Regras de prova

Exame da OAB precisa de aperfeiçoamentos

Autor

  • Danielle Anne Pamplona

    é advogada professora da graduação e da pós-graduação na PUC-PR e vice-diretora da Global Business and Human Rights Scholars Association - América Latina.

24 de maio de 2010, 12h45

O Projeto de Lei 186/06, de autoria do Senador Gilvam Borges, em sua redação original, propunha a revogação do inciso IV e o parágrafo 1º do artigo 8º do Estatuto da Advocacia (Lei 8906, de 4.7.1994) para extinguir o chamado Concurso da OAB como requisito de inscrição como advogado na Ordem e a previsão de regulamentação desse exame por intermédio de provimento do Conselho Federal da OAB, além da revogação do artigo 44, inciso II da lei mencionada que dá à OAB competência exclusiva para selecionar os advogados em todo o país. Além disso, o projeto propõe a revogação do artigo 58, inciso VI, que atribui competência aos conselhos seccionais da OAB para realizar o exame da OAB e do artigo 84 das disposições transitórias que prevê a dispensa do Exame para os que comprovassem estágio profissional até dois anos da promulgação do Estatuto.

A justificativa do projeto de lei traz os seguintes argumentos: um simples exame não poderia ser contraposto a todos os exames efetuados no decorrer do Curso de Direito; o candidato está sujeito a uma situação de estresse, o que pode levá-lo à “problemas temporários de saúde”.

Em 19 de novembro de 2008 a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal aprovou o Parecer  39/2008 requerendo que o projeto fosse encaminhado à Comissão de Educação, Cultura e Esporte, por entender que como pano de fundo da discussão sobre “… a conveniência de se manter o Exame de Ordem, encontra-se a qualidade do ensino no Brasil, particularmente no que diz respeito à chamada proliferação dos cursos jurídicos, cujos primórdios remontam à década de 1950, quando teve início a criação das primeiras faculdades privadas destinadas ao ensino do Direito, sem o prestígio e a qualidade atribuídos ao ensino público da época. Hoje há um número expressivo, que chega a casa de milhares de bacharéis que não conseguem lograr êxito e por conseqüência, não podem exercer a profissão, tornando-se mister questionar o sistema de ensino adotado no País.” (do Parecer do Senador Magno Malta, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, concluindo pelo Requerimento n. 39/2008 – CCJ).

Em agosto de 2009 foi realizada audiência pública para instrução do projeto, por solicitação da Comissão de Educação, Cultura e Esporte, tendo como convidados Frederico Normanha Ribeiro de Almeida, Coordenador-Geral de Supervisão da Secretaria da Educação Superior do Ministério da Educação – SESU/MEC; Carlos Nina, Presidente Estadual do Movimento Nacional dos Bacharéis de Direito do Maranhão – MNBD; Dílson José de Oliveira Lima, Vice-Presidente da Comissão Nacional de Exame de Ordem do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e Coordenador do Exame de Ordem Unificado da OAB.

O projeto aguarda, desde novembro de 2009, sua inclusão em pauta para discussão e aprovação, o que até então não ocorreu. Várias foram as manifestações recebidas pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte e, ao final, o seu parecer, apresentado em 01.10.2009, relatado pelo Senador Marconi Perillo conclui que a extinção do exame da OAB não é medida aconselhável considerando que é “um elemento essencial para defesa da sociedade.”

A argumentação da Comissão foi assim redigida: “O mal advogado representa um risco para seus clientes. A adequada representação dos interesses de uma pessoa, em juízo e fora dele, implica, necessariamente, um alto grau de proficiência técnica.

A parte em uma relação processual, geralmente leiga em direito e, muitas vezes, sem possuir correta percepção das implicações jurídicas de suas ações e das ações de seus advogados deve ter direito a receber um serviço que se caracterize por seu profissionalismo e pelo manejo adequado do instrumental jurídico disponível.

Lamentavelmente, um profissional menos qualificado representará, para o cliente desavisado, aquilo que poderíamos chamar de um risco oculto: o cliente não compreende as dimensões do risco em que incorre ao contratá-lo, confia que seu caso será bem conduzido e, muitas vezes, surpreende-se com o resultado adverso decorrente da imperícia de seu representante.”

Ora, as colocações da Comissão são pertinentes na medida em que o advogado é o instrumento necessário para que o cidadão pleiteie seus direitos. O advogado é o instrumento que faz a ligação entre os anseios da sociedade e o pleito juridicamente possível. Sem o advogado as reivindicações constitucionalmente previstas dos indivíduos caem no vazio a cada vez que são desrespeitadas. Por isso, essencial que a atividade seja exercida por agentes capazes.

A intenção de revogar o artigo 84 do Estatuto fica prejudicada na medida em que integrante das disposições transitórias, serviu, tão somente, aos formandos até dois anos após a publicação do Estatuto. Esvaída no tempo, não há mais que se falar em revogação da mesma.

A pretensão de dar nova redação ao inciso II do artigo 44 do Estatuto deve ser analisada de outra maneira. A redação pretendida retira da competência da Ordem dos Advogados do Brasil a promoção da seleção dos advogados.

A modificação desejada carece de análise acerca das razões para se entregar à OAB tamanho encargo. A redação sugerida para tal inciso é: "Artigo 44. A Ordem dos Advogados do Brasil — OAB, serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade: II – promover, com exclusividade, a representação, a defesa e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil.”

A Ordem dos Advogados do Brasil tem se posicionado firmemente contra a extinção do exame. Para entender as razões, necessário compreender o papel da OAB. A busca de seus fins remete o leitor à criação do Instituto dos Advogados Brasileiros — IAB, em 1843, dezesseis anos após a criação dos primeiros cursos jurídicos no país (o histórico aqui trazido é explicado com mais vagar em http://www.oab.org.br/hist_oab/index_menu.htm). Os fundadores do Instituto se inspiraram em órgãos congêneres europeus e eram graduados das primeiras turmas dos cursos de Direito que funcionavam no país e o fizeram sob os auspícios do Ministro do Supremo Tribunal de Justiça, Francisco Alberto Teixeira de Aragão, que defendia a instituição de uma entidade que pudesse reunir e disciplinar a classe dos advogados. O artigo 2º dos estatutos da nova instituição dispunha: “O fim do Instituto é organizar a Ordem dos Advogados, em proveito geral da ciência da jurisprudência”. Praticamente cem anos separam a criação do Instituto e a da Ordem dos Advogados do Brasil por meio do Decreto 19.408 de 1930 e sua regulamentação foi feita pelo Decreto 20.784 de 1931. Já no governo de Getúlio Vargas a OAB iniciou a demonstração de sua vocação democrática e de seu comprometimento com a defesa das liberdades individuais, sempre preocupada com a população brasileira, o que tem sido a tônica de sua atuação desde então.

Em 4 de julho de 1994 foi aprovado o atual Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei 8906) que impõe os direitos e deveres dos advogados e os fins da OAB, entre outros. O Estatuto está em consonância com o artigo 133 da Constituição Federal que dita ser o “advogado indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.

O Estatuto, em seu artigo 2º, parágrafo 2º, estabelece que o advogado exerce “função social”. A importância do exercício da advocacia é reconhecida pela lei maior e pelo estatuto já que o advogado é peça essencial para o alcance dos direitos previstos constitucionalmente. Já que a postulação em juízo só é possível por intermédio do advogado (ressalvam‐se as hipóteses previstas que excepcionam a regra, quais sejam: habeas corpus, casos limitados financeiramente no Juizado Especial e reclamatórias trabalhistas) sempre que um cidadão encontre-se em situação de lesão a direito seu ou ameaça de lesão, a atuação do advogado é essencial. Perceba-se que o advogado será o responsável pela correta interpretação dos fatos, pela correta invocação das leis materiais a fundar o seu pedido e pela correta utilização das leis processuais durante todo o curso do processo. A compreensão da técnica do Direito é, inúmeras vezes, o diferencial a fazer com que o cidadão tenha sucesso em sua busca por justiça. E a busca por justiça tem exigido o preenchimento de cada vez mais requisitos, sempre com a intenção de fazê-la célere, plena e satisfatória para todos. É nesse quadro que se insere a exigência de profissionais capacitados para exercer a atividade. A Ordem dos Advogados do Brasil tem o dever de “defender a Constituição… pugnar pela boa aplicação das leis…” (artigo 44, I do Estatuto da OAB). Ora, como pode se desvencilhar disso senão garantindo que os profissionais formados em Ciências Jurídicas estejam aptos a exercer a advocacia?

É a resposta a essa pergunta que a Comissão de Educação acabou por fornecer quando ponderou a importância do papel do advogado para a concretização dos interesses e direitos básicos dos indivíduos. O desenvolvimento do Estado faz com que o rol de direitos dos indivíduos seja cada vez mais ampliado com o reconhecimento, na legislação interna, do que já é reconhecido em instrumentos internacionais ou pelo atendimento à anseios da população do país. Todavia, o funcionamento do Poder Judiciário requer a presença de um técnico, conhecedor das leis materiais e processuais, para que os indivíduos consigam concretizar seus direitos sempre que diante de lesão ou de ameaça dela.

Basta um conhecimento superficial do volume de legislação e de seus conteúdos para visualizar o mal que um advogado despreparado pode causar à sociedade. Pouco adiantaria fornecer o cidadão com rol tão completo de direitos se não lhe assegurar a qualidade dos instrumentos que vão pleitear tais direitos junto ao Judiciário. Esse é o papel da OAB já que ela presta um serviço público e tem como um de seus objetivos a defesa da Constituição. No atual estado do ensino no Brasil, deixar com que os bacharéis em Ciências Jurídicas possam exercer a profissão de advogados é ato temerário que certamente terá como algumas conseqüências o aumento de demandas e de recursos descabidos.

A Comissão de Educação, no entanto, concorda com o autor do Projeto no que diz respeito à possibilidade de que o exame traga estresse desnecessário ao candidato afora que a “reprovação… pode constituir um ônus financeiro excessivo sobre o candidato obrigado a se inscrever novamente e a novamente arcar com os custos de sua realização.”

Nesse sentido, a Comissão apresenta emenda ao Projeto original, mantendo o exame da Ordem, mas com algumas modificações, quais sejam: “estabelecer novos critérios de administração do exame, de maneira a fixar a periodicidade mínima do exame e a forma de aplicação. Ademais, garante-se, ao aprovado na primeira fase a possibilidade de prestar a segunda sem ter de se submeter novamente à primeira, durante o período de um ano.”

Assim, a emenda conta com a seguinte redação: "Artigo 1º Acrescente-se ao artigo 8º da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994 os seguintes parágrafos, renumerando-se os atuais parágrafos 2º, 3º e 4º: “Artigo 8º………….. § 2º O Exame de Ordem deve ser aplicado quadrimestralmente. § 3º O Exame deve ser aplicado em duas fases: I – a primeira composta de questões objetivas, de múltipla escolha, abordando as matérias integrantes do currículo de Direito definido pelo Ministério da Educação; II – a segunda composta de elaboração de peça técnica privativa de advogado e de questões práticas, sob a forma de situações-problema; § 4º A aprovação na primeira fase do Exame habilita o candidato a prestar a segunda fase e o dispensa de prestar novamente a primeira durante o período de um ano contado da aprovação. Parágrafo 5º A taxa de inscrição de candidato habilitado à segunda fase na forma do parágrafo 4º deve ser cobrada de forma proporcional em relação ao candidato inscrito para a realização das duas fases……….”

O texto dessa emenda, se aprovada for, não altera a periodicidade do exame, que desde a edição do Provimento  109/2005 em seu artigo 4º, ocorre três vezes ao ano (Artigo 4º O Exame de Ordem ocorrerá três vezes por ano, preferencialmente nos meses de abril, agosto e dezembro…” modificado pelo Provimento n. 136/2009 que retira a sugestão dos meses).

Deve-se acrescer à fundamentação da Comissão de Ensino que é notória a discussão acerca dos inúmeros cursos de Direito que são abertos no país. O próprio MEC sem sido responsável pela divulgação de dados que dão conta de quantos cursos deixam de ser reconhecidos. Não é segredo que o Curso de Direito tem alta demanda e é facilmente percebido como garantia de ganhos financeiros pelos empresários da área de educação. O INEP – Instituo Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira é órgão vinculado ao Ministério da Educação responsável pela avaliação dos Cursos. Ainda que em 2004 tenha sido criado o SINAES — Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior os mecanismos existentes não conseguem evitar a proliferação das faculdades (só em 2008 foram mais de 150.000 inscritos em Cursos de Direito no Brasil. Fonte: Censo da Educação Superior 2008, INEP: http://www.inep.gov.br/imprensa/noticias/censo/superior/news09_05.htm).

É essa ausência de mecanismos eficazes para avaliação dos Cursos — algo que, diga-se de passagem, a OAB não faz — que leva à existência, no mercado, de inúmeros bacharéis despreparados. Para proteção da sociedade, o mecanismo possível de utilização pela OAB é o exame que seleciona aqueles que tem os conhecimentos mínimos para exercerem a profissão de advogado.

Assim, preencher os requisitos exigidos pelo MEC é um excelente indicativo da qualidade do Curso, todavia, ele não tem garantido que os bacharéis estejam em condições de exercer a profissão. Com o aumento da oferta de vagas o material humano que se insere nas Instituições é bastante heterogêneo, sendo regra geral que os mais capazes preenchem as vagas das Instituições melhor conceituadas. Esse quadro leva à conclusão que há, sim, cursos onde o material humano é bastante superior ou inferior a outros Cursos, ainda que seja possível encontrar exceções. De qualquer modo, essa heterogeneidade é refletida no mercado quando os indivíduos procuram a defesa de seus direitos.

Pode ser salutar a discussão acerca do conteúdo ou da forma do exame. Perceba-se, no entanto, que a OAB não deixa de atender vozes que expressam críticas construtivas acerca do exame que aplica, ela não fica surda e encastelada sem procurar progressos. Assim é que, desde a sua criação, o exame da OAB já passou por alterações na forma de aplicação (veja‐se, por exemplo, o exame unificado e a responsabilidade pela elaboração da prova) assim como em seu conteúdo (veja-se, por exemplo, os novos conteúdos que passarão a integrar a prova).

O Provimento 136/2009 acaba de inovar ampliando a cobrança de conhecimento sobre Direitos Humanos, Estatuto da Advocacia e da OAB, Regulamento Geral e Código de Ética e Disciplina e não mais permitindo a consulta, na segunda fase, a textos de leis comentadas, interpretadas ou anotadas.

No parágrafo 4º do artigo 6º, a OAB já se posiciona em relação à emenda apresentada na Comissão de Educação, já que veda o aproveitamento da nota de aluno aprovado na primeira fase em concurso anterior para realização de segunda fase (diz o texto: parágrafo 4º. O examinando reprovado pode repetir o Exame de Ordem, vedado o aproveitamento de resultado anterior).

Uma das críticas feitas ao Exame girava em torno da qualidade das perguntas formuladas. Com o Provimento, a OAB exige da Seccional que não participar do Exame unificado que a elaboração das questões seja feita por Banca “composta de no mínimo 03 (três) advogados, no efetivo exercício da profissão, com pelo menos cinco anos de inscrição na OAB e que tenham notório saber jurídico, referencialmente escolhidos entre os que possuam experiência didática.” (artigo 10, I do Provimento 136/2009).

Demonstra-se, assim, que a OAB procura melhorar o exame e que a discussão em seu âmbito interno existe, o que é bastante salutar.

Por outro lado, ainda em relação à possibilidade de extinção do Exame, há quem o critique por entendê-lo inconstitucional. Não se pode olvidar que a própria Constituição Federal vigente aponta a possibilidade de regulamentação de exercício de profissão por leis, de modo bastante claro: "Artigo 5º, XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;…”

Não há, portanto, como querem alguns, inconstitucionalidade no texto do Estatuto eis que o texto constitucional autoriza o estabelecimento de requisitos para o exercício de profissões. A Constituição, em momento algum, veda a possibilidade de exames de conhecimento do bacharel, ao contrário, deixa à lei que defina quais são as qualificações a serem exigidas.

Assim, a Ordem dos Advogados do Brasil, atenta às suas obrigações e ao atual estado do ensino no Brasil, entende mais do que pertinente, mas também essencial, a manutenção do Exame, especialmente por conta da função social exercida pelo advogado.

A Comissão de Ensino Jurídico do CESA – Centro de Estudos das Sociedades de Advogados não pode se divorciar das conclusões a que chegam a OAB e a própria Comissão de Ensino do Senado Federal. A reformulação da prova não é desmerecimento da mesma, mas sim o reconhecimento de que há aperfeiçoamentos a serem feitos. Todavia, sua extinção seria arriscar demasiadamente as possibilidades de concretização de direitos fundamentais.

Autores

  • Brave

    é Membro da Comissão de Ensino Jurídico do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA). Também é professora da Graduação e da Pós-Graduação da PUC – Paraná e sócia de Pamplona & Braz Advogados Associados em Curitiba.

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