Contas rejeitadas

Projeto Ficha Limpa tem primeiro teste no Supremo

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26 de maio de 2010, 19h10

A inelegibilidade do prefeito que tiver os balanços de suas contas reprovados pelo Tribunal de Contas do Município pode não ter ficado tão clara como se pretendia na redação da Lei Ficha Limpa, aprovada no Congresso Nacional e que depende apenas da sanção presidencial para entrar em vigor. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau, relator do Recurso Extraordinário 597.362, disse que o parecer do Tribunal de Contas só tem validade quando for ratificado pela Câmara de Vereadores. Como o Legislativo “não tem prazo para se manifestar”, até que isso aconteça, o parecer do TCM “não tem qualquer efeito sobre as contas fiscalizadas”. O ministro Dias Toffoli pediu vista do processo, que está sendo julgado sob o regime da Repercussão Geral.

A Lei Ficha Limpa acrescenta ao texto da Lei Complementar 64/1990 a necessidade dos ordenadores de despesas públicas terem suas contas aprovadas pelos tribunais de contas, para não se tornarem inelegíveis. O problema é que a Constituição Federal estabelece que os pareceres dos tribunais de contas de municípios podem ser rejeitados por dois terços dos vereadores. Significa que o parecer tem de ser aprovado na Câmara Municipal. Entretanto, não há prazo para a apreciação legislativa e os prefeitos permanecem em condições de se (re)eleger mesmo estando com as contas irregulares.   

Caso concreto
O caso tem origem em requerimento de registro de candidatura, formulado por Arnaldo Francisco de Jesus Lobo, ao cargo de prefeito do município de Jaguaribe (BA). O juízo da 39ª Zona Eleitoral da Bahia deferiu o registro de candidatura sob fundamento de que não basta a rejeição dos balanços pelo Tribunal de Contas. Deve-se, além disso, constatar se as rejeições foram ratificadas pela Câmara Municipal.

A Coligação Jaguaribe Não Pode Parar interpôs recurso que foi desprovido pelo Tribunal Regional Eleitoral da Bahia, tendo em vista que a emissão de parecer prévio opinando pela rejeição das contas do prefeito, sem decisão do órgão legislativo local, não enseja a inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, g da Lei Complementar 64/90. O recurso interposto teve o seu seguimento negado pelo TSE, já que o entendimento do TRE está de acordo com a jurisprudência da corte eleitoral. O TSE desproveu o Agravo Regimental e a Coligação interpôs RE ao STF, alegando violação do artigo 31 da Constituição Federal.

De acordo com o advogado da coligação partidária, Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, as contas do candidato foram rejeitadas pelo Tribunal de Contas do Município nos anos de 2005 e 2006. Segundo ele, o TSE ignorou que a Lei Estadual 6/91 (Bahia) estabelece prazo de 60 dias para a Câmara Municipal apreciar as contas do prefeito. Até hoje as contas não foram apreciadas pelo Legislativo Municipal e o presidente da Câmara de Vereadores responde a inquérito preparatório de uma ação cível de improbidade administrativa.

Lei Ficha Limpa
O procurador do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará, Márcio Bessa Nunes, atua no caso como amicus curiae. Foi ele quem chamou a atenção dos ministros do Supremo para a redação da Lei Ficha Limpa. Embora a lei ainda não tenha sido sequer sancionada pelo presidente da República, o procurador entende que “os ministros podem começar a analisar a questão sob o aspecto da nova lei”.

A Lei Ficha Limpa altera a alínea g do inciso I, do artigo 1º da Lei Complementar 64/90, que barra as candidaturas de quem teve contas reprovadas. O dispositivo foi acrescido do seguinte texto: “(…) aplicando-se o inciso II do artigo 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesas sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”. Para Márcio Bessa, “está para entrar em vigor no nosso país uma lei que vai dizer que o prefeito, quando age como ordenador de despesas, está sujeito ao julgamento técnico do Tribunal de Contas do município, podendo ser multado e condenado a devolução”.

A Constituição Federal estabelece critérios distintos para a apreciação de contas dos chefes de Executivo nas três esferas. O texto constitucional (artigos 47 e 49) não diz que o Congresso Nacional ou a Assembleia Legislativa precisam de dois terços para derrubar o parecer do Tribunal de Contas sobre as contas do presidente da República ou do governador. Mas, no artigo 31, parágrafo 2º, diz que o parecer prévio das contas municipais só deixará de prevalecer por decisão de dois terços da Câmara de Vereadores.

O artigo 71 da Constituição Federal trata dos atos de governo (inciso I) e das contas de gestão (inciso II). O trabalho do Tribunal de Contas é emitir um parecer sobre as contas de gestão e submeter à aprovação do parlamento. A dificuldade é saber se o parecer é meramente opinativo ou se trata-se de julgado do Tribunal de Contas.

Márcio Bessa lembrou que na esfera penal, o STF já decidiu que “a aprovação pela Câmara Municipal, de contas de prefeito, não elide a responsabilidade deste por atos de gestão” (Ação Penal 399). Segundo ele, no STJ o entendimento é de que “o prefeito que praticar ato de gestão ficará sujeito a julgamento técnico do Tribunal de Contas”.  O procurador cearense fez uma comparação do tratamento diferenciado. Disse que o TCU aplica multas aos prefeitos que utilizam mal os recursos federais repassados e indagou o motivo dos TCMs e TCEs não poderem multar os maus administradores.

A Procuradoria Geral da República opinou pelo provimento do recurso. A PGR sustenta que na ausência da manifestação expressa do Poder Legislativo, deverá prevalecer o parecer do tribunal de contas e o prefeito se torna inelegível conforme o artigo 1º, I, g da Lei Ccomplementar 64/90.

Sem efeito
Considerando o caso como “uma questão singela”, o ministro Eros Grau preferiu analisar somente os efeitos do silêncio da Câmara Municipal em relação a parecer que rejeita as contas do prefeito, e negou provimento ao RE. Para o ministro, “não há no direito positivo brasileiro, regra para dizer se o silêncio da Câmara Municipal significa rejeição às contas do prefeito”.

Eros Grau afirmou que a Câmara de Vereadores “está vinculada pelo poder-dever de fiscalizar com o auxílio dos tribunais de contas”. A Constituição estabelece que o parecer prévio dos tribunais de contas “só deixará de prevalecer por rejeição de dois terços dos parlamentares, mas não define nenhum prazo para essa manifestação”. Assim, o ministro entende que “não pode sair da Constituição Federal, norma que determine à Câmara Municipal que se manifeste em prazo determinado, em qualquer hipótese, seja para aprovar ou rejeitar as contas do prefeito. Até a manifestação expressa da Câmara Municipal, o parecer prévio do Tribunal de Contas não surtirá nenhum efeito em relação às contas fiscalizadas”, concluiu o relator.

ADPF 144
Em agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal debruçou-se sobre a ADPF 144 e, por nove votos a dois, concluiu que a presunção de inocência estende-se ao processo eleitoral e que qualquer medida restritiva só pode decorrer de sentença transitada em julgado. A decisão tem efeito vinculante, mas não se estende ao Legislativo. Ficaram vencidos os ministro Carlos Britto (que defendeu a restrição já com a decisão em primeiro grau) e Joaquim Barbosa (para quem seria necessário a confirmação em segundo grau, como prevê o projeto Ficha Limpa).

O entendimento da maioria no STF é o de que impedir a candidatura implica desrespeito aos princípios mais caros e fundamentais das liberdades do cidadão. A proposta de inelegibilidade a acusados e mesmo aos condenados sem trânsito em julgado teria excelente acolhida durante o regime fascista, induz o ministro Celso de Mello no seu voto.

Durante o julgamento da ADPF 144, o ministro Ricardo Lewandowski mostrou dados que revelam que 28% dos recursos de réus condenados são providos e resultam em absolvição. Caso a proposta de lei entre em vigor, essas pessoas estariam privadas da cidadania.

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