Ética Médica

A necessidade do prontuário eletrônico

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11 de maio de 2010, 7h23

O paciente do século XXI não é o mesmo de quando da edição do Código de Ética Médica de 1988. Hoje o paciente já adentra o consultório médico munido do resultado dos seus exames e com um cabedal de informações sobre a doença ao qual porventura esteja acometido, adquiridas por meio de diversas ferramentas, como, por exemplo, a internet.

Esse paciente não mais se deixará enganar por possíveis omissões ou erros de procedimento. Para ele fará toda a diferença ter uma avaliação médica precisa, completa e segura. Ele irá confrontar os dizeres do médico, com as informações previamente pesquisadas e procurará compreender além dos limites de sua formação humanística. O paciente buscará, ainda, ter informações sobre os possíveis riscos e até mesmo os custos do tratamento, além do dispêndio de tempo para realiza-lo, de forma que todos os dados sejam ponderados e, conjuntamente, decididos. Acaso não esteja satisfeito com esse diagnóstico ou mesmo procedimento de tratamento sugerido, irá, invariavelmente solicitar uma segunda opinião. Portanto, o perfil desse novo paciente determina sua participação ativa daquilo que entende ser melhor para si.

Sob essa realidade que no dia 13 de abril de 2010 a classe médica comemorou seu Novo Código de Ética Médica (CEM), Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 1.931/09 de 24 de setembro de 2009, que ab-rogou Resolução CFM 1.246/88, de 08 de janeiro de 1988.

Foram vinte e dois anos desde o último Código de Ética Médica e, como visto, de lá para cá, não só o perfil do paciente e as possibilidades tecnológicas evoluíram, como também se alterou a compreensão sobre a medicina e a ciência como um todo.

Os trabalhos de revisão do Código se iniciaram no ano de 2007 e foram concluídos por oportunidade da IV Conferência Nacional de Ética Médica em agosto de 2009. As propostas de mudanças foram intensamente debatidas pela classe médica, com espaço para a participação de entidades da sociedade civil e de Instituições Científicas e Universitárias, o que confere ao Código uma salutar pluralidade de opiniões não antes vista.

Procurou-se, em seu processo de criação, levar em consideração as mudanças no seio científico, social e jurídico. Nesse ínterim, se fez necessária a comparação e estudo de códigos de ética médica de outros países, além da ponderação de elementos da jurisprudência brasileira e posicionamentos que integram pareceres, decisões e resoluções das Comissões de Ética locais, do CFM e dos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs). Trata-se, portanto, de um Código alinhado às necessidades modernas.

Não obstante, importante lembrar que o CEM é uma Resolução expedida por seu órgão de Classe e, portanto, trata-se de um ato normativo, de natureza hierarquicamente inferior às Leis Ordinárias como o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, por exemplo. Dessa forma, resta contra legem dispositivos como o inciso XX do Capítulo I do novo CEM. Mesmo assim, dada a sua gênese plural e por ser a síntese de intensos debates e posicionamento oficial da classe médica brasileira acerca de questões que lhe são tecnicamente pertinentes, não há como se afastar a alta carga valorativa e principiológica do novo CEM que, sem dúvida, poderá nortear o Judiciário e ajudar a sedimentar alguns conceitos doutrinários em suas decisões. Sua análise detida é, dessa forma, da mais alta relevância.

Na medida do possível, o novo CEM buscou prestigiar questões que hoje são realidade, mas que eram inexistentes à época da elaboração do Código anterior. Entre os principais avanços em destaque encontram-se:

a) o fortalecimento da autonomia das decisões do paciente, como principal peça no processo de decisão acerca da escolha de procedimentos, diagnósticos e terapêuticas possíveis a que queira se submeter (CEM, XXI, capítulo I);

b) o dever de obter o consentimento pessoal do paciente (CEM, artigo 22) sendo também necessária a colheita do consentimento do menor de idade ainda que incapaz juridicamente, quando da realização de pesquisas (CEM, parágrafo único do artigo 101);

c) a necessidade de, quando da participação de seres humanos ou animais em pesquisas, o médico respeitar as normas éticas nacionais, bem como proteger a vulnerabilidade dos sujeitos da pesquisa (CEM, XXIV, capítulo I);

d) a permissão da intervenção em terapia genética para tratamento de doenças, sendo defeso criar embriões com finalidades de escolha de sexo, eugenia ou mesmo seres humanos geneticamente modificados (CEM, artigo 15);

e) as ressalvas na prática da distanásia (CEM, inciso XXII do capítulo I);

f) a inauguração de um capítulo que disciplina da Responsabilidade Profissional (CEM, artigos 15 e 16) desde que observado compatível o disposto em legislação ordinária;

g) a necessidade do médico registrar seu título de Especialista junto ao Conselho Regional em que é inscrito (CEM, artigo 53);

h) o dever médico de, nos anúncios profissionais, incluir o número de inscrição no Conselho Regional de Medicina (CEM, artigo 118);

i) a proibição do uso de placebo em pesquisa, quando houver eficaz tratamento (CEM, artigo 106);

j) a vedação ao médico de opor-se ao pedido do paciente de uma segunda opinião (CEM, artigo 34).

Nota-se que todas estas alterações, foram inspiradas no atendimento aos princípios da benemerência, não maledicência, da Justiça e do Respeito e da Autonomia, elaborados por oportunidade do Belmont Report no ano de 1979, que trouxe ao mundo científico os princípios éticos e diretrizes básicas para a proteção de seres humanos nas pesquisas, o que revolucionou as questões médicas.

Outro ponto a se analisar a respeito do novo CEM é no que concerne aos documentos médicos (CEM, capítulo X). Acerca especificamente do prontuário médico (com conceito previsto no artigo 1º da Resolução CFM 1.638/02) muitos avanços foram conquistados. Além de dispor sobre a necessidade de ser o prontuário médico prescrito de forma legível (CEM, artigo 87), de maneira a identificar seu subscritor, deverá também conter os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, a cada avaliação, em ordem cronológica (CEM, parágrafo 1º do artigo 87). Foi ainda proibido negar, ao paciente, acesso ao seu prontuário ou deixar de lhe fornecer cópia quando solicitada, bem como deixar de lhe dar explicações necessárias à sua compreensão, salvo quando ocasionarem riscos ao próprio paciente ou a terceiros (CEM, artigo 88).

Essas normas do capítulo X do CEM derivam do chamado dever médico de informar. Deverá ser o médico necessariamente competente para prestar adequadas e suficientes informações. Tudo de forma a aclarar dúvidas, dissipar temores e inspirar segurança.

No Brasil, existe vasta legislação que garante aos pacientes o dever de ser informado, que vão desde os preceitos constitucionais (artigo 5º, XIV, XXIII e artigo 220 da Constituição), passando pelo Código de Defesa do Consumidor (artigo 6º III e artigo 31), adentrando a Lei paulista 10.241/99 e permeando inúmeras Resoluções do Conselho Federal de Medicina, com destaque à 1.358/92 e, agora, o artigo 34 do novo CEM que preceitua ser vedado ao médico: “Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal”. Essas normas em conjunto formam aquilo que no seio jurídico se determina consentimento informado.

Para a formação do consentimento informado não basta aos médicos que apenas informem. É preciso que os destinatários tenham consciência, de forma clara e precisa de suas opções. E mais: ao paciente do século XXI, é necessário que os clínicos falem em linguagem didática e acessível a vários tipos de pessoas, com níveis diferentes de entendimento. Torna-se preciso que os médicos esclareçam as opções possíveis e que sintam que efetivamente os pacientes conseguiram compreender tudo o que se passa. Formado o consentimento do paciente, este poderá opinar sobre quais tratamentos quer ser submetido e, ademais, se quiser, poderá ainda consultar em outros médicos.

Nesse ponto, descobre-se uma dificuldade de ordem prática, que o novo CEM tenta resolver no citado artigo 88. Referida norma determina ser proibido negar, ao paciente, acesso ao seu prontuário ou deixar de lhe fornecer cópia quando solicitada, bem como deixar de lhe dar explicações necessárias à sua compreensão, salvo quando ocasionarem riscos ao próprio paciente ou a terceiros. Entretanto, essa ainda não é a realidade que se reflete na maior parte dos hospitais do país.

Muitos pacientes, que procuram uma segunda opinião não conseguem de uma forma prática e rápida acesso ao seu prontuário de maneira a informar o novo médico acerca de sua doença ou mesmo para cientificá-lo adequadamente acerca dos tratamentos e remédios a que fez uso. Nesses casos, o acesso a esse documento encontra-se obstaculizado por meio dos procedimentos burocráticos dos hospitais e clínicas médicas, quando não o seu acesso encontra-se negado, sob a alegação de que se trata de documento interno e de propriedade do hospital, temerários que estão os administradores dos centros clínicos acerca de eventual responsabilização civil.

Noutras vezes, o médico se vê impossibilitado ou com dificuldades de fechar o real quadro clínico de seu paciente por absoluta ausência de um histórico médico do paciente, que por decorrência de sua circunstância de vida, nunca se tratou regularmente no mesmo local. Desse modo, esse paciente, tem vários prontuários, em diversos hospitais, o que inviabiliza um estudo aprofundado acerca de suas reais condições de saúde. Muitos médicos e hospitais esquecem que o prontuário médico e suas anotações pertencem ao paciente, como um reflexo de seu direito da personalidade à saúde.

Situações como essas seriam facilmente resolvidas caso houvesse a implantação de um Prontuário Eletrônico do Paciente (PEP), utilizando-se das modernas ferramentas da informática e das tecnologias de informação (TIs) em prol da saúde dos pacientes. Esse PEP deve ser entendido como um arquivo virtual mantido em um computador que guarda informações vitais sobre a saúde do paciente ao longo de toda a sua história.

Para chegar ao consentimento informado como desejável, de maneira que o médico pudesse “fechar” o quadro clínico de seu paciente de forma a diminuir os riscos e administrar eventuais problemas ou situações inesperadas, o uso de uma ferramenta dessas seria de suma importância. Maiores elementos e informações se teriam para uma discussão médica.

Por exemplo, seria possível a um médico acessar um computador na sala de tratamento e, com base em todas as informações essenciais e relevantes do PEP, evitar uma possível cirurgia ou exame clínico e, de pronto, bastaria ao médico fazer um diagnóstico simplificado e prescrever o tratamento mais adequado. Este já seria prontamente disposto no computador e, assim, seria um importante mecanismo para trazer melhores condições ao paciente, evitando maiores despesas e tentativas médicas que, comumente, por absoluta ausência de informação, não dão qualquer resultado.

O uso do PEP alcançaria inúmeras outras possibilidades, uma vez que viabilizaria não apenas que o histórico da receita e tratamento médico ficasse arquivado para a análise de futuras consultas, mas também serviria desde o envio de determinada receita médica para um laboratório ou farmácia de manipulação de forma rápida, compreensível e legível, como também registraria a conduta do médico, de maneira a formar prova de sua atuação profissional.

Ademais, a medicina contemporânea contém texto, imagem e sinais fisiológicos, típicos de natureza multimídia. Observa-se cada vez mais que determinadas especialidades médicas tornaram-se visuais. O uso do PEP viria a atender esse avanço da ciência médica, cada vez mais complexa. Não se tem dúvidas, dessa forma, que estes sistemas de PEP serão a grande promessa para a próxima década e, além de auxiliar na assistência ao paciente, oferecerá ainda oportunidades no desenvolvimento de novas pesquisas.

As primeiras tentativas de unir o acúmulo e transmissão de informações relativas à saúde de forma responsável e fidedigna remetem ao juramento de Hipócrates. Entretanto, o órgão precursor por unir a informática na seara da saúde foi a International Medical Informatics Association, entidade independente fundada em 1967 e que hoje mantém laços estreitos com a Organização Mundial da Saúde. Referido órgão desempenha um importante papel global na aplicação da ciência da informação e da tecnologia nos domínios da saúde e investigação na medicina, sendo este um de seus objetivos fundamentais.

Atualmente, o PEP tem se destacado como importante instrumento de política pública na saúde para redução de custos e melhora da qualidade de atendimento médico, desde que garantida a privacidade do paciente e a eficiência do sistema, outras questões importantes a serem lidadas. Cita-se, a exemplo, o que fez a gestão atual do presidente norte-americano Barack Obama, na aprovação dos pacotes de recuperação da saúde em seu país ao sancionar a chamada “Lei de recuperação à saúde” em 2009 que criou a previsão de gastos com os PEPs na ordem de US$ 19 bilhões.

No Brasil, em 2002, foram aprovadas pelo CFM as Resoluções 1.638/02 e 1.821/07 que reconheceram o PEP como forma legal de arquivamento das informações do paciente. Especificamente a Resolução 1.821/07 procurou disciplinar e uniformizar o procedimento de digitalização dos prontuários tradicionais, além de disponibilizar assinatura eletrônica para que médicos pudessem atuar no universo digital. Entretanto, muito ainda há a avançar.

Importante para o Brasil aprender com a experiência de hospitais e centros clínicos que têm utilizado as PEPs. A experiência dos hospitais norte-americanos que instituíram os prontuários médicos totalmente informatizados tem demonstrado excelentes resultados de qualidade e eficiência no atendimento de seus pacientes. Em nosso país, inúmeros estudiosos têm se dedicado ao tema, muitos debates são promovidos nas academias, aguardando a boa vontade de nossos políticos a darem a atenção que o tema merece a exemplo do que ocorreu recentemente nos Estados Unidos.

Dessa forma, dada a importância do PEP para a construção do pleno atendimento do direito da personalidade à saúde e para se formar o consentimento informado do paciente, sugere-se, de lege ferenda, que se aproveite o propício momento de discussão do novo CEM e do período eleitoral para que se crie pela via governamental um cadastro único nacional e integrado para facilitar o acesso dos médicos de diferentes locais às informações necessárias e relevantes para a prestação de cuidados aos pacientes. A título de sugestão, poder-se-ia vincular referido cadastro ao Registro Geral de Identidade das pessoas naturais apto a fornecer um histórico da saúde do paciente, desde, é claro, que assegurada a privacidade de informações ali contidas. Essa será mais uma maneira eficaz de se promover a saúde (artigo 6º da Constituição) e a dignidade da pessoa humana, fundamento de nossa República (artigo 1º, III, da Constituição).

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