IDEIAS DO MILÊNIO

"O Brasil nunca foi tão democrático como agora"

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26 de novembro de 2010, 7h00

Reprodução/GloboNews
Silio Boccanera e o professor Timothy Power - Reprodução/GloboNewsO Brasil vive, nos dias de hoje, o período de maior consistência democrática, de toda sua História. A opinião é do brasilianista britânico Timothy Power, em entrevista ao programa Milênio, do canal de televisão por assinatura Globo News. Americano residente na Inglaterra, Power dirige o centro de estudos brasileiros da universidade de Oxford. A entrevista, concedida ao repórter Silio Boccanera, foi ao ar em 29 de setembro, dias antes do primeiro turno das eleições  (clique aqui para ver o vídeo no Blog do Milênio).

O Milênio é um programa de ideias e de inteligência, no qual jornalistas da Globo News, da mais alta qualificação, entrevistam pensadores do mundo inteiro, sobre os mais diversos assuntos. O programa é exibido às 23h30 de segunda-feira, com reapresentação às terças (3h30; 11h30 e 17h30), quartas (5h30) e domingos (7h05).

Leia a transcrição da entrevista:

Política brasileira vista de fora, sem o calor da briga eleitoral diária que às vezes mostra as árvores, mas faz perder a visão ampla da floresta. A democracia brasileira situada ao lado das experiências de outros países. O Brasil no contexto internacional. Este são alguns dos aspectos da conversa que o milênio teve com o brasilianista Timothy Power, autor de vários livros e artigos acadêmicos sobre política brasileira. Nascido e educado nos Estados Unidos mas baseado no Reino Unido, Power dirige o centro de estudos brasileiros da conceituada Universidade de Oxford, no interior da Inglaterra.

Silio Boccanera — Você tem acompanhado a política brasileira há tanto tempo, que já é especialista. Mas, na verdade, sua visão é a de alguém de fora, um estrangeiro, que não vivencia a política em seu dia a dia, que dá aulas e olha o Brasil de fora. A primeira comparação que eu gostaria que fizesse diz respeito à maturidade política do Brasil. Não vamos falar do regime militar. Mas desde o fim da ditadura, você vê o pais andando na direção correta, consolidando as instituições, se tornando mais maduro?
Timothy Power — Com certeza. Eu acho que o Brasil, desde 1985. mas principalmente desde 1989, evoluiu muito em termos de maturidade política. Na verdade ele vai nessa direção, enquanto muitos países vizinhos vão na direção contrária. Se você observar a América do Sul hoje e se perguntar que países sul-americanos fizeram mais avanços na tentativa de eliminar de seu sistema político o populismo radical – aquele que promete soluções mágicas aos problemas do país, à economia, à política, você vera que não existe nenhuma figura assim no Brasil. Havia na primeira eleição em 1989, mas depois, houve uma consolidação da classe política brasileira, os candidatos à presidência, desde o início dos anos 90, são pessoas oriundas dos meios políticos, ligadas a partidos políticos que sabem lidar com os partidos. Esse tipo de experiência e maturidade política que há hoje no Brasil não estava presente no início do período democrático, sobretudo durante a transição, em 1985, e na primeira eleição, em 1989. Certamente, há uma classe política e um sistema político com regras precisas aplicadas a todos os atores, e esses atores são cada vez mais experientes. 

Silio Boccanera — Você fez uma comparação com outros países latino-americanos. Vamos tentar fazer uma comparação mais difícil, talvez injusta, com 800 anos de democracia na Inglaterra. Mas vamos tentar. Como você vê o progresso da democracia lá, em comparação com uma democracia mais tradicional e sólida como a britânica.
Timothy Power — Em países como a Inglaterra, que é mais antiga do que aquilo que chamamos de Grã-Bretanha, a democracia começou, basicamente, com a disputa entre os partidos que existiam apenas no Parlamento e, durante séculos, não envolveu o cidadão comum. Apenas em 1832 foram feitas as reformas de base, que permitiram a inclusão de um número maior de atores. Só no século 20 a classe trabalhadora se tornou uma força política importante. Os países que se democratizaram mais cedo se deram ao luxo de aumentar a competição antes de aumentar a participação. Países que se democratizaram recentemente, como o Brasil, não podem se dar a esse luxo, não podem esperar. Quando a democratização acontece, a pressão por participação popular é imediata. O Brasil teve muita pressão vinda das camadas baixas e, ao mesmo tempo, tenta consolidar a concorrência entre os políticos. Nesse sentido, acho que o Brasil fez um trabalho muito bom no que se refere a incorporar as pessoas ao sistema político. Antes de 1985, os analfabetos brasileiro não podiam votar. A idade mínima para votar foi reduzida na Constituição de 1988. Foram duas grandes ampliações no eleitorado brasileiro. Hoje, dois terços dos brasileiro do todas as idades podem participar do sistema político. Eles podem votar, e de 75% a 80% deles fazem isso regularmente.

Silio Boccanera — Mas, no Brasil, o voto é obrigatório. Na Grã-Bretanha, não é.
Timothy Power — No Brasil, o voto é obrigatório, mas o nível de participação das pessoas para quem o voto é opcional também é encorajador.

Silio Boccanera — Outra comparação. Pode ser injusto, como você disse, comparar o Brasil com a Inglaterra que tem 800 anos de democracia. Peguemos a Europa continental, onde alguns países viveram ditaduras em um período bem recente: os nazistas na Alemanha, a Itália, a ocupação na França, Espanha e Portugal, etc. Vamos comparar o Brasil com esses países.
Timothy Power — Bem, a ditadura nesses casos foi uma interrupção da ordem democrática. Antes da invasão nazista, antes de Mussolini… Bem, Mussolini não é um bom exemplo. Antes que Hitler tomasse o poder e antes da ocupação da França, esses países viviam uma experiência democrática. O Brasil só teve uma experiência democrática, de 1946 a 1964. Não havia uma experiência prévia que servisse como base. Se comparar o Brasil com o Chile, por exemplo, ou com o Uruguai, ambos os países viveram ditaduras, mas, quando voltaram à democracia, foi um verdadeiro retorno à democracia, foi uma redemocratização, pois eles tinham tradições e práticas democráticas que remontavam a 100 anos e nas quais podiam se basear. A experiência brasileira depois da Segunda Guerra Mundial foi curta e caótica. Entre 1946 e 1964, o Brasil teve nove presidentes, que assumiram em períodos diferentes. Só Juscelino Kubitschek teve uma presidência normal e foi até o fim. Por isso, o histórico do Brasil não era muito favorável, e, levando isso em conta, o país está fazendo um ótimo trabalho desde 1985, na construção de uma nova tradição democrática, tendo uma base anterior muito limitada.

Silio Boccanera — Vamos abordar outra esfera, que não a presidencial. Vamos falar do Congresso. Aqui no Reino Unido, e na Europa em geral, assim como nos EUA, quando as pessoas votam, quando o eleitor escolhe um político, um membro do Parlamento, do Congresso, do Senado, da Câmara dos Deputados, ele pertence a um distrito, ou seja, você sabe em quem está votando. Aqui na Grã-Bretanha, por exemplo, na região onde eu moro, minha representante no Parlamento é Glenda Jackson, a atriz. Isso é curioso, mas, ao mesmo tempo, o eleitor daquela área sabe quem é seu representante e pode deixá-lo ou não. Esse sistema tem vantagens que o Brasil deveria levar em conta?
Timothy Power — Ele tem vantagens e desvantagens. Em termos de custos psicológicos para os eleitores, o sistema de representante distrital é o mais fácil do mundo. Isso explica por que é o sistema eleitoral mais antigo do mundo. Ele remonta à época da rainha que Glenda Jackson interpretou, ao início do sistema monárquico na Grã-Bretanha, quando foram realizadas as primeira eleições, e ele é bem simples. Uma pessoa, um distrito em um território específico. Por isso, para os eleitores, é muito fácil processar a informação necessária para votar. O sistema eleitoral brasileiro é um dos mais complicados, pois há um grande número de candidatos concorrendo, e eles concorrem no estado todo. No Brasil, há 27 distritos eleitorais, e alguns deles são bem grandes. Um estado como São Paulo tem 70 representantes no Congresso. E há um número maior de partidos que podem indicar candidatos. Há mais de mil candidatos para 70 cadeiras. Eu não conseguiria processar tanta informação, e acho que poucos eleitores são capazes disso. Então o custo psicológico e mental para os eleitores é extremamente alto no Brasil. Isso explica por que muitos brasileiros não lembram em quem votaram nas últimas eleições proporcionais. Se você não lembra em quem votou, é claro que é muito mais difícil para você ter a capacidade política necessária para controlar essa pessoa, para acompanhar essa pessoa enquanto ela exerce seu mandato. Mas, por outro lado, o sistema brasileiro permite um leque muito maior de partidos políticos e de ideologias políticas no parlamento, em comparação com o Reino Unido, com os EUA, o Canadá ou a Austrália. Esses países, que adotam o sistema de um representante por distrito, tendem a ter dois partidos dominantes. O Brasil tem 20 partidos representados no Congresso, e o maior partido no Congresso tem apenas 15% das cadeiras da Câmara. Portanto, é um sistema muito mais inclusivo e democrático nesse sentido. A desvantagem é que os eleitores têm dificuldade para processar a quantidade informações.

Silio Boccanera — Inclusive quando acontece um caso de corrupção, o que ocorre sempre, você não consegue se livrar de seu próprio candidato, porque ele não é seu, é de toda a instituição. Mas, falando de corrupção, a impressão de um cidadão brasileiro comum é de que a quantidade de casos de corrupção na vida política brasileira é enorme. Eu gostaria que você fizesse uma comparação com outros países, com democracias tradicionais, como a Grã-Bretanha, os EUA. O Brasil é uma maçã podre nesse cesto?
Timothy Power — A corrupção brasileira é cada vez mais percebida pela sociedade. E isso se deve, em parte, ao fato de o país ser democrático. O Brasil tem liberdade de imprensa, a imprensa livre no país faz um bom trabalho ao evidenciar o mau funcionamento do Congresso, os escândalos de corrupção e coisas desse tipo. Precisamos ter em mente que achamos que há muita corrupção no Brasil simplesmente porque isso é mais exposto do que antes. Se há mais corrupção hoje do que havia no passado é algo que nunca vamos saber, porque não temos meios precisos de comparar esse tipo de coisa. 

Silio Boccanera — E quanto à impunidade?
Timothy Power — A impunidade, nós podemos verificar. É possível verificar a quantidade de políticos acusados e condenados e a quantidade daqueles que tiveram sua carreira política encerrada por isso. No Brasil, os resultados não muito encorajadores. Pessoas que acumulam condenações e repetidos escândalos conseguiram dar continuidade à sua carreira política. No entanto, a Lei da Ficha Limpa, aprovada em junho de 2010 e que valeu já para esta eleição, pode mudar isso. Eu estava no Brasil quando a lei foi aprovada, e tive a impressão de que a imprensa e os eleitores brasileiros não entenderam o grande significado disso. Não foi uma lei proposta por um político – por motivos óbvios –, mas por um movimento anticorrupção da sociedade, que usou um dispositivo constitucional pouco conhecido para coletar assinaturas e levar a proposta ao Congresso. Eles pressionaram o Congresso, que aprovou o projeto, o presidente sancionou, e hoje vocês têm a Lei da Ficha Limpa, que determina que, quem for condenado por um tribunal em decisão colegiada, não pode concorrer a um cargo público. Isso é uma conquista enorme para a transparência no Brasil, e foi algo que veio de baixo. Acho que isso já é um bom exemplo de como a democracia funciona.

Silio Boccanera — A mídia brasileira faz um bom trabalho com relação à política, especificamente? Não quero ampliar muito o espectro, apenas focar na cobertura política.
Timothy Power — Com relação à política, como eu dizia antes, a cobertura acerca da corrupção de questões de transparência, de responsabilidade democrática, com certeza, tem sido positiva. Por outro lado, há muito pouco reconhecimento das conquistas do legislativo e das políticas públicas, que não rendem tanta cobertura assim. É provável que seja mais interessante para um jornalista publicar algo que cause impacto como um escândalo de corrupção, do que publicar uma matéria sobre como as políticas sociais estão dando certo, sobre como a Lei da Ficha Limpa está funcionando ou sobre uma nova estrutura orçamentária que favoreça os ministérios. A imprensa sabe evidenciar muito bem aquilo que não funciona, mas eu acho que ela divulga menos as realizações da democracia brasileira. Isso é injusto.

Silio Boccanera — Você tem acompanhado a trajetória do PT há vários anos, por causa do seu interesse acadêmico pelo desenvolvimento e pela política brasileira. Nós tivemos oito anos de governo do PT, e vamos ter mais alguns. Como você vê essa evolução do PT? Não em comparação com a época em que pregava o socialismo, mas recentemente no poder e fora dele.
Timothy Power — Muitas pessoas falam do governo do PT no Brasil. Eu não o vejo como um governo do PT, no sentido literal. O que existe é um governo de coalizão liderado pelo PT. Há uma diferença. Não quero parecer detalhista em excesso, mas é importante fazer essa distinção, pois existe um governo de coalizão. E acho que isso responde a 2ª parte da sua pergunta: qual foi a grande mudança desde 2002? Nós sabemos que o PT mudou de 1980 a 2002. Ele se afastou do marxismo, do socialismo e do radicalismo. Mas o que mudou desde 2002 está claro. O PT aprendeu que, para governar o Brasil, precisa fazer coalizões interpartidárias. Com isso, o PT se tornou um negociante de coalizões. Ele se tornou um gestor de coalizões. E isso fica claro ao analisarmos as alianças eleitorais de 2002, quando Lula concorreu tendo José Alencar como candidato a vice, e o que aconteceu em 2010, com Dilma Rousseff escolhendo Michel Temer como candidato a vice. Isso representa uma guinada na direção do reconhecimento de parceiros institucionais com o PMDB. Eles são necessários para se governar. É um governo com seis, sete, oito partidos representados no gabinete e 12, 13, 14 partidos votando com o governo no Congresso. É um governo liderado pelo PT, mas eu não diria que os eleitores brasileiros comuns veem o governo como um governo do PT.

Silio Boccanera — Passemos ao outro partido importante de oposição, o PSDB. Ele alega ser um partido social-democrata. Seus críticos o veem como neoliberal. No contexto da social-democracia européia, que é mais conhecida, do Partido Liberal na Grã-Bretanha, do Partido Social-Democrata da Alemanha, do Partido Socialista na França, a esquerda na Itália… Quanto do modelo social-democrata se assemelha aos princípios e às idéias do PSDB? Ele é realmente um partido social-democrata?
Timothy Power — Quando o PSDB foi fundado, em 1988, os partidos social-democratas europeus eram bem diferentes do que eram no início do século 20. Esses partidos nasceram nas classes mais baixas, nos movimentos sindicais, e aos poucos conseguiram um lugar nos parlamentos nacionais, crescendo a partir dali. O PSDB nasceu dentro do parlamento, sem uma base social, em especial nos sindicatos. Essa base social existia no Brasil, mas estava em grande parte no PT. De certa forma, o PSDB era um partido da elite política, sem uma base que o apoiasse. Além disso, a ideologia social-democrata adotada pelo PSDB nos anos 80 e 90 já era sua versão reformada aqui e na Europa, que era muito a favor do mercado, que defendia a economia de mercado.

Silio Boccanera — Do tipo neotrabalhista?
Timothy Power — Exato, do tipo neotrabalhista. Ele pulou o que a Europa adotou por um bom tempo, que foi o desenvolvimento liderado pelo governo, com as estatizações e coisas do gênero, e passou para a versão que chamamos de Terceira Via da Social-Democracia, que defende a modernização do Estado, as privatizações e um aparato estatal menor e mais eficiente. Então, o nome do partido sugere uma afinidade com os partidos europeus, mas há diferenças em aspectos importantes. 

Silio Boccanera — Há um velho argumento que diz que a alternância de poder é essencial à democracia. Em outras palavras, é preciso trocar os partidos no poder para que a democracia seja mais sólida. Ao mesmo tempo, aqui, na Europa, vimos o fim de 13 anos de governo trabalhista, que tinha substituído 18 anos de governo conservador. Os social-democratas estão no poder na Escandinávia há muitos anos, o mesmo acontece em outros países. Então, a rotatividade não é um elemento central da democracia, é?
Timothy Power — A alternância de pode não é essencial à existência da democracia. Basta a possibilidade de alternância de poder. Ninguém duvida que os eleitores escandinavos têm o direito de trocar o seu governo quando quiserem. Ninguém duvida disso. Ninguém duvida que, no Japão ou na Índia, após a Segunda Guerra Mundial, fosse possível mudar o governo através de eleições. Já no México, após a Segunda Guerra Mundial, as pessoas duvidavam disso, pois a população mexicana não podia mudar o governo. O que é necessário é a possibilidade de alternância de poder. Cientistas políticos como eu gostam de elogiar a alternância de poder, mas, quando somos vítimas dela, nós não gostamos muito. Eu sou um democrata americano e, quando o cargo de Ted Kennedy foi para os republicanos, eu fui muito contrário à alternância de poder. Mas é algo que tem que acontece como marco de todo regime democrático. 

Silio Boccanera — Indo além do cenário puramente político e observando o Brasil de fora mais uma vez, a chamada “crescente” influencia internacional do país é um mito ou uma realidade?
Timothy Power — Eu não acho que seja um mito. Há provas de que a posição internacional do Brasil melhorou na última década. E acho que outros países também começam a reconhecer isso. É muito difícil identificar uma conquista específica do Brasil que prove isso. Acho que, na verdade, o Brasil tem atuado em frentes diferentes, com pequenas vitórias em muitas questões. Mas, cumulativamente isso mostra que o Brasil está ganhando espaço. Eu acho que, quando as pessoas tomam um único fato como referência, como, por exemplo, a conquista de um assento no Conselho de Segurança da ONU, é claro que isso desmentiria a tese, pois o Brasil tinha esse objetivo, ele não foi atingido, então não houve melhora. Mas não acho que seja o modo correto de ver as coisas. A maneira correta é verificar como o soft power do Brasil tem atingido um grande número de frentes diferentes. Por exemplo, o papel que o Brasil teve este ano, ao lado da Turquia, para o acordo sobre o programa nuclear do Irã. Ou as implicações de sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas, bem como o visivelmente crescente papel do Brasil nas organizações internacionais. Acho que, se você pegar várias pequenas vitórias e as somar, verá que há uma projeção internacional maior. 

Silio Boccanera — Em termos da política externa brasileira, há quem afirme que devemos continuar como no passado, sem nos envolver em questões complexas que nada têm a ver conosco, mesmo por serem geograficamente distantes, como o Oriente Médio. Mas há outra escola de pensamento que acha que, se o Brasil realmente quiser ocupar uma posição importante e fazer parte do Conselho de Segurança, ele precisa se envolver, mesmo em áreas desconfortáveis, como o Oriente Médio, o Irá, a África ou o que for. Qual dos dois argumentos você acha mais podereoso?
Timothy Power — Na minha opinião, o Brasil ganhou muita legitimidade, e agora é hora de usá-la.Em outras palavras… 

Silio Boccanera — Ainda que seja arriscado.
Timothy Power — Ainda que seja arriscado. Eu acho que o Brasil… É uma forma estranha de dizer, mas o Brasil deve ser o país menos odiado do mundo. É um país que recebe a confiança instintiva de vários atores diferentes que podem estar em lados opostos de questões bem problemáticas. Por exemplo, tanto os EUA quanto o Irã veem Brasília como um interlocutor importante. E isso não é pouco. Se você consegue a confiança de Teerã e de Washington, é porque fez algo direito. A questão é: se o Brasil acumulou esse soft power e essa confiança multilateral, para que eles servem? O país precisa usar isso para alguma coisa, e acho que, nos últimos anos, o Brasil começou a tentar usá-los de forma mais pró-ativa.

Silio Boccanera — À medida que entramos na terceira década de democracia, você vê algum potencial de ruptura política? Como grande observador da vida política brasileira, você acha que conseguimos “nos vacinar” contra eventos desse tipo?
Timothy Power — Eu acho que hoje não existem atores políticos agindo contra o sistema no Brasil, quaisquer que sejam. Acho que, se compararmos o país ao final dos anos 1980, quando a democracia estava apenas começando, havia atores como as Forças Armadas e como a UDR, a União Democrática Rural, que adotovam claramente uma posição que, se não era antidemocrática, ao menos testava os limites da democracia. Eles queriam se reservar o direito de veto durante a elaboração da Constituição, em 1987, 1988. Acho que, 20 anos depois, na atualidade, é difícil pensar em algum ator político no Brasil que seja contrário ao sistema democrático brasileiro, seja ele importante ou não. Nunca é possível dizer que um país está vacinado contra rupturas institucionais, mas acho que, hoje, o Brasil está na posição mais segura que já esteve do ponto de vista democrático.

Silio Boccanera — É difícil a comparação com a Europa, cujo sistema é parlamentarista, porque o Brasil é um país presidencialista. Mas vamos tentar uma comparação com os Estados Unidos. Vamos pensar agora em termos norte-americanos. Tente comparar o amadurecimento e a consolidação da democracia, além do estado da democracia, no Brasil e nos Estados Unidos. 
Timothy Power — Bem, a democracia americana é antiga, pois foi herdada da Inglaterra, embora fosse uma democracia restrita e truncada, pois foi só nos anos 1960 que houve a inclusão de toda a população dos Estados Unidos. Eu diria que, antes de 1964-65, com a Lei dos Direitos Civis, os estados do sul dos Estados Unidos não eram verdadeiramente democráticos. Nesse sentido, os Estados Unidos só são uma democracia completa há 40 anos. Mas no resto do país, a tradição democrática já estava bem estabelecida. Isso se aplica à democracia em todos os níveis. No âmbito local, ela é bem dinâmica, nos âmbitos estadual e federal, também. A presidência e o Congresso são atores igualitários em muitos aspectos. O caso brasileiro é diferente, pois a democracia não é tão igualitária no âmbito regional. Alguns estados no norte e nordeste são mais tradicionais, mais dominados pelas oligarquias locais. Em âmbito nacional, o presidente tem uma posição bem dominante em comparação ao Congresso. Então, há algum desequilíbrio no Brasil que demora tempo para ser dissipado. Acho que, nessa década, algumas oligarquias locais brasileiras foram atacadas e houve mais competição política nesses estados brasileiros tradicionais. Mas, em Brasília, a presidência ainda é o ator dominante. Tantos os Estados Unidos quanto o Brasil são sistemas presidencialistas, mas o presidente brasileiro é muito mais poderoso do que o americano em relação a outros atores políticos. 

Silio Boccanera — Vamos tentar outra comparação, seguindo essa linha, com outro continente, a África, onde o líder nacional é tão dominante que, quando há mudança de governo, seja por meio de revolução, de golpe de estado ou de eleição, a estrutura do governo muda totalmente. Qual a diferença em relação ao Brasil? Estamos longe disso?
Timothy Power — Acho que o Brasil está numa posição intermediária entre aquelas que os Estados Unidos e a África ocupam hoje. As pessoas no Brasil reclamam muito que os partidos políticos são fracos e que a política é personalizada em torno de candidatos à presidência, mas nada se compara ao que vemos na África. Na maioria dos países africanos, os partidos são fracos ou mesmo não existem. A política é uma competição entre personalidades. O termo que se usa na África é “big man”. O “big man”domina o sistema político, o exército, tem um partido político fictício que o apoia e tenta ampliar seu mandato mudando a Constituição etc. Nesse sentido, o Brasil está estável. No Brasil, há partidos políticos que, de algum modo, restringem os candidatos à presidência. As normas constitucionais proíbem claramente um terceiro mandato presidencial. O atual presidente não quis mudar a Constituição em relação a isso. O Brasil está numa posição intermediária. Nos Estados Unidos, os partidos são mais relevantes, eu acho. Na África, são praticamente irrelevantes. No Brasil, são moderadamente relevantes no que tange a restringir o presidente.

Silio Boccanera — Você acha que o rótulo de Terceira Via que Tony Blair representava quando subiu ao poder, quando chegou a escrever um artigo em uma revista política comparando Tony Blair e Fernando Henrique Cardoso…Você acha que isso é coisa do passado?
Timothy Power — Eu acho que o rótulo é coisa do passado. Ele estava associado a uma certa geração de políticos dos anos 1990 que chegaram ao poder mais ou menos na mesma época. Do ponto de vista ideológico, Tony Blair provavelmente era o mais importante. Bill Clinton veio um pouco antes dele. O francês Lionel Jospin, por exemplo, nunca quis saber da terceira via. Ele achava que o socialismo francês era o socialismo francês. Mas o Partido Social-Democrata alemão também defendeu a ideia. A ideia básica por trás disso era manter os valores centrais do socialismo, mas mudar as políticas. As políticas mudariam ao longo do tempo, mas os valores centrais, como igualdade, transparência etc., deveriam ser mantidos. Isso foi incorporado a tantos partidos políticos, que se tornou um legado muito difuso. O próprio PT, hoje em dia, é mais ou menos assim.

Silio Boccanera — Um partido social-democrata?
Timothy Power — Isso. Eles querem aumentar a mobilidade social no Brasil, querem aumentar a inclusão social, mas não querem usar as políticas usadas na Europa no início do século 20 para conseguir isso.

Silio Boccanera — Nesse sentido – você mencionou a posição dos Estados Unidos – você acha que à medida que a influência brasileira cresce internacionalmente, mais do que hoje, é inevitável que entremos em conflito com os Estados Unidos, nosso principal parceiro tradicional?
Timothy Power — Não só com os Estados Unidos. Acho que haverá sobressaltos em todos os caminhos. Quando você deixa de ser um ator silencioso, de bastidores, e passa a ser pró-ativo em diferentes frentes, os diplomatas e formuladores de políticas brasileiros são chamados a decidir e opinar sobre coisas com as quais, tradicionalmente, o Brasil não se envolvia. É claro que serão cometidos erros, isso é natural. Os Estados Unidos passaram por um período semelhante entre os anos 1940 e 1950, por exemplo. Os Estados Unidos transformaram totalmente a formulação de sua política externa depois da Segunda Guerra Mundial. Houve vários equívocos, foram tomadas decisões ruins no início da Guerra Fria, pois muitas pessoas tinham sido treinadas no isolacionismo americano dos anos 1930. Então, o Brasil está passando por um período em que as habilidades e as experiências de diplomatas e formuladores da política externa, adquiridas em outra época, estão sendo transformadas com o novo papel do Brasil. Mas essa questão não envolve apenas os Estados Unidos. Eu acho que o Brasil, por estar no mesmo hemisfério e por ser também um país gigantesco, vai ter que enfrentar tensões com os Estados Unidos de vez em quando. Mas isso é natural. 

Silio Boccanera — E os Estados Unidos continuam vendo o Brasil como seu aliado preferido, seu aliado mais conveniente, para contrabalançar um atrito maior com a Venezuela e outros países? Washington vê o Brasil como seu aliado preferido na região?
Timothy Power — Não sei se “aliado” é a palavra certa. Aliado dá a entender que Estados Unidos e Brasil têm uma agenda parecida, o que eles não têm. Eu diria que o Brasil é o interlocutor preferido dos Estados Unidos na América Latina. Acho que é assim que os formuladores da política externa americana pensam. Quando precisam se aproximar de um ator do Terceiro Mundo, do Bric ou um ator regional na América do Sul, eles consultam os brasileiros, perguntam como lidar com a questão. Eles consultam Brasília como fonte de informação, de experiência e de conselhos. Mas não necessariamente como um aliado, no sentido tradicional da palavra.  

Silio Boccanera — Você mencionou os Bric, esse acrônimo que mostra a aliança em torno de interesses comuns, de Brasil, Rússia, Índia e China. Mas se trata apenas de um acrônimo, ou é…? Há alguma base para isso? Há algo sólido ali, ou é apenas um acrônimo curioso?
Timothy Power — Bem, isso é algo muito curioso, que nunca aconteceu na História. Um analista cunhou um acrônimo, e ele se tornou realidade. Os países do Bric já tiveram duas reuniões de cúpula. A mais recente foi este ano… 

Silio Boccanera — Mas a ideia é boa: “Já que nos puseram juntos, vamos nos unir.”
Timothy Power — Eu acho que a cunhagem do termo incentivou isso.

Silio Boccanera — E foi um banqueiro.
Timothy Power — Foi Jim O’Neil, do Goldman Sachs. Ao cunhar esse termo, ele criou um clube de nações que não existia. E os países tornaram isso realidade ao institucionalizar reuniões de cúpula anuais. Acho que nunca vimos nada igual na História do mundo. Quando o termo foi cunhado, em 2005, as pessoas disseram: “Mas o Brasil não faz parte desse grupo.” Porque, na época, a Índia e a China haviam tido anos de grande crescimento, a Rússia estava se saindo extremamente bem, e o Brasil parecia um tanto para trás. Hoje, olhando em 2010, as taxas de crescimento brasileiras se aproximam mais do topo do grupo do que da base dele. Portanto, o BRIC é mais uma realidade hoje do que era em 2005.

 

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