os valores que subjazem em sociedade aberta e democrática, baseada na dignidade humana, na igualdade e na liberdade. Deve o juiz levar em conta o direito internacional e o direito estrangeiro. Indicou-se que ao interpretar qualquer legislação, ou ao desenvolver direito costumeiro ou jurisprudência, todo magistrado deverá promover o espírito, propósito e objeto da declaração de direitos.

O governo pulveriza-se em setores nacional, provincial e local, que nos termos da constituição sul-africana são distintos, interdependentes e inter-relacionados. Anunciou-se que todas as esferas de governo estão obrigadas ao cumprimento das disposições constitucionais. Espaço discursivo de marcante teor retórico determina que o executivo deve agir com o objetivo de preservar a paz, a unidade nacional e a indivisibilidade da República. Deve o administrador público zelar por um governo coerente, transparente e responsável. Exige-se lealdade à constituição, à República e ao povo sul-africano. Operações conjuntas são marcadas, na linguagem da constituição, pela assistência mútua.

A administração local centra-se em municipalidades. Essas municipalidades dividem-se em três categorias. A categoria A contempla municípios que possuem autoridades executivas e legislativas exclusivas. A categoria B indica municípios que dividem autoridades executivas e legislativas com municípios de categoria C. Essa última categoria alcança municípios que abrangem várias áreas administrativas.

O Parlamento é composto por uma Assembleia Nacional e por um Conselho Nacional de Províncias. Ambos os órgãos desenvolvem o processo legislativo. A Assembleia Nacional detém a representação popular e o Conselho Nacional de Províncias atende aos interesses das unidades provinciais. Cape Town, a Cidade do Cabo, é a sede do Legislativo sul-africano. A Assembleia Nacional conta com número de 350 a 400 membros, que a constituição sul-africana indica explicitamente como homens e mulheres. Veda-se a candidatura, entre outros, de insolventes, de sentenciados a período maior do que 12 meses e a pessoas com problemas mentais. O mandato é de cinco anos. O Conselho Nacional de Províncias conta com dez representantes de cada unidade.

Há também poderes legislativos sediados nas províncias, inclusive com competência para confecção e fixação de constituições provinciais, na medida em que essas últimas guardem estreita relação com a constituição nacional. A propósito das províncias, há seção na constituição sul-africana que estabelece regras aplicáveis a conflitos entre a legislação nacional e a das províncias. Como ponto de partida identifica-se que a norma nacional prefere o dispositivo provincial, na medida em que se implementem e se apresentem certas circunstâncias. Entre elas, política e segurança nacionais, mercados, meio ambiente. Definiu-se que antinomia absoluta determina a prevalência de norma nacional em face de norma ou constituição provincial.

O presidente da República é o chefe do poder executivo. É sua missão institucional a defesa e o respeito à constituição. É sua obrigação promover a unidade da nação. O presidente lidera um gabinete que conta também com um presidente delegado (deputy president), além dos ministros, que são de sua livre escolha. Há o reconhecimento da chefia de líderes tradicionais. Poderes e competências decorrem de normas consuetudinárias, aceitas pelo Estado.

A autoridade judiciária é investida nos vários juízes e tribunais. Escreveu-se que nenhuma pessoa ou órgão poderá intervir no funcionamento das cortes. Determina-se que as cortes são independentes e estão sujeitas apenas a constituição e às leis, que devem aplicar imparcialmente, sem medo, favores ou preconceitos. O Judiciário da África do Sul é composto por uma Corte Constitucional, por um Supremo Tribunal de Apelação, por Tribunais de 2º Grau e pelos magistrados em geral. A Corte Constitucional aprecia matérias afetas a questões de constitucionalidade. Especialmente, exerce controle concentrado de constitucionalidade de leis. Aprecia disputas entre órgãos estatais. Juízes são indicados pelo presidente, depois de consulta feita ao líder da corte constitucional.

O Direito Constitucional sul-africano prevê um protetor público que detém funções típicas de ministério público. Há comissão de direitos humanos e comissão para a promoção de igualdade entre homens e mulheres. Um auditor-geral supervisiona as contas públicas. O serviço policial é identificado no texto constitucional, tem competência nacional. A administração pública está subsumida a alguns princípios, a exemplo de altos padrões de ética profissional, eficiência, orientação para o desenvolvimento e prestação de contas.

 


 

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!