Soberania em debate

Defesa de Maluf alega que prisão é ataque ao Brasil

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24 de março de 2010, 19h52

A ordem de prisão determinada pela Justiça dos Estados Unidos e a inclusão do deputado federal Paulo Maluf (PP) na lista de alerta vermelho da Interpol rendeu reação do político. Maluf entrou com pedido de suspensão da ação judicial e solicita que o promotor de Nova York, Cyrus Vance, retire o alerta vermelho expedido contra Maluf e seu filho Flávio Maluf.

Um dos advogados de defesa, José Roberto Batochio, produziu parecer que será utilizado durante a audiência que está marcada para o dia 8 de abril, na Suprema Corte de Nova York. No entendimento de Batochio, ao tornar Maluf um criminoso procurado internacionalmente, os Estados Unidos ataca o Parlamento brasileiro, já que ele é membro do Congresso Nacional.

“Qualquer coação ou cerceamento ilegítimos assestados contra membro do Congresso Nacional, fora das hipóteses expressamente previstas na Carta Magna, implica, necessariamente, agravo à Instituição que ele está a integrar e compor.”

O advogado ainda destacou que Maluf possui foro privilegiado e, portanto, o decreto de prisão foge às regras nacionais. “No Brasil, liberdade pessoal de quem exerce mandato eletivo no Congresso Nacional só pode ser tolhida, segundo nossa Constituição, em caso de prisão em flagrante delito e, ainda assim, se inafiançável for o delito imputado.”

Porém, ressalta que o caso não se trata de privilégio, “senão de manifestação da soberania e da liberdade de função de um dos três Poderes da República Federativa do Brasil”.

Batochio considera o pedido de prisão um “abuso, perpetrado contra o Poder Legislativo nacional, e, por conseguinte, contra a soberania nacional”.

Ele convida o estado brasileiro se manifestar sobre o caso. “A reação a essa ilegalidade precisa vir do Poder Legislativo nacional, nos termos da Constituição Federal, e o Estado brasileiro não pode, definitivamente, aceitar ser submetido a essa verdadeira capitis diminutio.”

Leia o parecer:

INVIOLABILIDADE PARLAMENTAR

1 – Objeto.

Indaga-nos o deputado Paulo Salim Maluf sobre a eficácia extraterritorial de preceito constitucional que assegura a inviolabilidade de membro do Congresso Nacional brasileiro, à vista de ameaça de supressão de sua liberdade de ir e vir, emanada de autoridade provincial de Estado diverso do Brasil (onde o parlamentar sob ameaça de constrição pessoal integra a Câmara dos Deputados e, por conseguinte, o Poder Legislativo Nacional). Pergunta-nos, por fim, se, em tal cenário, sofre agressão a soberania do Poder Legislativo pátrio, máxime em face da circunstância de a conduta inquinada de ilicitude (e que teria motivado a ordem de detenção no exterior) já ser objeto de apreciação na jurisdição penal federal brasileira.

2 – Passamos a responder.

Primeiramente e por razões deontológicas, deixa-se esclarecido que o consultado co-patrocina a defesa do consulente – e de outros acusados – em ação penal que tramita perante a Justiça Brasileira, que retrata, exatamente, a situação posta em perquirição. Por isso que a presente consulta se dá no âmbito de opiniões técnicas entre patronos e patrocinado à vista do caso concreto.

A) Da Inviolabilidade ou Imunidade Material Parlamentar. É disposição expressa da Constituição da República Federativa do Brasil que, para o desimpedido exercício da nobre missão parlamentar, na sua tríplice dimensão (legiferante, controladora e fiscalizadora), o membro do Congresso Nacional é inviolável, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos, ínsito nesse conceito o irrestrito direito de livre opinião, manifestação e deliberação, que os anglo-saxões sintetizam como garantia da freedom of speech.

RENÉ ARIEL DOTTI, sobre o tema, doutrina que:

A imunidade parlamentar constitui um dos aspectos inerentes à soberania popular que é exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos (CF art. 14). Essa primeira petição de princípio se desdobra em duas conclusões:

a-) a imunidade é uma prerrogativa instituída em função do exercício independente e autônomo do mandato: não é um privilégio concedido em favor da pessoa do mandatário;

b-) a prerrogativa da imunidade é irrenunciável posto não ser uma faculdade do parlamentar, mas da Casa a que ele pertence. 

Sob outro aspecto, convém reafirmar que a imunidade parlamentar é uma das mais importantes expressões da democracia representativa e traço identificador do Estado Democrático de Direito, instrumento necessário para tornar realizáveis os princípios fundamentais da República Federativa: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (CF art. 1o).

O País e a sociedade ainda sofrem as maléficas conseqüências dos Atos Institucionais baixados pelo Governo militar em 09.04.1964 (AI no 1) e 13.12.1968 (AI no 5), este último com eficácia até 13.10.1978, quando foi revogado pela Emenda Constitucional no 11/78. Durante aqueles “anos de chumbo” os mandatos legislativos federais, estaduais e municipais podiam ser cassados, e parlamentares encarcerados, excluída a apreciação judicial desses atos praticados "nos interesses da paz e da honra nacionais" (AI no I, art. 10) ou "no interesse de preservar a Revolução" (AI no 3. art. 4o). As cassações foram aplicadas, primeiramente pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica (de 09.04.1964 até 31.01.1966) e, depois, pelo Presidente da República que não fora eleito, mas, sim, escolhido pelo sistema de poder militar que governava o país. 

Independentemente, porém, das perniciosas conseqüências institucionais geradas pelos regimes autoritários de poder, o mandato parlamentar deve ficar a salvo de intervenções ilegítimas e ilegais, internas e externas, principalmente quando a Nação, o Estado e o povo estão convivendo sob o pálio do Estado Democrático de Direito. A Constituição de 1988, ao prever as hipóteses do estado de defesa e do estado de sítio (arts. 136 e 137 a 139) preserva o funcionamento do Congresso Nacional, que decide sobre a decretação ou prorrogação do primeiro e autoriza a decretação do segundo. Durante o estado de defesa haverá restrição aos direitos de: a-) reunião, ainda que exercida no seio de associações; b-) sigilo de correspondência; c-) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica (CF art. 136, § 1o, I). Outras medidas coercitivas poderão ser adotadas como a ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública e a prisão por crime contra o Estado (CF art. 136, §§ 1o e 3o). O estado de sítio será decretado quando houver comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida adotada durante o estado de defesa, ou, ainda, no caso de declaração de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. Sob a vigência do estado de sítio poderão ser tomadas as seguintes medidas: a-) obrigação de permanência em localidade determinada; b-) detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; c-) restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações; à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; d-) suspensão da liberdade de reunião; e-) busca e apreensão domiciliar; f-) intervenção nas empresas de serviços públicos e g-) requisição de bens (CF arts. 137 e 139).

Em todas as hipóteses factuais referentes ao estado de defesa e ao estado de sítio, a independência, a liberdade e outras franquias do Congresso Nacional ficam resguardadas e os seus membros são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos.

Essa imunidade parlamentar material, consoante a doutrina e a jurisprudência, é causa excludente da ilicitude penal, cujo alcance depende, nas palavras do eminente Ministro Sepúlveda Pertence, do nexo de implicação recíproca, verificável entre a manifestação do pensamento e a condição de congressista(1)


O Ministro NELSON JOBIM, em voto que proferiu, escreveu que:

O instituto das imunidades parlamentares, no Brasil, remonta as Bases da Constituição Portuguesa de 1821 (Afonso Arinos, Prerrogativas do Poder Legislativo, verbete de Ciência Política, 3/118).

Eis o texto:

"Art. 28. Os deputados das Cortes são, como representantes da nação, invioláveis nas suas pessoas e nunca responsáveis pelas suas opiniões”.

No Império, sobreveio o art. 26 da Constituição de 1824:

“Art. 26. Os membros de cada uma das Câmaras são invioláveis pelas opiniões que proferirem no exercício de suas funções”.

O texto imperial prosseguiu na linha das Bases Portuguesas. Substituiu, no entanto, a expressão “como representantes da Nação” por uma esclarecedora cláusula restritiva: “…que proferirem no exercício de suas funções”.

A Constituição Imperial não acolheu a fórmula que tinha como núcleo da prerrogativa o local da manifestação das opiniões. Tal fórmula estava no projeto da Comissão Especial da Constituinte de 1823 (relator, Deputado Antônio Carlos de Andrade):

“Art. 72. Os deputados e senadores são invioláveis pelas suas opiniões proferidas na assembléia”

Os constituintes de 1823, cuja Assembléia foi dissolvida pelo decreto de 12.11.1823, pretenderam alinhar-se aos textos anglo-saxões: 

BILL OF RIGHTS.

“§ 9o The freedom of speech or debates is proceeding in parliament ought not to be impeached or questioned in any court or place out of Parliament.” 

SPEECH OR DEBATE CAUSE (Constituição Americana de 1797) 

The Senator and Representatives … shall, in all cases, except treason, felony and breach of the peace, be privileged from arrest, during their attendance and the session of their respective houses, and in going to and returning from the same; and for any speech or debate in either house they shall not be questioned in any other place”.

O texto imperial preferiu a fórmula da Constituição Francesa de 1791: 

"Les représentants de la nation sont inviolables: ils ne pourront être recherchés, accusés ni jugés em aucun temps pour ce qu`ils auront dit, écrit ou fait dans léxercice de leurs fonctions de représentants” (Art, 7, Section V, Chapitre I Titre III)

Esta fórmula de 1791 não foi adotada pelo “Terceiro Estado”. 

Após ter se auto-proclamado, por instigação de Mirabeau, em Assembléia nacional (17.06.1789), o “Terceiro Estado” editou o decreto de 23.06.1789:

"L´Assemblée nationale déclare que la personne de chacun de députés est inviolable inviolable, que tout particulier, tout corporation, tribunal, cour ou comission qui oseraient, pendent ou aprés la présent session, poursuivre, rechercher, arrêter ou faire arrêter, détenir ou faire détenir um depute pour raison d´aucune proposition, avis, opinion ou discours par lui fait aux états géneraux…, sont infames et traîtres envers la nation et coupables de crime capital…”

Mas a França oscilou de uma solução para outra: 

a-) O Ato Constitucional de 24.06.1973, retorna à solução de 1789:

"Art. 43. Les députés ne peuvent être recherchés, accuses ni jugés en aucun temps, pour les opinions qu´ils ont énoncées dans le sein du corps legislatif”.

b-) A Constituição do 5 do Frutidor do ano III (22.10.1795) volta à fórmula de 1791:

Art. 110. Les citoyens qui sont ou ont été membres du corps législatif, ne peuvent être recherchés, accusés, ni jugés em aucun temps, pour ce qu’ils ont dit ou écrit dans l´exercice de leurs fonctions

Essas oscilações do direito francês que prosseguiram após 1791, não são meras modificações estilísticas de enunciados. São alterações de proposições jurídicas, dando-lhes conteúdo significativo diverso.

Uma coisa é disciplinar o instituto da imunidade para admiti-lo nos casos e hipóteses de opiniões enunciadas no seio do parlamento ou nos speech or debate no parlamento. Outra, bem diversa, é o instituto abranger somente as opiniões enunciadas quando do exercício das funções parlamentares.

A primeira solução só admite a imunidade para as opiniões pronunciadas (a) no âmbito da Casa Legislativa ou, ainda mais restritamente, (b) nos debates travados na mesma Casa.

A segunda solução tem como critério a prática do ato quando do exercício das funções parlamentares. Esta fórmula admite a incidência do instituto para atos praticados fora do âmbito físico do parlamento. 

O Império, portanto, esteve com a segunda solução, que podemos chamar de mais liberal. 

A SOLUÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 

Os textos acima reproduzidos certificam variações redacionais que anunciam decisões distintas quanto ao âmbito de validez do instituto (Kelsen).

Na França, a oscilação entre um critério funcional e um espacial, encontra até 1795, prosseguiu nos textos posteriores.

A Constituição de 04.11.1848 volta ao sistema de 1789 e 1793 quando circunscreve a inviolabilidade material “pour les opinons qu’ils auront émises dans le seins de l’ Assemblée Nationale”.

Após a Lei Constitucional de 16.07.1875 (art. 13) e as Constituições de 1946 (art. 21) e de 1958 (art. 26), repetiram a fórmula “dans l´exercice de ses fonctions”.

A exegese desses dispositivos constitucionais, como, de resto, qualquer interpretação de texto legal, não pode se furtar à regra de Carlos Maximiliano:

“f) Presume-se que a lei não contenha palavras supérfluas; devem todas ser entendidas como escritas adrede para influir no sentido da frase respectiva" (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, p. 110, Forense, 11a ed.).

É evidente que as Constituições históricas tiveram um condicionamento político que se traduziu em textos com sentido jurídico diverso, consoante foi examinado acima. 

De um lado, o alcance do instituto limitado pela fórmula exercício de suas funções de representantes, encontradiça nos textos franceses de 1791, 1795, 1848, 1946 e 1958 e, ainda, nos brasileiros de 1824 e 1934, como, também, nos textos de 1891 e 1946.

Do outro lado, a extensão do instituto relativizada por critério espacial consistente na fórmula proferida na Assembléia do Bill of Rights, da Constituição Americana e das Cartas francesas de 1789, 1793 e 1848.

A Speech or Debate Clause, da Constituição Americana, produziu exegese restritiva. Limitou-se o instituto aos debates na Casa de Representantes. No entanto, tal postura sofreu libelo do Chief Justice Parsons, que acabou aproximando a cláusula com a outra posição: 

“…I therefore think that the article ought not be construed strictly, but liberally, that the full design of it may be answered. I will not confine it to delivering a opinion, uttering a speech or haranguing in debate; but ,will extend it to the giving of a vote, to the making of a written report, and to every other act resulting from the nature, and in the execution, of the office”.

"…I do not confine the member to his place in the House; and I am satisfied that there are cases in which he is entitled to this privilege, when not within the walls of the representatives chamber” (David Watson, The Constitution of the United States, vol. I, p. 326/327, Chicago, 1910).

No entanto, a Constituição Brasileira de 1988, à vista da importância com que contemplou o tema, afasta-se de ambas as tradições ocidentais e suprime as restrições funcional e espacial.

E prossegue o ilustre Ministro, no sentido de que, na Carta de 1988:

…o art. 53 suprimiu a menção ao exercício do mandato e não o fez somente por ser desnecessária a restrição. Suprimiu para dar outro contexto de incidência e aplicação da prerrogativa. Observe-se que a mesma Carta quando trata das prerrogativas dos Vereadores, retoma a cláusula do “exercício do mandato” e cria outra restrição: 

“Art. 29.
“VI. inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do município”. 


Quer a Constituição Federal de 1988 outra disciplina para a prerrogativa quando se tratar de Parlamentares Federais (art. 53) e estaduais (art. 27, § 1o). A sua opção foi explícita quando, para estes, suprimiu o que o que os textos anteriores continham e, para os vereadores manteve com acréscimo.

O texto de 1988 passou a valorar a atividade do parlamentar. 

Entenda-se como exercício do mandato ou de suas funções, todas aquelas atividades vinculadas ao desempenho, pelo Parlamentar, de suas funções constitucionais. É o parlamentar, nessa perspectiva, um agente das funções para viabilizar a realização, pelo Parlamento, de suas funções.

A atividade política do Parlamentar inclui o exercício do mandato e de suas funções. No entanto, nele e nelas não se esgota. É mais ampla.

A atividade política dos parlamentares abrange uma gama de funções e tarefas de natureza vária. É nos partidos, cuja responsabilidade é maior que a dos parlamentares; é nas eleições, é nos debates, na mídia etc. 

No entanto, não tem sido esta a percepção. Para o Ministro Celso de Mello:

Há que se entender que o objeto da prerrogativa, hoje, não é a "prática de atos quaisquer", mas o exercício da atividade política do parlamentar. Esta é mais do que "os atos cuja prática seja… imputável no exercício do mandato legislativo". A imunidade, pelo novo texto, vai além do mandato do parlamentar. Abrange a atividade política desempenhada pelo mesmo, que é mais ampla e aguda, nos dias de hoje, que àquela2. 

ALEXANDRE DE MORAES, sobre o tema, esclarece que: 

Conceito de imunidades.
As imunidades parlamentares representam elemento preponderante para a independência do Poder Legislativo. São prerrogativas, em face do direito comum outorgados pela Constituição aos membros do Congresso, para que estes possam ter desimpedido exercício das suas funções.

As imunidades garantias funcionais, normalmente divididas em material e formal, são admitidas nas Constituições para o livre desempenho do ofício dos membros do Poder Legislativo e evitar desfalques na integração do respectivo quorum, definindo Carlos Maximiliano a imunidade parlamentar como a "prerrogativa que assegura aos membros do Congresso a mais ampla liberdade da palavra, no exercício das suas funções, e os protege contra abusos e violências por parte dos outros poderes constitucionais".

A Constituição Federal prevê serem os Deputados e Senadores invioláveis por suas opiniões, palavras e votos (art. 53, caput), no que a doutrina denomina imunidade material ou inviolabilidade parlamentar.

A imunidade material implica subtração de responsabilidade penal, civil disciplinar ou política do parlamentar, por suas opiniões, palavras e votos. Explica Nelson Hungria, que nas suas opiniões palavras ou votos, jamais se poderá identificar, por parte do parlamentar, qualquer dos chamados crimes de opinião ou crimes de palavra, como os crimes contra a honra, incitamento a crime, apologia de criminoso, vilipêndio oral a culto religioso, etc. ”pois a imunidade material exclui o crime nos casos admitidos; o fato típico deixa de constituir crime, porque a norma constitucional afasta, para a hipótese, a incidência da norma penal. Desta maneira, também, entendem Celso Bastos e Ives Gandra, para quem “a Constituição atual, ao disciplinar o instituto das imunidades, já no caput do artigo sob comento funda a regra principal, norteadora de todo regime, qual seja, a da latitude da imunidade material que, como sabido, é aquela que impede a própria formação do caráter delituoso do comportamento. O que seria crime se cometido por um cidadão comum, não o é sendo cometido por um parlamentar.

Damásio E. de Jesus, analisando o tema sob a égide da Carta Anterior, aponta a imunidade material como causa funcional de isenção de pena, e ilustrava que os parlamentares "desde que cometido o fato no exercício da função, não respondiam pelos chamados delitos de opinião ou de palavra", concluindo que "nestes casos, diante da imunidade penal, os deputados federais e os senadores ficavam livres do inquérito policial e do processo criminal".

Em relação à natureza jurídica da imunidade material, salienta o Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, tratar-se "a imunidade material ou real de causa justificativa (excludente da antijuridicidade da conduta típica), ou de causa excludente da própria criminalidade, ou, ainda, de mera causa de isenção de pena, o fato é que, nos delitos contra a honra objetiva (calúnia e difamação) ou contra a honra subjetiva (injúria), praticados em razão do mandato parlamentar, tais condutas não mais são puníveis".

Desta forma, Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967), Nélson Hungria (Comentários ao Código Penal), e José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo) entendem-na como uma causa excludente de crime, Basileu Garcia (Instituições de Direito Penal), como causa que se opõe à formação do crime; Damásio de Jesus (Questões Criminais), causa funcional de exclusão ou isenção de pena; Aníbal Bruno (Direito Penal), causa pessoal ou funcional de isenção de pena; Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal), considera-a causa pessoal de exclusão de pena; Magalhães Noronha (Direito Penal) causa de irresponsabilidade; José Frederico Marques (Tratado de Direito Penal), causa de incapacidade penal por razões políticas.

Abrangência da imunidade material.

Independentemente da posição adotada, em relação à natureza jurídica da imunidade, importa ressaltar que da conduta do parlamentar (opiniões, palavras e votos) não resultará responsabilidade criminal, qualquer responsabilização por perdas e danos, nenhuma sanção disciplinar, ficando a atividade do congressista, inclusive, resguardada da responsabilidade política, pois trata-se de cláusula de irresponsabilidade geral de Direito Constitucional material.

Em síntese, a imunidade material é prerrogativa concedida aos parlamentares para o exercício de sua atividade com a mais ampla liberdade de manifestação, através de palavras, discussão, debate e voto; tratando-se, pois, a imunidade, de cláusula de irresponsabilidade funcional do congressista, que não pode ser processado judicial ou disciplinarmente pelos votos que emitiu ou pelas palavras que pronunciou no Parlamento ou em uma das suas comissões.

A imunidade parlamentar material só protege o congressista nos atos, palavras, opiniões e votos proferidos no exercício do ofício congressual, sendo passíveis dessa tutela jurídico-constitucional apenas os comportamentos parlamentares cuja prática possa ser imputável ao exercício do mandato legislativo. A garantia da imunidade material estende-se ao desempenho das funções de representante do Poder Legislativo, qualquer que seja o âmbito dessa atuação – parlamentar ou extra-parlamentar – desde que exercida ratione muneris.

O Pretório Excelso tem acentuado que a prerrogativa constitucional da imunidade parlamentar em sentido material, protege o parlamentar em todas as suas manifestações que guardem relação com o exercício do mandato, ainda que produzidas fora do recinto da própria Casa Legislativa, ou, com maior razão, quando exteriorizadas no âmbito do Congresso Nacional.

Da mesma forma, o depoimento prestado por membro do Congresso Nacional a uma Comissão Parlamentar de Inquérito está protegido pela cláusula de inviolabilidade que tutela o legislador no desempenho do seu mandato, especialmente quando a narração dos fatos, ainda que veiculadora de supostas ofensas morais, guarda íntima conexão com o exercício do ofício legislativo e com a necessidade de esclarecer os episódios objeto da investigação parlamentar.

No tocante à extensão da imunidade material, serão beneficiados os parlamentares, nunca as pessoas que participam dos trabalhos legislativos, sem contudo exercerem mandato. Esta extensão, porém, é absoluta e perpétua, não podendo o parlamentar ser responsabilizado pelos seus votos e opiniões praticados no exercício do mandato, mesmo depois que tenha cessado o seu mandato.

Além disto, a imunidade material é de ordem pública, razão pela qual o congressista não pode renunciá-la, e cobre ainda a publicidade dos debates parlamentares, tornando irresponsável o jornalista que o houver reproduzido em seu jornal, desde que, se limite a reproduzir na íntegra ou em extrato fiel o que se passou no Congresso. 

Necessário, neste sentido trazer à colação a lição de Celso de Mello Filho, para quem "o instituto da imunidade parlamentar atua, no contexto normativo delineado pela nossa Constituição, como condição e garantia de independência do Poder Legislativo, seu real destinatário, em face dos outros Poderes do Estado. 

Estende-se ao congressista, embora não constitua uma prerrogativa de ordem subjetiva deste. Trata-se de prerrogativa de caráter institucional inerente ao Poder Legislativo, que só é conferida ao parlamentar ratione muneris, em função do cargo e do mandato que exerce. É por essa razão que não se reconhece, ao congressista, em tema de imunidade parlamentar, a faculdade de a ela renunciar. Trata-se de garantia institucional deferida ao Congresso Nacional. O congressista, isoladamente considerado, não tem, sobre a garantia da imunidade, qualquer poder de disposição3. 

Por razões que dispensamo-nos de reproduzir, dizemos nós, é a garantia mínima da liberdade de consciência e de manifestação no exercício do munus republicano em que se consubstancia a atividade legislativa. Está ela vincada, às expressas, no preceito do artigo 53, caput, da nossa Lei Máxima. Esse preceito não é exauriente do tema, todavia. 

A seu lado estão estabelecidas outras normas, de igual hierarquia constitucional, que escudam o livre desempenho do mandato eletivo do membro do Congresso Nacional, no plano formal, de que é expressão mais conhecida o foro especial por prerrogativa de função (seu julgamento criminal compete, exclusivamente, ao Supremo Tribunal Federal). 

Coroa esse plexo de garantias funcionais, com que a hoje consolidada democracia brasileira arma o Congresso Nacional, a invulnerabilidade, em certas circunstâncias, da liberdade pessoal do congressista (pressuposto lógico e básico do livre exercício do munus parlamentar e da expressão de opinião), só autorizando o cerceio da livre locomoção de sua pessoa em hipóteses expressamente declinadas no texto constitucional (sem liberdade corporal não há, certamente, liberdade de opinião parlamentar), verbis

Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.  

No Brasil, portanto, a liberdade pessoal de quem exerce mandato eletivo no Congresso Nacional só pode ser tolhida, segundo nossa Constituição, em caso de prisão em flagrante delito e, ainda assim, se inafiançável for o delito imputado. 

Observe-se, outrossim, que na deliberação sobre a manutenção ou não da prisão processual decorrente do auto de flagrante em caso de crime inafiançável, há afastamento da competência jurisdicional do STF e o exercício de jurisdição anômala por parte da Câmara ou do Senado, declarados competentes no texto constitucional para manter ou relaxar a referida prisão. 

Não se incursionará aqui na ampla abrangência da imunidade formal, mas o que acima se deixou consignado demonstra, claramente, a importância axiológica que o Poder Constituinte devotou à matéria, buscando tutelar amplamente esse bem jurídico democrático e coletivo que é o estabelecimento de ambiência desimpedida, destituída de óbices pessoais, para o exercício da função legislativa, como expressão da soberania do povo e, sem dúvida, do Estado brasileiro. É o que se depreende da dicção do artigo 53 e parágrafos da Lex Legum

Insta reprisar, de outro bordo, que não se trata de privilégio assegurado à pessoa do parlamentar, senão de manifestação da soberania e da liberdade de função de um dos três Poderes da República Federativa do Brasil. Inseparáveis do congressista essas garantias funcionais que, como já se doutrinou, aderem à sua pessoa como uma segunda pele. A prerrogativa, que já os clássicos publicistas pátrios exaltavam4, não apenas "…é ampla, plena, permanente e absoluta, senão também que deve ser interpretada liberalmente", na ensinança desse paradigma de parlamentar que foi o professor Paulo Brossard5. Diante dela, ao que pertinentemente anotou PEDRO ALEIXO, "…nenhuma transigência é permitida, nenhuma transação é tolerada, nenhuma exceção é admitida”6. E porque "…o que interessa saber no tocante a um país que se diz constitucional, não é se tem uma constituição, mas se pratica a que tem…"7, a imunidade material do parlamentar é preciso tutelar e reconhecer.

Em suma, e na esteira dos peregrinos, a inviolabilidade "…cola-se à pele do parlamentar, garantindo-lhe um plus de liberdade de expressão que se traduz numa ampla liberdade crítica. Sem esta, o exercício das funções parlamentares poderia ficar tolhido, o que provocaria uma deficiente formação da vontade da Assembléia.8

A independência e a inviolabilidade da função parlamentar (aí incluídas as atividades legiferante, de fiscalização e de controle, bem como a livre manifestação de opiniões críticas), dentro e fora do recinto das Casas Legislativas, sempre receberam, nas democracias consolidadas, garantia jurídica em nível constitucional. 

Reprise-se o quanto preceituam o Bill of Rights e a Constituição Americana de 1797:

“§ 9o The freedom of speech or debates or proceeding in parliament ought not to be impeached or questioned in any court or place out of Parliament.”9

SPEECH OR DEBATE CAUSE “The Senator and Representatives … shall, in all cases, except treason, felony and breach of the peace, be privileged from arrest, during their attendance and the session of their respective houses, and in going to and returning from the same; and for any speech or debate in either house they shall not be questioned in any other place”.10 

E a Constituição francesa:

"Les représentants de la nation sont inviolables : ils ne pourront être recherchés, accusés ni jugés em aucun temps pour ce qu`ils auront dit, écrit ou fait dans léxercice de leurs fonctions de représentants” (Art, 7, Section V, Chapitre I Titre III).11 

Entre nós, a escolha axiológica do constituinte foi no sentido de conferir irrestrita proteção jurídica ao livre exercício do mandato parlamentar, assegurando, nesse conjunto de prerrogativas, a mais ampla irresponsabilidade jurídica (penal e extrapenal), aos membros do Parlamento. 

Essa a opção do Constituinte, que não pode ser alterada ou adulterada a pretexto de interpretações. Por isso que exigências de nexo ou liame com o exercício da função, pertinência funcional e quejandos são extravagâncias hermenêuticas que buscam restringir ou mesmo mortificar a garantia do congressista brasileiro, instituída em matriz normativa da mais elevada hierarquia.

Por certo que, sem liberdade corporal não haverá liberdade para o exercício da função parlamentar. A primeira é condição da segunda, reitere-se.

Essas as regras, constitucionalmente fixadas, disciplinadoras do tema, naquilo que interessa à indagação que origina estas pálidas considerações.

Não é demais pôr em destaque, ainda uma vez, que são a independência e a soberania do Poder Legislativo federal que se acham sob tutela jurídica nessa normatização da inviolabilidade do membro do Congresso Nacional. 

Em tal ordem de idéias, cada Senador da República, célula primária do Senado Federal, constitui, organicamente, 1/81 (um, oitenta e um avos) da Câmara Alta e, no mesmo diapasão, cada Deputado Federal representa 1/513 (um, quinhentos e treze avos) da Câmara Baixa. Estão os mandatários e as Casas a que pertencem na relação de parte e todo. 

Corolário inevitável dessa premissa é que qualquer coação ou cerceamento ilegítimos assestados contra membro do Congresso Nacional, fora das hipóteses expressamente previstas na Charta Magna, implicam, necessariamente, agravo à Instituição que ele está a integrar e compor. 

Temos que – tão relevante se exibe essa proteção institucional do mandato – está vedada, no Brasil, a prisão processual (antes de decisão condenatória definitiva – que é causa de perda do mandato – e da manutenção daquela decorrente de flagrante delito, por decisão da Casa a que pertença o congressista) do parlamentar diplomado. Claro que nem mesmo o seu juiz constitucional, é dizer, o STF, pode desatender ao comando constitucional. É o dossel normativo, de nobre matriz legislativa, que colma a intangibilidade de um dos Poderes da República… 

Poderia, nesse rumo de considerações, autoridade judiciária distrital (entre nós seria municipal) alienígena (aqui leia-se EUA), à vista de fatos que se acham sub judice no Brasil (já levados à cognição do STF)12, decretar a detenção de membro do Congresso Nacional brasileiro fora dos casos de condenação passada em julgado e de flagrante de crime inafiançável, a total revelia das autoridades federais do Brasil e desse mesmo Estado estrangeiro? 

A resposta só pode ser não! Tal decisão consubstancia gravíssimo ataque ao Parlamento Nacional, pois que a submissão de congressista brasileiro a custodia ad carcem, de natureza processual, por ordem de autoridade de outro Estado, implica solução de continuidade do exercício de mandato outorgado pelo povo brasileiro. É ato de franca hostilidade contra um dos Poderes da República brasileira, Poder este que não se sujeita, por nenhuma forma, no seu todo ou nas parcelas que o compõem, a outro Estado (e muito menos a autoridades municipais dele). 

É intolerável, máxime porque as condutas que se afirmam delituosas e que servem de pretexto à edição da ordem de detenção (difusão vermelha na Interpol, é dizer, ordem internacional de captura) teriam se verificado dentro do território brasileiro e se acham sob cognição do Supremo Tribunal Federal. 

Figure-se, na mesma direção e em sentido contrário, que um juiz brasileiro de primeiro grau (de uma vara distrital de bairro), provocado por quem tenha legitimidade para ali iniciar ações penais públicas e que veja delito nas condutas do Vice-Presidente da República Norte Americana, recentemente denunciado pela imprensa de favorecimento de determinada empresa privada em licitações federais para aquisição de materiais de suporte bélico, entenda que parte da vantagem econômica obtida nas concorrências supostamente irregulares (e, daqui, quem pode afirmar se foram ou não?) tenha entrado em território brasileiro. Esse juiz distrital brasileiro teria competência para expedir ordem de prisão processual contra o vice-presidente americano e inseri-lo no rol dos procurados internacionais? Como ficaria a soberania do Estado norte-americano? Impensável? Como, então, admiti-lo em face de um congressista brasileiro, na situação inversa?
Ou a soberania deles é mais soberania… 

Observe-se que no caso em apreço a motivação para o édito de detenção teria sido desvio de verbas na execução da obra da Avenida Águas Espraiadas, que não se localiza nos Estados Unidos, mas na cidade de São Paulo, em nosso território… O imputado teria agido na condição de Prefeito de São Paulo, não de qualquer cidade situada dentro do território norte-americano..

3 – Conclusão

Cabe ao Estado brasileiro adotar enérgicas providências contra tamanho acinte, desassombrado abuso, perpetrado contra o Poder Legislativo nacional, e, por conseguinte, contra a soberania nacional. Cabe, também, indagar se autoridades brasileiras contribuíram para o referido agravo. 

Que se dizer sobre o que se lê de Guantanamo, Abu Ghraib, e no Iraque, de um modo geral, em face de precedente de tal ordem? Estariam legitimadas ordens de prisão contra dignitários que possam ser apontados – sem provas – como responsáveis por ilicitudes e até por crimes contra a humanidade? 

A reação a essa ilegalidade precisa vir do Poder Legislativo nacional, nos termos da Constituição Federal, e o Estado brasileiro não pode, definitivamente, aceitar ser submetido a essa verdadeira capitis diminutio

Tem-se, de quebra, a informação de que uma autoridade municipal americana teria declarado, à mídia, que se o Congressista brasileiro em causa sair do território nacional será capturado e “trazido para cá (referindo-se aos Estados Unidos), e aqui temos um bom lugarzinho para mantê-lo” (sic). E se uma autoridade municipal brasileira, crítica do belicismo da atual Administração americana, afirmasse o mesmo de um congressista americano? 

Escárnio! Desrespeito! 

O Congresso Nacional não pode tolerar tal vilipêndio.

Não há como justificar ação dessa envergadura que, aliás, sequer ao Decreto no 3.810, de 2 de maio de 2001, 20. 

Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal Brasil/EEUU) se exibe amoldada (cf. art. VIII, item 4).

Parece-nos, pois, que, por iniciativa do Congresso, o Brasil deve adotar vigorosas providências, na esfera diplomática, junto ao Departamento de Estado norte americano que, certamente, se acha ao largo de tais acontecimentos, ocorridos em esfera estadual, mais que isso, distrital, e, certamente, providenciará a tomada das indispensáveis providências para corrigir a agressão perpetrada.

É como vemos a questão, s.m.j. 

JOSÉ ROBERTO BATOCHIO, ADVOGADO.
OAB-SP-20.685


NOTAS

1 RBCCrim, no 22, págs.282/283.

2 Cf. voto publicado no Diário da Justiça de 14.08.1997, seção I, p. 36.779-81.

3 Imunidades Parlamentares, RBCCrim, no 21, págs 45/64.

4 Pimenta Bueno, "Direito Público Brasileiro", 1857, vol. I, no 199, págs. 156 e 157.

5 "Imunidade Parlamentar", na Rev. de Informação Legislativa, no 63, julho/setembro 1979, p. 17.

6 “Imunidades Parlamentares”, Ed. Revista Brasileira de Estudos Políticos da Faculdade de Direito da Universidade de Min as Gerais, 1961, pág. 80.

7 Rui Barbosa, apud João Neves da Fontoura, "As Imunidades Parlamentares e o Estado de Guerra", 1936, págs. 58 e 59.

8 STF, Rextr. 210.917/RJ.

9 Bill of Rights.

10 Constituição Americana de 1797.

11 Constituição da França de 1791.

12 E essa dupla increpação por fato único, idêntico, consubstancia a odiosa figura do bis in idem, anátema em direito penal.

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