Corregedora do futuro

"Judiciário se acha acima do bem e do mal"

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31 de maio de 2010, 18h13

U.Dettmar/STJ
Eliana Calmon Alves - U.Dettmar/STJ

Próxima representante do Superior Tribunal de Justiça no Conselho Nacional de Justiça, a ministra Eliana Calmon já se prepara para assumir o posto de Corregedora Nacional de Justiça, que lhe cabe por direito. “A corregedoria é de importância fundamental porque é o trabalho de uma supercorregedoria, já que as corregedorias sempre foram ineficientes. O Judiciário tem uma estrutura deformada. Como ele controla tudo, se acha acima do bem e do mal. Mas ele precisa ser controlado, pelos desvios, pelas irresponsabilidades”, diz ela sobre suas futuras atribuições, nessa entrevista concedida ao jornalista Ronaldo Jacobina, da revista Muito, que circulou com o jornal A Tarde, de Salvador, em 23 de maio último.

Magistrada de carreira que se orgulha de ser uma crítica severa do Judiciário, Eliana Calmon destaca o viés técnico do Judiciário e entende que tem uma missão a cumprir: “Acho que uma pessoa como eu precisa ser conhecida nacionalmente, sob o ponto de vista jurídico, porque sou muito contestadora do Poder Judiciário”. Primeira mulher a ocupar uma cadeira no STJ, Eliana se entusiasma de constatar que duas mulheres podem disputar a presidência da República nas próximas eleições, e não esconde sua preferência: “Dilma (Rousseff) não é uma mulher que vem das forças populares, que tenha passado, ela não é uma política. Marina Silva é diferente, tem uma carreira política. É, sem dúvida, muito mais preparada.” 

Leia trechos da entrevista da ministra à revista Muito.

A senhora foi a primeira mulher a chegar ao Superior Tribunal de Justiça. Como foi recebida pelos colegas?
Eliana Calmon – Tive uma chegada surpreendente. A Corte ficou madura e entendeu que estava na hora de colocar uma mulher. De forma que estavam certos do que fizeram. Mesmo porque o judiciário foi o ultimo poder a abrir as portas para nós. Havia uma reivindicação das organizações não–governamentais femininas ao presidente da República para mudar esse quadro. Foi aí que Fernando Henrique Cardoso assinou uma carta de intenções comprometendo-se e cumpriu. Me fez ministra e no ano seguinte fez a Ellen Gracie, para o Supremo Tribunal Federal, com quem eu concorri ao STJ. Ela ficou como remanescente da lista. Eu fui escolhida; no ano seguinte, foi ela.

Como é sua rotina?
Eliana Calmon – É uma rotina pesada. Eu acordo às cinco, às cinco e meia estou na academia de ginástica e fico até sete e vinte. Volto para casa, tomo café da manhã e às nove começo a trabalhar no gabinete em casa. Meio-dia, vou para o STJ e fico das 14 às 20 horas, e ainda levo trabalho para casa. Mesmo pela manhã, não dá para dar conta de tudo, porque estou em contato permanente com o gabinete. É telefone, muito pedido. Todo mundo hoje tem um processo na Justiça, é uma “pedição” sem fim.

Costuma atender “pedição”?
Eliana Calmon – Sim. Quando sou relatora de um processo, já mando para meu assessor, que faz a administração dos processos pedindo prioridade. Aí coloco prioridade 1,2,3, a depender da situação: para os que têm mais de 65 anos, urgente, urgentíssimo, aí vou fazendo. Quando não sou relatora, costumo fazer um bilhete para meu colega dizendo que eu gostaria de contar com ele para dar prioridade naquele processo.

 São pedidos de que ordem?
Eliana Calmon – Para agilizar os processos. Tem alguns ministros que acham isso não é muito legal porque a gente agiliza para alguns e não agiliza para outros. Acho que se tivéssemos uma Justiça que corresse tudo bem, não precisava de pedidos, mas a gente sabe que não pode dar conta de tudo. Então, para aquele que está mais aflito, vamos ver se a gente dá prioridade. Outro dia, um colega chegou a me dizer que isso era advocacia administrativa. Eu respondi: pois é, eu faço isso e ainda mando o corpo de delito para você (risos). 

Chegam outros tipos de pedido?
Eliana Calmon – Eu não aceito outro tipo de pedido. Eu só aceito para agilizar o processo. Para decidir, não tem pedido. Eu recebo tanto pedido, inclusive de políticos, mas nunca me oferecem nada porque ninguém é louco, mas eu nunca cedi. E os advogados costumam dizer que eu não atendo nem os meus padrinhos, e Antonio Carlos Magalhões foi um deles, mas nunca me pediu nada. Ele tinha muito respeito por mim.

Com tanto trabalho, como fica a vida social, a família?
Eliana Calmon – Meu filho mora no meu prédio e tenho um neto de oito meses, mas sobra pouco tempo para estar com eles. É uma maldade, mas é tanta coisa…Se eu ficasse no Tribunal, só com os processos, dava tempo, mas eu viajo muito para fazer palestras, eu sou muito professora. Acho que uma pessoa como eu precisa ser conhecida nacionalmente, sob o ponto de vista jurídico, porque sou muito contestadora e uma critica ferrenha do Poder Judiciário.

O que mais critica no Judiciário?
Eliana Calmon – Eu sou magistrada de carreira e acho que essa coisa de escolha torta do Judiciário, com viés político, não está certo. Isso faz com que as decisões tenham conteúdo político e não técnico. E eu acho que o STJ não é um tribunal político, é um tribunal técnico, então tem que ser cada vez mais técnico.

Ao contrário do STF, o que a senhora acha que pode ser político.
Eliana Calmon – É isso, eles defendem, interpretam a Constituição, são políticos, não precisam ser magistrados para ser escolhidos pelo presidente da República. Mas o STJ, este tem de ser tribunal equilibrado. Você não pode formar um tribunal, que é como está, com maioria, majoritariamente, de advogados. Porque uma pessoa que exerce um cargo de desembargador durante um ano e oito meses não é um magistrado, é? Eles são diferente, a postura é diferente, a forma de sentar na cadeira é diferente.

Por que são diferentes?
Eliana Calmon – Porque eles são mais ricos, eles precisam ter uma vida social. O magistrado atravessa a vida dentro do gabinete, trabalhando, estudando, pesquisando. Não faz questão de ter amizade com políticos, ao contrário. Toda formação dos magistrados no Brasil é pra você se afastar das influências políticas. O advogado é exatamente o contrário. É um homem bem posto, que tende a andar bem vestido, que tem de ser simpático, fazer relações de amizade. Então, na hora que eles chegam a esse cenário político, dão um banho em cima dos magistrados. 

E, na opinião da senhora, qual seria a solução para isso?
Eliana Calmon – A que foi dada na Justiça do Trabalho. Cada um lá guarda a sua origem. Se você era advogado e chegou ao Tribunal como advogado, será sempre advogado. 

A senhora foi eleita pela revista Forbes como uma das 100 mulheres mais poderosas do Brasil. Sente-se poderosa?
Eliana Calmon – Não, não me sinto. E acho que não sou. Para decidir alguma coisa, preciso de dois votos da minha turma e preciso da comunhão de mais seis votos da sessão. Sou uma mulher de muito bom senso e estudei a minha vida toda, de modo que sei um pouco de direito e tento dar as decisões de uma forma muito técnica. E por essa forma de eu ser, sou muito seguida pelos meus colegas, a influência do relator é grande e, como eu brigo muito, e brigo por posições jurídicas… 

O que acha das mulheres na corrida pela Presidência? Dilma Rousseff…
Eliana Calmon – Acho que já estava na hora de termos uma mulher como candidata, mas fico triste porque ela (Dilma) não é uma mulher que vem das forças populares, que tenha passado, ela não é uma política.

E Marina Silva?
Eliana Calmon – Marina Silva é diferente, ela tem uma carreira política. Mas tem a base de sustentação. É, sem dúvida, muito mais preparada. Se juntarmos as duas e comparar, a gente sente quem tem um caminho político e quem não tem.

Quando a senhora foi sabatinada pelo Senado para assumir a vaga no STJ, afirmou que tinha padrinhos políticos e revelou que ACM era um deles. A senhora se arrependeu de ter revelado isso?
Eliana Calmon – Eu estava segura do que estava fazendo, mas foram tantas as polêmicas que fiquei assustada. Meus colegas me chamavam de anta, mas isso foi maravilhoso, porque é o que me distingue até hoje para muitos políticos que ainda se lembram do episódio Desmistifiquei o que todo mundo sabe, mas ninguém fala.

A senhora acha que a imprensa tem um papel importante hoje na democracia?
Eliana Calmon – Nossa Senhora! Uma importância fundamental. Até porque nós todos estamos cada vez mais reféns da mídia, que é o nosso canal de comunicação com o mundo. Nós fazemos o refinamento dessas informações e temos informações diversas. No dia em que houver cerceamento disso, será uma tragédia. Tanto que tenho muito medo quando ouço a notícia de que se quer criar um órgão para controlar a notícia. Eu tenho medo até da televisão oficial. Até que ponto eu posso dizer que a televisão está a serviço do Estado e não do governo? Porque o problema é comprar gato por lebre. Acho que a imprensa deve se manter independente .

Mas derrubaram o diploma.
Eliana Calmon – Aquilo foi uma coisa muito séria, inclusive tinha decisões nossas em sentido contrário. Paramos quando eles começaram a julgar, mas foi uma perplexidade para todos. Para a classe dominante e os governos autoritários ela não tem cor, é território livre, e isso eles temem.

Por que nas grandes operações os envolvidos não são rigorosamente punidos?Eliana Calmon – Mas são. Aquele estardalhaço todo que a gente vê nos faz imaginar que o final feliz seria colocar todos na cadeia. E não é. Isso não existe, pelo menos para os crimes de colarinho branco. Existem resultados positivos. Nós desarticulamos as quadrilhas. O crime de corrupção só se combate politicamente. Aqui na Bahia, por exemplo, nós tínhamos, há mais de 30 anos, grupos que dominavam as licitações públicas, e nós conseguimos desarticular o chamado G8 com a Operação Navalha. Esse acabou. O que acontece é que, quando o processo está com a polícia, esta divulga muito para a imprensa. Quando chega à Justiça, que são as condenações mais miúdas, a imprensa não tem acesso, então não divulga os resultados, e a população acha que a operação passou. Na Navalha por exemplo, nós temos aí a apreensão de bens: automóveis, lanchas, carros, casas, dinheiro, tudo está apreendido. Agora o Ministro Público está lutando para conseguir a repatriação de muitas contas no exterior.

A senhora planeja ir para o CNJ. Como vê a atuação do conselho no controle do Judiciário?
Eliana Calmon – Vou até explicar minha pretensão de ir para lá. O CNJ é composto por conselheiros que são presididos por um ministro do Supremo Tribunal Federal, que é o próprio presidente do STF. O vice-presidente do CNJ é um ministro do STJ que acumula a função de corregedor. Ora, a corregedoria é de importância fundamental porque é o trabalho de uma supercorregedoria, já que as corregedorias existentes nas justiças de todo o País sempre foram ineficientes. Mas, hoje, um corregedor tem a força suficiente porque tem um corregedor-geral, que é um ministro, que não depende dos tribunais. O Judiciário tem uma estrutura deformada. Como ele controla tudo, se acha acima do bem e do mal. Mas ele precisa ser controlado, pelos desvios, pelas irresponsabilidades. O ministro do STJ que assume o CNJ é eleito, essa eleição se faz pela indicação do membro mais antigo. Dentro dessa ordem, a próxima seria um ministro que está na minha frente e que será vice-presidente do Tribunal. O segundo mais antigo está no CNJ, que é o ministro Gilson Dipp, hoje o atual corregedor, e naturalmente o próximo será eu.

No CNJ, terá de lidar com os colegas da Bahia. Como será essa relação, sendo a Justiça baiana um das piores do País?
Eliana Calmon – Não acho que será difícil porque eu tenho conversado muito com o ministro Dipp, que me diz que o problema da Bahia é de gestão. Diferentemente de outros estados, na Bahia há corrupção generalizada, mas pontual segundo ele. Gestão essa que vem pelos desmandos de muitos anos. Essa é a maior dificuldade. Outra dificuldade foi a criação do Ipraj (Instituto Pedro Ribeiro de Administração Judiciário), onde se colocaram salários milionários, incorporados, vantagens em cima de vantagens… há funcionários ganhando mais de R$ 40 mil na Justiça da Bahia. 

Não só no Ipraj, no TJ também.
Eliana Calmon – No TJ porque, pelas normas de equiparação, muitos conseguiram se igualar aos servidores do Ipraj. Lamentavelmente, muitos com vinculações próximas aos desembargadores. Essa situação onera drasticamente a folha. Mas o CNJ está exigindo que seja cumprida a Lei de Responsabilidade Fiscal. 

O TJ-BA está com duas gestões seguidas de mulheres. O que acha disso?
Eliana Calmon – Eu tenho notícias, também pelo corregedor, de que ambas estão empenhadíssimas em resolver essas questões na Bahia. O ministro Dipp chegou a fazer elogios à desembargadora Sílvia Zariff pelo esforço que ela fez para cumprir as metas fixadas pelo CNJ. O que me parece, segundo ele, é que a atual, Telma Britto, segue a mesma linha. 

Como a senhora vê a questão da morosidade da Justiça?
Eliana Calmon – Isso aí é uma tragédia, ninguém agüenta. Existe uma disfunção na atividade. Mas existe também, por parte de cada um, falta de empenho em querer fazer com que a justiça ande. A carreira de magistrado é muito desestimulante. Na medida em que há escolhas, e escolhas pessoais, pautadas por influências, onde não se valorizam a força e a qualidade, tudo isso reflete no desânimo da categoria. A magistratura precisa é de autoestima.

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