Duas medidas

Regras do juiz natural devem ser anteriores ao crime

Autor

  • Alberto Zacharias Toron

    é advogado defensor de Aldemir Bendine doutor em direito pela USP professor de processo penal da Faap e autor do livro "Habeas Corpus e o Controle do Devido Processo Legal" (Revista dos Tribunais)

12 de novembro de 2010, 9h25

Uma das maiores conquistas civilizatórias da democracia foi o estabelecimento da garantia do Juiz Natural. Desde 1824 nossas constituições vêm repetindo “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (artigo 5º, inciso LIII). Daí que as regras definidoras da competência para julgar deverão ser claras e objetivas. Mas não basta clareza e objetividade. É essencial que as regras definidoras do juiz competente para julgar sejam anteriores ao fato criminoso que se pretende julgar. Com isso evitam-se a arbitrariedade, o casuísmo e a perseguição.

A despeito disso, o recente julgamento do deputado Natan Donadon (PMDB-PB) expôs outra ferida do nosso Supremo Tribunal Federal: a incoerência. O jornalista Felipe Recondo abordou o assunto com propriedade no seu conciso, mas certeiro artigo “Dois casos semelhantes, duas decisões distintas” (O Estado de S. Paulo, 30/10/2010, página A22). Enquanto Ronaldo Cunha Lima (PSDB-PB), anos antes, havia renunciado e obtido a declaração de perda do foro privilegiado a que fazia jus como parlamentar, no recente julgamento, a mesma sorte não teve seu colega, que também renunciou, mas mesmo assim foi julgado pelo STF.

A solução encontrada para evitar a ocorrência da prescrição revela a odiosa fórmula condensada na máxima “dois pesos e duas medidas”. O pior é que toda a confusão foi causada por descuido da própria Suprema Corte.

Após vigorar por 35 anos, em sessão realizada aos 25 de agosto de 1999, o STF cancelou a Súmula de 394, decidindo uma Questão de Ordem no Inquérito 687-4. O inquérito em questão tinha como alvo o ex-deputado Jabes Rabelo, que era investigado por tráfico de drogas. A súmula, por sua vez, editada sob a vigência da Constituição de 1946, tinha o seguinte teor: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”. Vale dizer, garantia o foro comumente denominado de privilegiado às autoridades que, embora tivessem praticado o delito enquanto ocupassem o cargo público, já não mais o detivessem ao tempo da investigação ou do processo.

A revogação da súmula foi saudada pela imprensa em geral como um grande avanço para o processo penal brasileiro, uma vez que, segundo seus críticos, afastava uma causa de “larga impunidade” e, de outro lado, afirmava o primado da igualdade dos cidadãos perante a lei. Em verdade e abrindo um parêntese, ao contrário do que se imagina, o dito foro privilegiado é, na verdade, uma prerrogativa da função e destina-se antes de mais nada a proteger a própria Justiça contra ingerências de poder nela mesma. Imaginem um Desembargador que cuida das promoções e punições de um juiz de primeiro grau ser julgado por este. Não é só um problema de subversão de hierarquia, mas uma necessidade de isenção da própria administração da justiça.

Como quer que seja, finda a súmula, o ex-ocupante de cargo público perderia o foro privilegiado com o término da investidura no cargo e, como todos os demais cidadãos, passaria a ser processado perante o juiz de primeiro grau, que, além do mais, seria mais célere e menos complacente que os Tribunais Superiores nos julgamentos. A fórmula parecia simples, infalível, mas os problemas não tardaram a surgir.

Da mesma maneira que o órgão acusador não pode escolher o juiz que julgará o acusado, este também não pode escolher o seu julgador. Todavia, com o fim da Súmula 394 tornou-se possível que o acusado, renunciando ao mandato no Legislativo ou ao cargo no Executivo, escolhesse se seria julgado pelo juiz de primeira instância ou pelo Tribunal. É só renunciar. Assim, validamente, o fez Cunha Lima e o STF, apesar do dissenso estabelecido na ocasião, aceitou o ato unilateral e remeteu o processo à primeira instância.

O vazio normativo deveria ser obrigatoriamente preenchido pela edição de uma Emenda Constitucional ou, ao menos, de outra Súmula para, na linha do que propôs o ministro Dias Tóffoli, definir-se um marco objetivo a partir do qual a renúncia não teria o efeito de implicar o deslocamento do processo para outra instância. É um remendo, pois a regra constitucional é clara: o foro em razão do cargo só vale enquanto o acusado ou o investigado o ocupar. Da forma como se decidiu no caso Donadon infringiu-se a garantia do Juiz Natural que o Brasil se comprometeu a respeitar na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigo 8º, 3). Ali valeu a regra do juiz criado para o ato (ad hoc).

É muito fácil perante a opinião pública qualificar o exercício do legítimo direito de renunciar como manobra torpe ou fraude processual, jogando o problema para o deputado/acusado, quando tudo, na verdade, foi causado pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Sim, a Suprema Corte deixou um vácuo e matéria de tanta importância não apenas para o cidadão, mas para o próprio bom funcionamento da justiça, que não pode conviver com armadilhas de parte a parte.

A necessidade de uma Emenda Constitucional ou mesmo de uma nova Súmula para regular a matéria é premente. Aliás, foi o que propôs o ministro Sepúlveda Pertence quando do julgamento que culminou com o cancelamento da Súmula 394. Ou se cria uma regra clara para se impedir o tratamento desigual a casos iguais, ou o casuísmo campeará de modo a desmerecer a seriedade do próprio Poder Judiciário. Afinal, não se compraz com o Estado de Direito julgamentos opostos na mesma matéria, pois a segurança jurídica a que todos temos direito será uma garantia meramente retórica e o cidadão, como dizia Umberto Eco, virará cera mole nas mãos da autoridade judicial. Aplausos outra vez ao ministro Marco Aurélio na sua resistência solitária!

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