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Sudão vira as costas para o Direito Internacional

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28 de maio de 2010, 13h40

A situação do Sudão frente à comunidade internacional só piora e desafia o Direito globalizado. Esta semana, o Tribunal Penal Internacional (TPI), que fica em Haia, na Holanda, reclamou do Estado africano para o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Enquanto isso, o presidente sudanês, Omar Hassan Al Bashir, que deveria estar preso por ordem do TPI, comemora a sua vitória eleitoral e assume um novo mandato para governar o país — dessa vez, apoiado por eleições populares cuja credibilidade é altamente questionada.

O comunicado do TPI para o conselho da ONU foi enviado na terça-feira (25/5) como desdobramento de um dos três casos sobre o Sudão em tramitação na corte internacional. O TPI acusa o país de se negar a cooperar com a corte na investigação de Ahmad Harun, ministro de Estado, e Ali Kushayb, apontado como líder do grupo armado Militia Janjaweed. Os dois têm ordem de prisão expedida pelo tribunal internacional em abril de 2007, mas até hoje não cumprida pelo país.

De acordo com a ordem expedida pelo TPI (clique aqui e aqui para ler em inglês), a prisão dos dois é necessária porque não há garantias de que eles vão cumprir intimação e se apresentar ao tribunal. Além disso, o encarceramento é importante para impedir que eles prejudiquem as investigações. Os dois são acusados de comandar por pelo menos dois anos ataques aos rebeldes do sul do país, que buscam a separação da região, que é rica em petróleo. Nesses ataques, teriam comandado massacres, estupros, torturas e outros crimes considerados crimes de guerra e contra a humanidade.

No comunicado enviado ao Conselho de Segurança da ONU (clique aqui para ler em inglês), que trabalha em estreita cooperação com o TPI, a corte criminal aponta o descumprimento da ordem de prisão dos dois acusados. Desde abril de 2007, quando foram expedidos os mandados, a corte tenta, em vão, fazer o governo do Sudão receber e cumprir o que determinado pela corte. Depois de inúmeras tentativas fracassadas, o tribunal resolveu levar o caso para que o Conselho de Segurança da ONU decida o que fazer.

O presidente do Sudão, Omar Bashir, também tem contra si um mandado de prisão expedido em março do ano passado e ainda não cumprido (clique aqui para ler em inglês). Desde que foi criado, em 2002, esta é a primeira — e única, até agora — vez que o Tribunal Penal Internacional mandou prender um presidente de Estado. Bashir é acusado de genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade. Ele governa o país há duas décadas, quando chegou ao poder com um golpe de Estado. Nessa quinta, ao assumir de novo o mandato, mas já se sentindo legitimado pela vontade do povo, prometeu organizar um plebiscito para saber se o sul do país deve ganhar independência ou não.

Independente dependente
A situação do TPI frente ao conflito no Sudão é complicada. O país africano não é signatário do Estatuto de Roma, de julho de 1998, quando foi instituído o tribunal, responsável por julgar criminalmente indivíduos por crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Entre os países que preferiram não dar seu aval à criação da corte estão os Estados Unidos. Para a nação norteamericana, o tribunal não poderia ser independente da ONU, embora independência não seja total.

Hoje, há três procedimentos contra quatro cidadãos sudaneses. Para três deles, foi expedido mandado de prisão, não cumpridos. O terceiro procedimento é contra Bahar Idriss Abu Garda, apontado como um dos líderes dos grupos rebeldes no país. Garda foi intimado, se apresentou ao TPI e a corte acabou rejeitando as acusações contra ele.

O fato de o Sudão não ter assinado o Estatuto de Roma deixa o TPI de mãos amarradas. O procedimento contra os membros do governo sudanês foram abertos a pedido do Conselho de Segurança da ONU. O que garante que o TPI julgue cidadãos sudaneses, mesmo sem o país ter assinado o tratado, é um pacto entre o tribunal e a ONU, o chamado Negotiated Relationship Agreement between the International Criminal Court and the United Nation (clique aqui para ler em inglês). O pacto prevê, entre outras coisas, a cooperação e troca de informações entre ONU e TPI.

Além disso, todos os membros da ONU devem aceitar e sustentar as decisões do Conselho de Segurança da organização. O Sudão é membro da ONU desde 1956. Quando o país não signatário do Estatuto de Roma decide não cooperar com o TPI, cabe a este apenas levar o caso para que o conselho da ONU decida o que fazer. Só a Organização das Nações Unidas pode tomar as medidas necessárias para garantir o trabalho do tribunal.

Bashir no Brasil
Em julho de 2009, o Supremo Tribunal Federal começou a analisar a possibilidade de prisão de um chefe de Estado estrangeiro em território brasileiro, justamente com o caso de Omar Al Bashir. O Tribunal Penal Internacional pediu a sua prisão caso venha ao Brasil. O Itamaraty e o Ministério da Justiça encaminharam o pedido ao STF para deliberação. O ministro Celso de Mello, em despacho durante o exercício da presidência da corte, lançou luzes sobre aspectos ainda não considerados sobre a incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro dos termos do Estatuto que criou o TPI.

Será a oportunidade para que o tribunal defina os termos da constitucionalização do Estatuto de Roma no Brasil. Esta foi a primeira vez que o Tribunal Penal Internacional dirigiu-se ao governo brasileiro e será também a primeira vez que o Judiciário irá se posicionar a respeito. A largada é o exame preliminar, mas bastante avançado, feito por Celso de Mello. No despacho, o ministro pediu manifestação da Procuradoria-Geral da República.

O processo foi remetido ao Brasil em caráter supostamente sigiloso. O ministro Celso desqualificou o sigilo, uma vez que o mandado de prisão expedido contra o sudanês encontra-se no site do próprio TPI e todos os fatos em torno dele já se tornaram públicos. O governo sulafricano, por exemplo, ao convidar Al Bashir para a posse do novo presidente do país, advertiu-o que, caso ele atendesse o convite, seria preso ao pisar em território sul-africano. Uganda, onde haveria reunião de presidentes africanos, adotou a mesma postura. Já a União Africana que representa os presidentes do continente repudiou, por maioria, a atitude do TPI.

Com a Emenda Constitucional 45, no entendimento de muitos estudiosos, o Brasil submeteu-se à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. A EC 45 diz que o país se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional e não “do”, mas há controvérsias. Celso de Mello não se posiciona, mas elenca questões delicadas ou ambíguas que pedem reflexão. O ministro destaca os pontos que têm pertinência, como no caso de o perseguido ser brasileiro nato — o que ele não examina, apenas cita para mostrar a complexidade da matéria. O artigo 27 do Estatuto de Roma, por exemplo, estabelece que perante o TPI é irrelevante se a pessoa em julgamento é chefe de estado — enquanto a tradição brasileira reconhece a imunidade diplomática do dirigente.

A França, por exemplo, subscreveu o Estatuto de Roma. Mas, ao ratificar, o presidente da França o submeteu ao conselho constitucional porque, de acordo com a Constituição francesa, o presidente só pode ser preso por alta traição. Os franceses decidiram fazer uma emenda à Constituição para adaptar-se ao Estatuto.

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