Suspensão de Júri

Juíza e procurador não falam a mesma língua

Autor

8 de maio de 2010, 9h30

Suspenso depois que os procuradores da República Vladimir Aras e Marco Antonio Delfino abandonaram a sessão do Júri, o julgamento dos acusados pelo assassinato do cacique guarani-kaiowá Marcos Verón foi remarcada para fevereiro de 2011. A decisão de suspender o julgamento e de remarcá-lo para o ano que vem é da juíza federal Paula Mantovani Avelino, titular da 1ª Vara Federal Criminal de São Paulo. Enquanto a juiza acusa o Ministério Público pelo incidente, os procuradores dizem que só tomaram a medida extrema porque a juíza passou por cima de tratados internacionais e desrespeitou direitos fundamentais dos índios que dizem representar.  

Toda a confusão começou quando a defesa dos três acusados do crime arguiu a suspeição do intérprete designado pela Funai para dar assistência aos índios escalados para prestar depoimento no julgamento. A defesa alegou que o intérprete não era confiável já que tem ligações com as testemunhas queiria interpretar. A juíza rejeitou a suspeição mas dispensou o intérprete, já que na fase de inquérito todos os índios ouvidos se expressaram em português e não em guarani, sua língua nativa.

Os representantes do MPF protestarem contra a determinação. Para o órgão, o julgamento deveria ser feito em guarani. Segundo a ata da sessão, ficou combinado que a juíza, antes do início do depoimento, perguntaria aos índios se eles se comunicam em português. No momento em que se ouviria a primeira testemunha, o Ministério Público interrompeu, sugerindo que a pergunta fosse feita pelo intérprete em guarani, e que fosse dada a oportunidade da testemunha escolher entre o guarani e o português para responder. “Já rejeitei o requerimento do senhor, no sentido de que vou perguntar primeiro se ele se expressa em português”, disse Paula.

Em resposta, os representantes do MPF comunicaram que iriam abandonar a sessão do Júri. Começou o bate-boca. A juíza lembrou aos procuradores que as testemunhas foram ouvidas em português durante todo decorrer do processo. Ela afirmou que o MPF não tinha motivos para o abandono e que iria “tomar as providências cabíveis”. O procurador Vladimir Aras pediu desculpas pela atitude, mas avisou que se retiraria antes mesmo da sessão ser encerrada.

– Então o senhor senta na minha cadeira e preside a sessão, doutor, exclamou a juíza.
– Se Vossa Excelência permitir, respondeu Aras.
– Para isso, o senhor vai ter que prestar concurso para Juízo Federal, replicou a juíza.

Aras exclamou que a juíza poderia ter evitado o abandono da sessão. Paula deu o troco:
– Bastava ter decidido de acordo com o que o Ministério Público quer. E é para isso que existe o Judiciário, porque o Ministério Público não manda, não decide, Ministério Público requer.
Por fim, a juíza declarou:
– Cada órgão tem os concursados que merece.
Depois disso, encerrou a sessão.

Total desrespeito
No mesmo dia, a juíza divulgou nota explicando o ocorrido e defendendo sua decisão. Classificou a atitude do MPF como “total desrespeito” e disse que a brusca da acusação foi "absoluta afronta aos princípios democráticos”. No dia seguinte remarcou a continuação do Júri para o dia 22 de fevereiro de 2011 alegando impossibilidade orçamentária da Justiça Federal para fazer o julgamento ainda este ano. “Quero frisar que a Justiça Federal, desde a sessão designada para o dia 12/4, tem arcado com despesas altíssimas, que somam até o momento cerca de R$ 30 mil […]. Esse dinheiro consumiu boa parte do orçamento do setor de diárias e passagens da Justiça Federal, comprometendo-o de tal forma que infelizmente, para este ano, não haveria possibilidade orçamentária para a realização da sessão de julgamento, caso a pauta da 1ª Vara permitisse”, disse a juíza (clique aqui para ler a decisão da juíza).

Em nova nota afirmou que o MPF deve ser responsabilizado pelos danos causados aos cofres públicos referentes ao julgamento, tais como passagens aéreas de testemunhas da acusação, vítimas, dos réus, contratos de alimentação, hospedagem e atendimento médico. Ela encaminhou uma reclamação ao corregedor Nacional do Ministério Público pedindo para que sejam tomadas providências diante do "ato ilegal". “[O] acerto ou desacerto da decisão desta magistrada deveria ter sido objeto dos recursos jurídicos cabíveis, de acordo com a lei processual penal, e não atacados por ato desarrazoado do órgão Ministerial que, inconformado, decidiu se retirar do plenário”, defendeu.

Diversidade linguística
Aras lamentou a declaração da juíza. “Pouco importa quanto custou a reunião do júri, quando o que se tem em risco é um patrimônio imaterial de toda a humanidade.  Nada vale o preço da liberdade de expressão”, escreveu em texto que postou em seu blog. O procurador defende o direto dos índios à diversidade linguística previstos no artigo 13 da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da Organização das Nações Unidas. “Foi decisão bem sopesada e refletida pelo direito dos índios escolherem o idioma a usar”, afirmou à ConJur. E completou: “Se eu e a juíza não conseguimos nos entender em português, imagine uma comunidade que fala muito mal o idioma”. Sobre a responsabilidade pela situação causada com o abandono do Plenário, Aras explicou: “É uma prática corriqueira. Se a defesa faz e não é responsabilizada, porque a acusação o seria?”

Para Alexandre de Sá Domingues, advogado dos acusados, o Ministério Público “queria transformar o julgamento num evento indígena”. Em nota enviada à ConJur, ele ressalta que as vítimas e testemunhas já haviam sido ouvidas em português. “[Foram escutadas por] três vezes, duas na polícia e uma vez em juízo, sendo que todas as vezes isso ocorreu sem a presença de intérprete”, disse Sá Domingues. De acordo com Sá Domingues, os procuradores preferem o arbítrio. 

Entenda do caso
Em janeiro de 2003, um grupo sob liderança do cacique Marcos Veron reocupou uma área tradicionalmente indígena da Comunidade Taquara, que hoje pertence à Fazenda Brasília Sul. Com auxílio do Departamento de Operações de Fronteira da Polícia Militar, os empregados da fazenda prometeram que um acordo para uma saída pacífica.

Na madrugada, cerca de 40 pessoas com caminhonetes, fogos de artifícios e armas de fogo cercaram os indígenas e os expulsaram com violência da Fazenda. Marcos Veron e seus familiares foram sequestrados, agredidos e torturados com fogo e coronhadas. O cacique morreu na mesma manhã. O Ministério Público Federal acusa os empregados da fazenda pelo crime.

Clique para ler a decisão da juíza,
Clique para ler a
ata do Júri 
Clique para ler o
texto no blog do procurador 
Clique para ler a
nota do advogado

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!