Delito de hermenêutica

Seguir pensamento minoritário não é ilícito

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13 de novembro de 2010, 5h55

Causa enorme preocupação a recentíssima decisão do Conselho Nacional de Justiça que determinou o afastamento do juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, posto em disponibilidade compulsória por dois anos, como consequência da fundamentação adotada em decisão jurisdicional proferida em ação judicial sob sua presidência. Divergir dos fundamentos ou da própria decisão é exercício normal do senso crítico de qualquer ser humano e faz parte do jogo democrático; pretender calar opinião é coisa bem diferente, faz parte de algo que destoa das melhores práticas democráticas.

Vem de Voltaire, em pleno século XVIII, a máxima: “Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las”. Esta frase, com seus mais de duzentos anos, merecia melhor compreensão e aplicação cotidiana, até porque sua essência assegura o direito de opinião nas nações mais desenvolvidas, seja para os cidadãos em geral, como para os magistrados em particular, sendo o Brasil signatário de alguns documentos internacionais incorporados ao direito nacional na forma do artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição Federal de 1988.

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), artigo 19, o Pacto de São José (Convenção Americana de Direitos Humanos, 1969), artigo 13, e o Sétimo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes (que editou os Princípios Básicos sobre a Independência do Judiciário), artigos 1º e 8º do anexo, são documentos internacionais aos quais o Brasil deve respeito, consagrando o direito de expressão, liberdades e independência dos juízes. Se não houver prática de delito por meio da expressão de ideias, ainda que o veículo de comunicação fosse uma decisão judicial, não se pode sancionar o cidadão como também o juiz.

Fragmentos da fundamentação de uma decisão, ainda que se entenda discutível a convicção de quem os enuncia, não devem ser considerados fora do contexto em que foram empregados. O risco embutido na decisão do CNJ é a criação de um policiamento (ideológico, filosófico, religioso etc) do pensamento, instituindo-se uma modalidade de delito de opinião. De tal sorte, a punição por expressão de opinião, por mais que se trate de convicção que choque o sentimento da maioria, se a manifestação não se caracteriza como um ilícito, se apresenta como ato arbitrário, por mais elevado que seja o padrão moral de quem assim age.

Posso, em tese, discordar frontalmente dos fundamentos e de uma decisão específica, mas não posso obstruir o direito de manifestação do cidadão, e do magistrado em especial, se com seu pronunciamento não praticou violação do direito de alguém.

Diante do caso concreto, deve-se indagar: o juiz recusou jurisdição? Decidiu movido por corrupção ou prevaricação? Violou o direito de alguém? Seguramente, o juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, cuja expressão de pensamento, fundamentando decisão, causou tanta polêmica, não cometeu nenhum ilícito civil, penal ou administrativo. Não merece, apesar da polêmica levantada por sua forma de pensar, penalização alguma; limitou-se a declarar a inconstitucionalidade de uma lei, segundo sua convicção; não fez apologia a crime, limitou-se a declarar que, protegendo mulheres e não protegendo homens, seria a lei inconstitucional.

Nos casos extremos, testa-se o desenvolvimento político de um povo. Se não formos capazes de suportar a opinião divergente, se implantarmos uma disciplina de expressões para juízes, logo teremos igual tratamento para promotores de justiça, advogados e jornalistas, profissionais cuja liberdade é essencial às nações adiantadas. Silenciar os componentes de uma das instituições autoriza cercear o direito de expressão dos demais, restando à cidadania, acaso momentaneamente empolgada e não enxergando o comprometimento que a situação envolve, pagar com o sacrifício da democracia.

Por fim, se não pode o Conselho Nacional de Justiça apreciar o mérito do ato judicial, não pode igualmente apreciar a fundamentação da mesma decisão; se não pode apreciar a fundamentação de uma decisão, não pode apenar magistrado criando suposto delito de lesa hermenêutica; se nosso Direito não consagra delito de lesa hermenêutica (tal como ocorre em países politicamente menos desenvolvidos, de que nos dá grandes exemplos a experiência da América Latina, mesmo no século XXI), não se pode apenar qualquer profissional (juiz, promotor de justiça, advogado, jornalista etc) por adotar pensamento minoritário, que, por si, não configure alguma modalidade de ilícito civil, penal ou administrativo.

O que está em jogo é mais que o direito de expressão de um magistrado.

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