Direito Eleitoral

Professor diz que Legislativo não acata Justiça

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9 de maio de 2010, 17h03

“Apesar de todos os avanços da Justiça Eleitoral, ela ainda é enfrentada por comportamentos institucionais retrógrados que teimam em não reconhecer a autoridade de suas decisões”. Foi o que afirmou André Rufino do Vale, mestre em Direito pela UnB e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, e também assessor-chefe do ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal, no I Congresso Brasiliense de Direito Eleitoral.

Com o tema, "a eficácia e autoridade das decisões da Justiça Eleitoral: as decisões judiciais que implicam perda do mandato parlamentar", o professor comemora os avanços da Justiça Eleitoral no Brasil.

Ele diz, ainda, que apesar de existirem projetos de lei com o intuito de proibir a candidatura de políticos condenados na Justiça, o Supremo Tribunal Federal tem um entendimento diferente. A vedação só se daria apenas após o trânsito em julgado.

O evento reuniu os ministros Carlos Ayres Britto e Gilmar Mendes, ambos do Supremo Tribunal Federal, para debater as perspectivas e desafios que o Brasil enfrentará neste ano. A mesa foi presidida pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal, Francisco Caputo.

O ministro Gilmar Mendes encerrou, na tarde desta sexta-feira (7/5), o Congresso, realizado pelo Instituto de Direito Eleitoral do Distrito Federal (IDEDF) e pela Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais (Abramppe). O Congresso reuniu os maiores especialistas em Direito Eleitoral do Brasil, assim como ministros do STF e do TSE, advogados, magistrados, promotores e procuradores eleitorais.

Em sua palestra, o ministro Gilmar Mendes fez um retrospecto da Justilça Eleitoral no Brasil e de seus avanços desde a Constituição de 1988, enfocando também os principais julgamentos do Supremo Tribunal Federal em matéria eleitoral. Para Gilmar Mendes, os entendimentos firmados pelo STF em questões como a fidelidade partidária e a cláusula de barreira, por exemplo, demonstram os déficits do sistema proporcional e a necessidade de uma ampla reforma política no Brasil.

Leia abaixo a palestra palestra do professor André Rufino do Vale.

"Senhoras e Senhores aqui presentes,

No presente painel estamos a tratar da atuação da Justiça eleitoral, especificamente de sua relação com os demais ramos do Poder Judiciário. Em minha intervenção, pretendo ir um pouco mais além, para abarcar um tema que repercute não só nas relações da Justiça Eleitoral com outras instâncias do Poder Judiciário, mas na própria legitimidade de suas decisões perante os Poderes do Estado. Refiro-me à questão da eficácia e da autoridade das decisões judiciais e, em especial, das decisões da Justiça Eleitoral.

Este é um tema que esteve na pauta de discussões do Direito Eleitoral brasileiro desde a criação da Justiça Eleitoral e da promulgação de nosso primeiro Código eleitoral, no ano de 1932. No entanto, a instabilidade institucional, que marcou a nossa curta história republicana, e a indefinição dos marcos legais do Direito Eleitoral, tornaram impraticável qualquer avanço nessa temática.

Ressalto, não obstante, que, no período anterior a 1988, podemos encontrar decisões memoráveis da Justiça Eleitoral. Tivemos, por exemplo, a decisão do Tribunal Superior Eleitoral que reconheceu poderes constituintes ao Parlamento eleito em 2 de dezembro de 1945 (a Resolução 215), o que viria a permitir a elaboração da Carta Constitucional de 1946. O Tribunal Superior Eleitoral também teve papel decisivo nas eleições presidenciais indiretas de 1985, com a edição das Resoluções (11.180/1982 e 12.017/1984) que, ao viabilizarem a incorporação do Partido Popular (PP), de Tancredo Neves, pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), e rechaçarem a incidência das normas de fidelidade partidária na composição do Colégio Eleitoral, tornaram possível a vitória de Tancredo Neves e José Sarney nas eleições para a Presidência da República.

Tais decisões, porém, foram pontuais e especificamente situadas política e historicamente.

Lembro, ademais, que, até pouco mais de uma década, tínhamos um processo eleitoral regulado por leis temporárias, elaboradas ad hoc para cada eleição. Leis casuísticas que impediam a construção de uma verdadeira jurisprudência em matéria eleitoral.

Hoje, temos a oportunidade de nos reunir neste Congresso de Direito Eleitoral e discutir abertamente sobre os avanços da jurisprudência eleitoral. Vivemos o mais longo período de estabilidade institucional de nossa história republicana. Nossa situação política reúne as condições que Robert Dahl identifica como pressupostos de uma verdadeira democracia, dentre as quais sobressai a existência de uma cultura política e de convicções democráticas . Nossa democracia adquiriu autonomia. Somos uma nação convictamente democrática. Os conflitos políticos e as crises econômicas são resolvidos dentro dos marcos constitucionais. As forças políticas e sociais submetem-se ao jogo da democracia. Eleições diretas são realizadas regularmente num ambiente de normalidade institucional.

O clima de estabilidade democrática foi decisivo para o pleno desenvolvimento da Justiça Eleitoral no Brasil. Digno de nota é o trabalho que vem sendo desenvolvido, desde o início da década de 1990, de informatização do processo eleitoral. Somos uma nação de mais de 130 milhões de eleitores, na qual o resultado das eleições gerais pode ser oficialmente divulgado em menos de 24 horas. Os resultados, extremamente positivos, da utilização das urnas eletrônicas demonstram a posição de vanguarda da Justiça Eleitoral brasileira em relação às denominadas “antigas democracias”. Registrem-se, ainda, os avanços significativos nos últimos anos para a implementação definitiva da identificação biométrica do eleitor.

Além de todos esses notórios progressos, é importante perceber que a referida situação perene de pleno funcionamento das instituições democráticas criou as condições ideais para a formação de uma sólida legislação em matéria eleitoral, o que contribuiu decisivamente para a construção de uma verdadeira jurisprudência por parte da Justiça Eleitoral. Apenas para citar as mais importantes, a Lei das Eleições (9.504/97), a Lei dos Partidos Políticos (9.096/95) e a Lei das Inelegibilidades (a Lei Complementar 64/90) formam hoje, em conjunto com o que restou do Código Eleitoral de 1965, um corpo de normas que regula de forma geral e abstrata todos os pleitos eleitorais.

O fato é que, nas últimas duas décadas, assistimos ao vertiginoso desenvolvimento da Justiça eleitoral no Brasil, que é hoje considerada uma das instituições mais respeitadas pelos brasileiros.

Não é de se estranhar, portanto, que a constante e rigorosa atuação da Justiça Eleitoral na fiscalização dos pleitos eleitorais resultasse, em tempos mais recentes, em corajosas decisões de cassação de registros e de diplomas. Tais decisões costumam gerar fortes reações dos diversos setores políticos, que tornam difícil o seu efetivo cumprimento e obstruem os canais de legitimação dos atos da Justiça Eleitoral perante os demais Poderes do Estado.

Chegamos, então, a um estágio de desenvolvimento institucional em que a Justiça Eleitoral se depara com o desafio de assegurar a autoridade e a efetividade de suas decisões.

Nesta pequena intervenção, pretendo focar apenas em um dos aspectos dessa abrangente temática da autoridade e da efetividade das decisões da Justiça Eleitoral. Submeto à reflexão de todos um problema que toca especialmente na sempre difícil relação do Poder Judiciário, e particularmente da Justiça Eleitoral, com o Poder Legislativo. Refiro-me a um grupo específico de decisões judiciais que repercutem diretamente no mandato parlamentar. Começo, então, pelas decisões da Justiça Eleitoral que têm por conteúdo dispositivo a cassação do diploma por captação ilícita de sufrágio.

O artigo 41-A da Lei das Eleições (Lei 9504/97) diz que a captação ilícita de sufrágio leva à cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento da ação de investigação judicial eleitoral previsto no artigo 22 da Lei das Inelegibilidades, a Lei Complementar 64, de 1990.


Em seu sentido literal, tal artigo deixa entender que a decisão da Justiça Eleitoral que cassa o registro do candidato ou o diploma do eleito somente pode produzir plenos efeitos após o seu trânsito em julgado, como exige o artigo 15 da Lei Complementar 64, de 1990, em relação à declaração de inelegibilidade.

No entanto, há muito o Tribunal Superior Eleitoral tem jurisprudência consolidada no sentido de que as sanções de cassação de registro ou de diploma, previstas em diversos dispositivos da Lei das Eleições, não constituem novas hipóteses de inelegibilidade  e que, portanto, a sanção de cassação de registro ou do diploma, imposta pelo artigo 41-A da Lei das Eleições, não se confunde com a declaração de inelegibilidade ante a ocorrência de alguma das hipóteses definidas no artigo 14 da Constituição e na Lei Complementar 64/90. Não se aplica, portanto, o artigo 15 da Lei Complementar 64, que exige o trânsito em julgado.

Assim, entende o TSE que a representação para apurar a conduta descrita no artigo 41-A da Lei 9.504/97 segue apenas o procedimento dos incisos I a XIII do artigo 22 da LC 64/90, não incidindo, nesse caso, os incisos XIV e XV .

A conclusão, portanto, é de que a decisão fundada no artigo 41-A, que cassa o registro ou o diploma do candidato, tem eficácia imediata, não se aplicando, na hipótese, o previsto no artigo 15 da LC 64/90, que exige o trânsito em julgado da decisão para a declaração de inelegibilidade do candidato.

Os recursos interpostos contra tais decisões são regidos pela regra geral do art. 257 do Código Eleitoral, segundo a qual os recursos eleitorais não têm efeito suspensivo.

Esse entendimento também foi encampado pelo Supremo Tribunal Federal, quando apreciou a constitucionalidade do artigo 41-A da Lei das Eleições, no julgamento da ADI 3592. O STF afirmou categoricamente que: 1) as sanções de cassação do registro ou do diploma previstas pelo artigo 41-A da Lei 9.504/97 não constituem novas hipóteses de inelegibilidade; 2) a captação ilícita de sufrágio é apurada por meio de representação processada de acordo com o artigo 22, incisos I a XIII, da Lei Complementar 64/90, e não se confunde com a ação de investigação judicial eleitoral, nem com a ação de impugnação de mandato eletivo, pois não implica a declaração de inelegibilidade, mas apenas a cassação do registro ou do diploma; 3) a decisão fundada no artigo 41-A da Lei 9.504/97 tem eficácia imediata, não incidindo, na hipótese, o previsto no artigo 15 da LC 64/90, que exige o trânsito em julgado da decisão para a declaração de inelegibilidade do candidato; 4) os recursos interpostos contra tais decisões são regidos pela regra geral do artigo 257 do Código Eleitoral, segundo a qual os recursos eleitorais não têm efeito suspensivo.

Assim, é curioso notar que, mesmo diante do firme posicionamento da Corte Eleitoral e da Corte Constitucional, ainda seja tão difícil fazer cumprir as decisões da Justiça Eleitoral que cassam o diploma por captação ilícita de sufrágio.

Lancemos um olhar retrospectivo sobre casos recentes levados ao TSE e ao STF e observaremos a verdadeira via crucis percorrida até o definitivo cumprimento da decisão. As medidas procrastinatórias são sempre utilizadas com maestria. Como já está assentado o entendimento segundo o qual as decisões que aplicam o artigo 41-A têm aplicabilidade imediata e os recursos contra elas interpostos não têm efeito suspensivo, uma vez prolatadas as decisões em única ou última instância, começa então a proliferação das ações cautelares com pedido de efeito suspensivo. A maioria dessas medidas cautelares são negadas nos próprios Tribunais Eleitorais. E também os recursos ordinários e extraordinários têm seguimento negado na Justiça Eleitoral, abrindo a porta para a interposição dos agravos e de novos pedidos de medida cautelar no Supremo Tribunal Federal.

Ressalte-se, que, nos últimos casos levados ao STF, a Presidência do Tribunal tem cumprido relevante papel, ao negar prontamente seguimento aos recursos e medidas cautelares com caráter evidentemente procrastinatório, antes mesmo da distribuição desses processos. É importante frisar, ainda, que, em alguns casos, poderá a Presidência, ao tomar conhecimento do protocolo desses recursos e medidas cautelares, levar imediatamente as questões imediatamente ao Plenário do Tribunal para julgamento definitivo, impedindo que novos recursos de decisões monocráticas do Presidente venham a ser interpostos.

Recentemente, começaram a surgir no Supremo Tribunal Federal algumas Reclamações com fundamento na violação da decisão do STF na ADI 3.592. Prolatada a decisão na Justiça eleitoral e cassado o diploma com base no artigo 41-A, entra-se com a reclamação alegando-se que o Tribunal Eleitoral não observou o rito previsto nos incisos I a XIII do artigo 22 da LC 64/90 e que, dessa forma, teria afrontado a decisão do STF na ADI 3592. Como se vê, trata-se apenas de mais um meio procrastinatório do cumprimento das decisões da Justiça Eleitoral que cassam o diploma com base no artigo 41-A. Além dos inúmeros recursos e medidas cautelares nas diversas instâncias, abriu-se agora a via da reclamação perante o STF.

Diante de toda essa confusão processual, que muitas vezes torna praticamente impossível saber qual decisão judicial cumprir, pode ser até compreensível que, na maioria dos casos, as Casas Legislativas se neguem a dar cumprimento imediato às decisões que cassam o diploma com fundamento no artigo 41-A.

Mas o problema que verificamos não se encontra exatamente no não cumprimento das decisões submetidas ao referido sem-número de recursos e medidas cautelares, mas no descumprimento das decisões já transitadas em julgado. Sim, porque a praxe adotada pelas Casas Legislativas tem sido, além da exigência do trânsito em julgado — o que claramente contraria os firmes posicionamentos do TSE e do STF quanto à aplicabilidade imediata das decisões fundadas no artigo 41-A –, a adoção de uma interpretação amplíssima do artigo 55, parágrafo 3º, da Constituição. O dispositivo constitucional estabelece que, no caso de perda do mandato em virtude de decisão da Justiça Eleitoral – o que está no inciso V desse mesmo art. 55 –, caberá à Mesa da Casa respectiva declarar essa perda de mandato, assegurada a ampla defesa. Vejam que o dispositivo fala em assegurar a ampla defesa. Assim, ante a abertura do texto constitucional, parece óbvio que tanto a Câmara dos Deputados como o Senado Federal tendam a interpretá-lo no sentido de que, recebido ofício da Justiça Eleitoral comunicando a decisão que implica a perda do mandato parlamentar, cabe à Casa legislativa abrir processo administrativo interno que assegure o direito de ampla defesa ao parlamentar.
Dois casos recentes levados ao julgamento do Supremo Tribunal Federal bem demonstram esse entendimento adotado pelas duas Casas parlamentares: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.

O primeiro é o conhecido “caso Ronivon Santiago”, o Mandado de Segurança n° 25.458 impetrado contra a Câmara dos Deputados, que vinha se omitindo no cumprimento imediato da decisão da Justiça Eleitoral que decretara a perda do mandato do referido deputado em razão da aplicação do art. 41-A. Recebido o Ofício da Justiça Eleitoral, a Câmara dos Deputados abriu procedimento administrativo interno e remeteu o ofício ao Corregedor da Casa legislativa, que então abriu prazo ao parlamentar para produção de defesa. O procedimento administrativo foi posteriormente sobrestado, em virtude de decisão do TSE, em ação cautelar, que suspendia os efeitos da decisão que cassara o diploma do deputado. Cassada a medida cautelar pelo próprio TSE e novamente comunicada a decisão à Câmara dos Deputados, a Casa Legislativa passou a adotar medidas de caráter protelatório do cumprimento da decisão. A Comissão de Constituição de Justiça da Câmara dos Deputados chegou a se pronunciar no sentido de que o cumprimento somente poderia ocorrer ante o efetivo trânsito em julgado da decisão da Justiça Eleitoral. Em face desse expressivo quadro de procrastinação do cumprimento da decisão da Justiça Eleitoral, o Supremo Tribunal Federal reafirmou o posicionamento de que as decisões judiciais que aplicam o art. 41-A têm eficácia imediata, independentemente de qualquer recurso. Cabe à Casa Legislativa, ao ser comunicada da decisão judicial, apenas cumpri-la, decretando, por ato da Mesa, a perda do mandato parlamentar. Não compete à Casa Legislativa abrir qualquer tipo de procedimento administrativo visando a submeter a decisão judicial ao crivo dos parlamentares. O ofício da justiça eleitoral constitui um verdadeiro mandado judicial a ser cumprido em seus estritos termos. O ato da Mesa é de caráter meramente declaratório, e a ampla defesa de que trata o art. 55, § 3º, da Constituição, é meramente formal. Na verdade, a ampla defesa de que fala a Constituição diz respeito apenas aos aspectos formais da comunicação da decisão pela Justiça Eleitoral; refere-se à autenticidade do ofício, à existência ou não da ordem judicial.


Pensar de outra forma seria conferir à Casa Legislativa competência para julgar uma rescisória que pudesse reapreciar e desconstituir a ordem da Justiça Eleitoral.

O segundo caso é o também conhecido “caso Expedito Júnior”, o Mandado de Segurança n° 27613 impetrado contra a recusa do Senado Federal em dar imediato cumprimento à decisão do Tribunal Regional Eleitoral que havia cassado o diploma do referido Senador por captação ilícita de sufrágio. Contra a decisão do TRE, o Senador havia interposto recurso ordinário, ao qual não fora atribuído efeito suspensivo. Ação cautelar foi então ajuizada para atribuir efeito suspensivo ao recurso ordinário. O TSE indeferiu o pedido da ação cautelar. A Mesa do Senado Federal, mesmo tendo sido comunicada de todas essas decisões, decidiu aguardar o trânsito em julgado da decisão da Justiça Eleitoral. O Supremo Tribunal Federal, ao perceber a atitude procrastinatória do Senado Federal, novamente teve que reafirmar seu posicionamento no sentido de que a decisão da Justiça Eleitoral com fundamento no art. 41-A, uma vez comunicada à Casa Legislativa, deve ser cumprida imediatamente, por ato de caráter meramente declaratório, sem que se possa cogitar da abertura de qualquer procedimento administrativo interno que vise a reapreciar, em juízo político, a decisão judicial.

Esses exemplos nos demonstram que, apesar de todos os avanços da Justiça Eleitoral, ela ainda é enfrentada por comportamentos institucionais retrógrados que teimam em não reconhecer a autoridade de suas decisões. A atuação cada vez mais independente, dinâmica e eficiente da Justiça Eleitoral ainda nos mostrará muitos casos de cassação de mandatos, seja por captação ilícita de sufrágio, ou mesmo pelas novas decisões sobre infidelidade partidária. Muito provavelmente, o Supremo Tribunal Federal ainda será obrigado a julgar os atos omissivos ou procrastinatórios das Casas Legislativas no cumprimento das decisões da Justiça eleitoral.

Estamos aqui diante de uma espécie de decisões que atuam nas relações fronteiriças entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo. E nesse campo certamente ainda teremos que passar por um aprendizado institucional.

Esse tipo de comportamento das Casas Legislativas também pode ser observado diante de outro grupo de decisões, não necessariamente da Justiça Eleitoral. Por exemplo, as decisões judiciais condenatórias por atos de improbidade administrativa, as quais podem aplicar a pena de suspensão dos direitos políticos do condenado, consoante o art. 15, inciso V, da Constituição.

O art. 20 da Lei n° 8.429/92 prescreve que a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória. A hipótese da improbidade administrativa distingue-se, dessa forma, pela exigência expressa do trânsito em julgado para o cumprimento efetivo da decisão. Quanto à pena de suspensão dos direitos políticos, ressalte-se que deve ela vir expressa na decisão condenatória por ato de improbidade administrativa, ao contrário do que ocorre na sentença condenatória penal, que tem como efeito próprio a suspensão dos direitos políticos, bastando que o juiz penal comunique o fato ao juiz eleitoral. Isso porque a sanção de direitos políticos não é decorrência lógica de toda decisão condenatória por improbidade administrativa. Ela constitui apenas mais um tipo de pena, que poderá ser aplicada ou não, de acordo com as circunstâncias específicas do caso concreto, considerados os critérios de razoabilidade e proporcionalidade.

A decisão condenatória por ato de improbidade administrativa que aplica a pena de suspensão dos direitos políticos deve ser comunicada à Casa Legislativa, que deverá então decretar a perda do mandato parlamentar. É a hipótese de aplicação do art. 15, inciso V, combinado com o art. 55, inciso IV, e § 3º, da Constituição. Assim, aqui não estamos mais diante do caso de perda do mandato em decorrência de decretação da Justiça eleitoral, mas em virtude de suspensão dos direitos políticos por decisão condenatória por atos de improbidade administrativa.

Em tema de improbidade administrativa, também encontramos o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal a respeito do não cumprimento de decisões judiciais por parte das Casas Legislativas do Congresso Nacional. No Mandado de Segurança n° 25.461, o denominado “caso Paulo Marinho”, o STF também se deparou com o ato da Mesa da Câmara dos Deputados, que, ao receber a comunicação da decisão judicial, instaurou procedimento administrativo e depois o sobrestou, sob alegação de não existência do trânsito em julgado da decisão. E o STF teve que afirmar, também aqui, que, uma vez comunicada a decisão judicial que suspende os direitos políticos em virtude de condenação por improbidade administrativa, não cabe à Casa Legislativa outra conduta senão a de fazer cumprir a decisão e declarar a perda do mandato do parlamentar.

Podemos constatar então que, da mesma forma que ocorre nos casos de captação ilícita de sufrágio – e que também poderemos aplicar às hipóteses de infidelidade partidária –, as decisões condenatórias por atos de improbidade administrativa devem ser cumpridas imediatamente pelas Casas Legislativas, não cabendo qualquer tipo de procedimento administrativo que vise a avaliar o acerto ou desacerto, a justiça ou injustiça das decisões judiciais. A decisão das Mesas das Casas Legislativas é meramente declaratória, e a ampla defesa de que trata o art. 55, § 3º, da Constituição, tem caráter meramente formal e se destina apenas a avaliar a existência da decisão judicial, o que abrange a autenticidade do ofício que a comunica.

Observadas as hipóteses de aplicação do art. 55, § 3º, da Constituição, nos casos de captação ilícita de sufrágio – hipótese do inciso V do art. 55 – e de improbidade administrativa – hipótese do inciso V do art. 15 combinado com o inciso IV do art. 55 –, somos então levados a crer que os demais casos de suspensão de direitos políticos em virtude de decisão judicial, e que repercutem diretamente sobre o mandato parlamentar, deveriam se submeter à mesma lógica normativa, cabendo às Casas Legislativas o estrito e imediato cumprimento das ordens judiciais. Porém, não é o que ocorre nos casos de condenação penal.

O art. 15, inciso III, da Constituição, estabelece a suspensão dos direitos políticos em decorrência de condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos. O dispositivo constitucional contém uma regra geral que prescreve a suspensão dos direitos políticos como efeito automático da sentença penal transitada em julgado. Não é necessário que a decisão judicial disponha especificamente sobre essa penalidade. Basta que o juízo penal comunique a decisão condenatória à Justiça Eleitoral para as providências cabíveis. Essa é a regra geral, válida para todos os cidadãos. E é razoável que assim seja, pois parece confrontar todos os princípios de um Estado democrático de Direito que alguém condenado na esfera criminal possa de qualquer forma participar da gestão da coisa pública. Há um substrato ético na norma. E, em muitos casos, a suspensão dos direitos políticos nessas hipóteses decorre de um imperativo lógico, pois a condenação penal que resulta na privação da liberdade torna impraticável o exercício dos direitos políticos.

A Constituição de 1988, no entanto, excepcionou um grupo específico dessa regra geral. O art. 55, inciso VI e § 2º, estabelece que a condenação criminal transitada em julgado não produz automaticamente o efeito de suspender os direitos políticos e, dessa forma, não implica a imediata perda do mandato parlamentar. Uma vez comunicada a decisão condenatória penal a uma das Casas Legislativas do Congresso Nacional, instaura-se processo administrativo, por provocação da Mesa ou de partido político, com vistas a assegurar a ampla defesa ao parlamentar, que só perderá o mandato por decisão da respectiva Casa, tomada em votação secreta e por maioria absoluta. É exatamente isso que dispõe o § 2º do art. 55 da Constituição. Aqui a Constituição impõe a decisão de caráter constitutivo por parte da Casa Legislativa, e não mais aquela de caráter meramente declaratório, como ocorre nos demais casos de perda de mandato por decretação da Justiça Eleitoral (inciso V do art. 55) ou em razão da suspensão dos direitos políticos em decorrência de decisão condenatória por ato de improbidade administrativa (inciso IV do art. 55). Em outros termos, o constituinte retirou a condenação criminal transitada em julgado das hipóteses previstas no § 3º do art. 55, que implicam a perda automática do mandato parlamentar, e a inseriu na sistemática do § 2º do art. 55, que condiciona a perda do mandato à prévia apreciação da respectiva Casa Legislativa.


Observamos, com isso, a antinomia existente entre o art. 15, inciso III e o art. 55, inciso VI e § 2º, da Constituição. O art. 15, inciso III, prescreve a suspensão dos direitos políticos como um efeito automático de toda condenação penal transitada em julgado. O art. 55º, inciso VI e § 2º, dispõe que a perda do mandato parlamentar, na hipótese de sentença penal transitada em julgado, fica condicionada ao juízo político e soberano das Casas Legislativas do Congresso Nacional.

Estamos diante de uma questão extremamente complexa. Temos duas normas constitucionais originárias em patente situação de conflito normativo. Trata-se de um típico caso entre aqueles que a teoria do método jurídico convencionou denominar de casos difíceis, os conhecidos hard cases. E, sobre a solução desse conflito de normas constitucionais originárias, não se pode vislumbrar um posicionamento firme e definitivo do Supremo Tribunal Federal. A análise dos poucos casos julgados pela Corte – especificamente os Recursos Extraordinários 179.502, 225.019, 418.876 – demonstra a existência de posicionamentos divergentes de Ministros já aposentados. Com a total modificação da composição da Corte nos últimos anos, podemos dizer, com toda certeza, que o tema está em aberto e deve ser, em breve, revisitado.

Não pretendo aqui encontrar soluções definitivas para essa complexa questão constitucional, mesmo porque estamos a tratar do campo do plausível e do razoável e não das respostas corretas. Tentemos agora apenas refletir sobre soluções possíveis, tendo em mente o que tratamos até o presente momento a respeito da autoridade e da eficácia das decisões judiciais que repercutem no mandato parlamentar.

Rememoremos então os posicionamentos de alguns Ministros do STF sobre a antinomia das normas constitucionais em questão.

A posição adotada pelo STF nos referidos julgados – Recursos Extraordinários 179.502, 225.019, 418.876 – partiu da tese do Ministro Moreira Alves. Para o Ministro, o art. 15, inciso III, da Constituição, é norma autoexecutável e se aplica a todo e qualquer tipo de condenação criminal, mesmo nos casos de suspensão condicional da pena (o sursis) ou naqueles em que não há privação da liberdade do condenado, de forma que sua autoaplicabilidade independe de lei infraconstitucional que defina quais decisões penais podem resultar na suspensão dos direitos políticos. Tendo em vista que a norma do art. 15, III, tem fundamento ético –ou seja, parte-se do pressuposto de que o criminoso condenado não pode participar de qualquer negócio público –, ela não se aplica apenas aos casos em que haja privação da liberdade, destinando-se a regular toda e qualquer condenação penal. Ademais, quanto ao conflito normativo entre o art. 15, inciso III e o art. 55, inciso VI e § 2º, da Constituição, a posição sustentada por Moreira Alves foi a de que ela constitui uma antinomia do tipo que Norberto Bobbio denominou de “antinomia total-parcial”, que se resolve com o critério da especialidade, isto é, a norma especial restringe o âmbito de aplicação da norma geral. O art. 15, inciso III, seria a norma geral e o art. 55, inciso VI e § 2º, a norma especial, aplicável apenas aos parlamentares. Assim, nas palavras do Ministro Moreira Alves, “o problema se resolve excepcionando-se da abrangência da generalidade do artigo 15, III, os parlamentares referidos no artigo 55, para os quais, enquanto no exercício do mandato, a condenação criminal por si só, e ainda quando transitada em julgado, não implica a suspensão dos direitos políticos, só ocorrendo tal se a perda do mandato vier a ser decretada pela Casa a que ele pertencer”.

Como podemos verificar, a solução dada pelo Ministro Moreira Alves parte da relação lógico-formal entre as normas constitucionais do art. 15 e do art. 55 e, por isso, ela adota o critério de especialidade para a solução do conflito normativo. Ao mesmo tempo, alude ao fundamento ético da norma do art. 15, inciso III, para chegar à conclusão de que ela não faz distinção entre diversos tipos de condenação penal, pois, como princípio geral, o condenado criminalmente não está em condições éticas de participar da gestão da coisa pública.  Aqui parece haver uma certa incongruência ou uma possível descontinuidade entre os argumentos, pois o critério da especialidade adotado para solucionar o conflito normativo leva à solução completamente oposta ao fundamento ético utilizado para interpretar o art. 15, inciso III. Se o fundamento ético-jurídico do artigo 15, inciso III, é que o condenado penalmente não tem condições éticas para participar da vida pública, então podemos concluir que também o parlamentar condenado criminalmente não tem condições de exercer plenamente um dos mais nobres direitos políticos, que é a representação popular. A adoção de critérios lógico-formais para a solução do conflito normativo, portanto, não parece chegar a soluções condizentes com a própria ratio do art. 15 da Constituição.

Tese oposta foi defendida pelo Ministro Sepúlveda Pertence. Para o Ministro Pertence, o art. 15, inciso III, da Constituição, não é norma de eficácia plena imediata e, dessa forma, não se aplica a toda e qualquer condenação penal.

Pensemos nos crimes de bagatela, naqueles que não geram privação de liberdade, nas hipóteses de suspensão condicional da pena, nas contravenções penais e em muitas outras infrações de pequeno grau lesivo, e veremos que a Constituição de nenhuma maneira quis adotar a solução drástica de suspensão de direitos políticos ante toda e qualquer condenação de caráter penal. Para Pertence, portanto, é necessária uma lei infraconstitucional que defina quais tipos de condenação podem gerar a pena de suspensão dos direitos políticos e, por consequência, a perda do mandato parlamentar. Assim, segundo o Ministro Pertence, o art. 55, inciso VI e § 2º da Constituição, de forma alguma cria um privilégio para os parlamentares. Uma interpretação constitucional que leve em conta o critério da razoabilidade, e que considere o valor da isonomia como base do sistema republicano adotado pela Constituição de 1988, não pode chegar a um resultado que permita que um mandatário político possa continuar a sê-lo, embora despido de direitos políticos. O que o referido preceito constitucional explicita é que, apenas nas hipóteses de condenação do parlamentar por infrações penais das quais não decorra automaticamente a suspensão dos direitos políticos – o que seria definido por lei –, compete à Casa Legislativa instaurar processo administrativo, assegurada a ampla defesa, para avaliar a necessidade ou não da perda do mandato. Para todos os outros casos, a serem definidos em lei, isto é, para as hipóteses legais em que a condenação penal leve, incondicionalmente, à suspensão dos direitos políticos, a perda do mandato seria uma consequência lógica da aplicação do art. 15, inciso III, combinado com o art. 55, inciso IV, da Constituição.

A tese do Ministro Pertence é interessantíssima, pois afasta o critério lógico-formal de interpretação do conflito normativo e tenta solucioná-lo com base numa lógica do razoável (utilizo aqui a expressão de Recaséns Siches), buscando compatibilizar e realizar princípios e valores que fundamentam a ordem constitucional de 1988, como a isonomia de tratamento, base de uma verdadeira República na qual se pratique o repúdio a qualquer tipo de privilégio. Devemos nos questionar, no entanto, até que ponto essa interpretação deposita excessiva confiança na legislação infraconstitucional para disciplinar os casos em que a condenação penal leve à suspensão dos direitos políticos. Devemos refletir se isso não nos levaria a um tipo de interpretação da Constituição segundo a lei, ou conforme a lei.

Estamos a perceber que o problema não é fácil de resolver. Critérios lógico-formais de interpretação constitucional nos levam a soluções desconformes com os próprios fundamentos da ordem constitucional. Por outro lado, critérios de razoabilidade podem acabar depositando uma confiança excessiva na capacidade da lei e, levados às últimas consequências, podem gerar novas interpretações ou, em outros termos, recriações de normas constitucionais originárias.


O fato é que estamos diante não apenas de uma antinomia aparente, mas de um real conflito entre as normas constitucionais originárias do art. 15, inciso III e do art. 55, inciso VI e § 2º.

Na jurisprudência do STF ainda não há respostas precisas para esse problema. E uma das razões para tanto é que não se encontra, nessa mesma jurisprudência, uma única decisão condenatória penal dos parlamentares que estão protegidos pelas normas do art. 55 da Constituição. Lembre-se que Deputados e Senadores têm foro especial, por prerrogativa de função, no Supremo Tribunal Federal. O principal fator dessa inexistência de condenações penais definitivas é que, até pouco tempo atrás, o art. 53 da Constituição previa, como regra de imunidade formal dos parlamentares, a exigência de licença prévia da Casa Legislativa para o processamento da denúncia contra Senadores e Deputados e o julgamento da respectiva ação penal. Com a Emenda Constitucional n° 35, de 2001, a referida regra deixou de existir, restando apenas a possibilidade de que a ação penal venha a ter seu andamento sobrestado por decisão da maioria dos membros da Casa Legislativa, suspendendo-se também o prazo prescricional. Desde então, os inquéritos e as ações penais em curso no STF tem tramitado regularmente.

Ressalte-se, ainda, as recentes modificações na sistemática interna de tratamento de inquéritos e ações penais no âmbito da Corte Suprema. A Lei n° 12.019/2009, regulamentada pelo art. 21-A do Regimento Interno do STF, trouxe grande avanço, ao criar a figura do juiz instrutor, que atuará em cada gabinete de Ministro, auxiliando-o na realização de interrogatórios e outros atos de instrução dos 304 inquéritos e 106 ações penais que tramitam atualmente no Supremo Tribunal Federal. Tais mudanças nos permitem vislumbrar, num futuro bastante próximo, as primeiras condenações criminais de parlamentares abrangidos pelas regras do art. 55 da Constituição.

Assim, a questão do conflito entre o art. 15, III, e o art. 55, VI e § 2º, logo poderá ser objeto de apreciação pelos Ministros da atual composição. 
De toda forma, parece certo que qualquer interpretação que venha a ser adotada na solução desse conflito normativo deve levar em consideração um princípio muito caro à nossa República, que é o da isonomia de tratamento. Nosso sistema constitucional não aceita privilégios de qualquer tipo.

Alguns dirão que o art. 55, inciso VI e § 2º, da Constituição faz parte do denominado Estatuto do Parlamentar e estabelece uma importante prerrogativa funcional, que é condição imprescindível para o independente exercício do mandato. E dirão também que estamos, assim, diante de uma norma fundada no princípio da separação dos Poderes, destinada a salvaguardar o Poder Legislativo e seus integrantes de ingerências indevidas dos outros Poderes, especificamente do Poder Judiciário.

Se assim for, como então explicamos a disparidade observada entre as hipóteses de condenação criminal e aquelas outras, antes explicadas, de captação ilícita de sufrágio e de improbidade administrativa? Certamente criaríamos um verdadeiro paradoxo se entendêssemos, por um lado, que a perda do mandato deve ser automática para o parlamentar cassado por captação ilícita de sufrágio ou condenado por ato de improbidade administrativa e, por outro lado, que o parlamentar condenado criminalmente por decisão transitada em julgado pode continuar exercendo seu mandato enquanto sua situação esteja sendo apreciada pelo juízo político de sua Casa Legislativa, assegurado o direito de ampla defesa.

Como explicar, ainda, que essa suposta prerrogativa não seja extensível aos Vereadores, que também são membros do Poder Legislativo, e nem mesmo aos Chefes do Poder Executivo, que igualmente são mandatários eleitos diretamente pelo voto popular? Não se trata simplesmente de invocar o art. 27, § 1º, da Constituição. Ressalte-se que o Supremo Tribunal Federal já fixou o entendimento segundo o qual a prerrogativa estabelecida pelo art. 55, VI, § 2º, não pode ser aplicada a Vereadores e aos Chefes do Poder Executivo. Isso ocorreu no julgamento do RE 225.019.

E essa patente incongruência fica ainda mais exacerbada se atentarmos para o fato de que há algum tempo estamos a discutir sobre outras causas de inelegibilidade que visem a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato e que tenham como hipótese de aplicação fatos da vida pregressa do candidato. Não obstante os debates acalorados que se tem produzido em torno do vulgarmente denominado tema dos “fichas sujas” ou “fichas limpas”, todos parecem concordar que a condenação penal transitada em julgado deve ser uma causa de inelegibilidade regulada pela lei complementar prevista pelo art. 14, § 9º, da Constituição. Esse, inclusive, é o entendimento do Supremo Tribunal Federal fixado no julgamento da ADPF n° 144. Se a condenação penal transitada em julgado impede a participação do indivíduo no processo eleitoral, parece um tanto óbvio que essa mesma condenação penal deva resultar no imediato afastamento daquele que já esteja exercendo o mandato eletivo. E então cabe questionar: vamos continuar debatendo sobre novas causas de inelegibilidade fundadas na condenação penal transitada em julgado, sem antes resolver algo que parece muito mais óbvio, que é a necessidade de que essa mesma condenação penal transitada em julgado tenha o condão de retirar imediatamente o indivíduo da gestão da coisa pública?

Precisamos encontrar respostas para o problema. E certamente temos que evoluir na reflexão sobre concepções tradicionais da dogmática constitucional, tais como a de que “o poder constituinte originário tudo pode”. E, nesse ponto, eu faço um parêntese para recordar as palavras do Ministro Sydney Sanches sobre o tema, retiradas do citado julgamento do Recurso Extraordinário n° 179.502. Dizia então o Ministro: “Quanto ao argumento que vem sendo utilizado, este sim, de maior profundidade, a meu ver, relacionado com o art. 55, que confere aos Deputados e Senadores um tratamento diferenciado, não me surpreende, porque foram os próprios Deputados e Senadores que elaboraram a Constituição. E cuidaram de si mesmos. Não tiveram o mesmo cuidado com o cidadão, mas mostraram que queriam tratá-lo de modo diverso. E a Constituição, esta sim, pode violar o princípio da isonomia que ela própria estabelece. A lei é que não pode.”

A questão fica assim posta. Minha pretensão não é de sugerir soluções, mas de chamar a atenção para o problema. Precisamos incluí-lo em nosso debate cotidiano sobre os aperfeiçoamentos de nosso sistema político. E se não quisermos esperar as improváveis respostas legislativas, teremos que encontrar soluções por meio da interpretação constitucional.

E, para finalizar, lembro as passagens notáveis do conhecido filósofo belga Chaïm Perelman. Dizia Perelman que o exame da história pode nos revelar que os juízes, quando se deparam com uma situação de patente incompatibilidade entre o que a lei prescreve e o que lhes parece ser a solução mais sensata e justa para o caso, não medem esforços para a construção de meios de interpretação e de argumentação que justifiquem a adoção da solução justa. Encontramos na obra Lógica Jurídica a seguinte passagem: “Quando, por razões de bom senso, de eqüidade ou de interesse geral, uma solução se apresente com a única admissível, ela é que tende a impor-se também em direito, ainda que se seja obrigado a recorrer a uma argumentação especiosa para mostrar sua conformidade com as normas legais em vigor” (Editora Martins Fontes, 2000, PP. 190-191).

Com isso eu encerro esta minha pequena intervenção, agradecendo a atenção de todos. "

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