Formalização constitucional

PEC da felicidade positivará direito na CF

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29 de maio de 2010, 7h14

Felicidade é um substantivo feminino designado no Dicionário Houaiss como a qualidade ou estado de feliz; estado de uma consciência plenamente satisfeita; satisfação, contentamento, bem-estar. Advém da palavra encontrada na filosofia grega eudaimonia — composta pelo prefixo “eu” (bem) e pelo substantivo “daimon” (espírito), assim, significa “ter um espírito bom”.

Para Aristóteles, na obra Ética a Nicômaco, felicidade é a finalidade da natureza humana. Como dádiva dos deuses (cit. Capítulo 9, Livro I), a felicidade é perfeita. (cit. 1153b). A felicidade é um bem supremo que a existência humana deseja e persegue. Entretanto, Aristóteles deixa claro que a felicidade depende dos bens exteriores para ser realizada (cit. 1099b). Portanto é na busca da felicidade que se justifica a boa ação humana. Os outros bens são, nessa concepção, meios para atingir o bem maior felicidade.

Séculos mais tarde, a Declaração de Direitos do Estado da Virgínia de 16 de junho de 1776, considerada pelos positivistas o marco do nascimento dos direitos humanos, declara que “todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança”.

Naquele momento histórico a felicidade deixou de ser um direito natural, ganhando seu reconhecimento junto ao positivismo justamente porque, como sintetiza Fábio Konder Comparto, “‘a busca da felicidade’ repetida na Declaração de Independência dos Estados Unidos (…), é a razão de ser imediatamente aceitável por todos os povos, em todas as épocas e civilizações. É uma razão universal, como a própria pessoa humana”.

Com a Independência dos Estados Unidos no dia 04 de julho de 1776, a felicidade foi elevada aos status de um direito que, ao lado de tantos outros, como vida, liberdade e igualdade representam, segundo Fábio Konder Comparto, “o primeiro documento político que reconhece, a par da legitimidade da soberania popular, a existência de direitos inerentes a todo ser humano, independente das diferenças de sexo, raça, religião, cultura ou posição social” (ob. cit. p. 107). Este é o prólogo da Declaração de independência criada por Thomas Jefferson: “Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade”.

Nota-se assim, que o movimento humanista teve, em sua gênese, o direito à busca da felicidade como vértice essencial. O start se deu na América do Norte porque, desde sua fundação, havia uma comunidade de proprietários conscientes de sua cidadania, que tinham como garantia fundamental a ideia de que a igualdade perante a lei é requisito para o exercício das liberdades fundamentais. Entretanto, como obtempera Fábio Konder Comparto “Jefferson era suficientemente arguto para saber que (…) a realização desta, na vida individual, não depende exclusivamente das virtudes dos cidadãos. Mas ele também percebeu, com apoio nas lições dos clássicos, que a dignidade humana exige que se deem, a todos, as condições políticas indispensáveis à busca da felicidade”.

Ultrapassado o período da Revolução Francesa e diante da existência de duas Grandes Guerras Mundiais, em que o planeta presenciou as atrocidades que o ser humano foi capaz de praticar contra si, iniciou-se um novo movimento, de preservação da pessoa humana, enquanto portadora de uma dignidade. Nesse sentido, com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em 1948, observou-se que, paulatinamente, os países membros ONU passaram a positivar em sua ordem jurídica interna, mais precisamente em suas Constituições, uma série desses direitos reconhecidos na DUDH, concedendo-lhes o nome de direitos fundamentais.

Nesse sincronismo dos países membros da ONU, ao integralizarem em sua ordem jurídica os direitos humanos, poucas foram as Constituições que instituíram formalmente o direito fundamental à felicidade, preocupando-se com valores outros, também fundamentais.

Nossa Constituição da República de 1988, por exemplo, foi omissa ao trazer formalmente em seu texto o direito de acesso à felicidade. Apesar disso foi prodigiosa por reconhecer expressamente uma série de direitos fundamentais, em suas várias dimensões (Título II da Constituição), de maneira a garantir um mínimo existencial para a preservação da pessoa humana enquanto portadora de uma dignidade, (fundamento da República – artigo 1, inciso III).

A questão do direito fundamental à felicidade encontra-se reaberta na atualidade.

O Senador Cristovam Buarque motivado por entidades do terceiro setor, artistas e intelectuais encomendou uma audiência pública no Senado para o dia 26de maio de 2010 junto à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa para discutir a viabilidade de se incluir formalmente na Constituição da República, o direito fundamental à felicidade.

Muito embora sejam discussões preliminares, trata-se de tema da maior importância. O reconhecimento do direito à felicidade como formalmente constitucional poderá ser mais um importante dispositivo para fundamentação dos pedidos e das decisões na seara judicial. Ademais poderá sedimentar um novo efeito cliquet, ou seja, um marco que servirá como verdadeira cláusula de proibição do retrocesso. Vale lembrar, entretanto, que para finalizar eventual Proposta de Emenda à Constituição dependerá da adesão de pelo menos outros 26 senadores (art. 60, I da Constituição).

Pela proposta, o artigo 6º da Constituição Federal passaria a vigorar com a seguinte redação: “Art. 6º. São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Mas será que o povo brasileiro não possui a busca da felicidade como um direito fundamental?

Aqui uma observação deve ser feita. Há quem entenda que a enumeração dos direitos fundamentais na Constituição não é fechada, por força do artigo 5 inciso 2 da Constituição, ao dispor que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados. Significa, em última análise, que é possível reconhecer o direito à felicidade, como direito materialmente constitucional, por portar, em seu conteúdo, o regime e princípios adotados na Constituição da República.

Com esse pensamento o Supremo Tribunal Federal, por meio do voto do Ministro Celso de Mello, na ADI 3300/DF de 03/02/2006, foi além e reconheceu, em um caso que discutia união estável homossexual, o direito à busca da felicidade como princípio fundamental. Vejamos:

“Não obstante as razões de ordem estritamente formal, que tornam insuscetível de conhecimento a presente ação direta, mas considerando a extrema importância jurídico-social da matéria – cuja apreciação talvez pudesse viabilizar-se em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental -, cumpre registrar, quanto à tese sustentada pelas entidades autoras, que o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqüências no plano do Direito e na esfera das relações sociais”.

Penso que, se a inclusão do direito à felicidade dentro do texto constitucional trouxer o fortalecimento da nossa democracia e amplitude do exercício da cidadania, aliada a discussão plena no seio social e não apenas nas muralhas de Brasília, teremos um avanço. Não podemos deixar que esta oportunidade de aumento no catálogo dos direitos fundamentais torne-se letra morta, como no caso último da EC/62, que acrescentou o direito fundamental a alimentação no art. 6 da Constituição da República, sem a repercussão merecida.

De que adiantaria falarmos em direito à felicidade se a maioria da população brasileira não tem acesso à educação ou a alimentação? Se a situação da saúde é precária? Se grande parte da população não tem acesso a bens de consumo que diariamente são induzidos a consumir pelos meios de comunicação? Se a maioria da população não possui, em suma, bens que garantam higidez física, mental e espiritual? Distante, se encontra dessa forma, o estado de uma consciência plenamente satisfeita. A esse respeito já declarou Norberto Bobbio na década de 70, ao afirmar que o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos humanos, não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los.

Para se falar em felicidade, em todas suas acepções, o ideal seria estarmos em “engajamento” no sentido sartriano da palavra, ou seja, é ideal que o pensador da norma (políticos!) deva estar voltado para a análise da situação concreta em que vive, tornando-se solidário nos acontecimentos sociais de seu tempo. Essas eram as inquietações de Thomas Jefferson ao preocupar-se que seria preciso conceder condições políticas indispensáveis à busca da felicidade.

Entre nós, alguns, atentos à realidade brasileira, disseram: “a felicidade é um crediário nas Casas Bahia”! Mas prefiro, com esperança, finalizar retornando a Aristóteles que, no Capítulo 13 do Livro IV de Ética a Nicômaco enfatiza: A felicidade é uma atividade da alma segundo a virtude perfeita. O político estuda a virtude antes de tudo. A virtude humana é a que se busca. O político, portanto, deve estudar a alma.

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