Carta aberta

Advogado em Juizados Especiais pode diminuir acesso

Autor

  • Juan Biazevic

    é juiz de Direito em São Paulo mestre e doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP professor convidado dos cursos de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Escola Paulista da Magistratura.

7 de maio de 2010, 20h00

Recentemente li que a Comissão de Reforma do Código de Processo Civil aceitou proposta formulada para impor a obrigatoriedade, em qualquer causa em tramitação nos Juizados Especiais, de representação por advogado. A proposta partiu da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Por entender que a proposta representa retrocesso imenso e prejuízo incalculável para a população brasileira, tomei a liberdade de escrever esta carta aberta.

Queria crer que a proposta não possui finalidade corporativa. Queria crer que a intenção não é a de aumentar a renda dos advogados, através do aumento de seu campo profissional de atuação e em detrimento de um sistema judicial que, hoje, funciona de forma exemplar.

Entretanto, não consigo esquecer que a mesma OAB lutou no Supremo Tribunal Federal, durante anos, para o reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei 9.099/1995, especificamente no artigo que concedia ao cidadão, sem a intervenção de um advogado, capacidade para ingressar no Judiciário (Adin 1.359). Lutou bravamente, mas não logrou modificar o modelo de Justiça antevisto pela Lei 9.099/1995. A mesma luta, com o mesmo resultado desfavorável, travou quando da edição da Lei dos Juizados Federais (Adin 3.168).

Não quero acreditar que uma instituição que lutou bravamente na história deste país para a defesa dos direitos e garantias individuais possa, neste instante, pretender a revisão de um dos marcos legislativos do processo brasileiro, no inconfessado desejo de aumentar a renda de seus membros. Não gostaria de acreditar, mas é o que imagino que está acontecendo. Infelizmente.

Antes de mais nada, para organizar as idéias desta carta aberta, coloco uma pergunta: a Lei 9.099/1995 precisa de reforma? A resposta é um sonoro não. Os Juizados necessitam de melhores estruturas de funcionamento, mas não exigem qualquer reforma legislativa.

Indício de que não há o que modificar na Lei está em dois dados concretos.

Em 2007, pesquisa encomendada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) constatou que 71,80% dos entrevistados confiavam no funcionamento dos Juizados Especiais, colocando-os como a terceira instituição mais confiável do país, atrás apenas da Polícia Federal e das Forças Armadas. Na prática, isso quer significar que os Juizados são o órgão do Poder Judiciário que gozam de maior prestígio perante a população.

Em 2008, o Conselho Nacional de Justiça publicou estudo estatístico consignando que a taxa de congestionamento dos Juizados é o menor da Justiça nacional (47,64%).

Noto, então, que a população, verdadeira destinatária dos serviços judiciais, e o CNJ, órgão externo de controle das atividades judiciais, consideram os Juizados Especiais como o melhor órgão da Justiça brasileira. De forma mais clara: o destinatário dos serviços e o fiscal, ambos, consideram que os Juizados são o melhor órgão do Poder Judiciário.

Então, por que modificá-los? Quais são os interesses em questão?

O argumento posto para a modificação foi o de que o cidadão, quando ingressa sem advogado, não consegue combater as grandes empresas em igualdade de condições. O argumento não se sustenta.

Não é possível alegar que o cidadão não está suficientemente amparado pelo atual modelo quando uma pesquisa realizada com os jurisdicionados revelou que 71,80% dos entrevistados confiam nos serviços prestados pelos Juizados. Ora, se os Juizados fossem o campo para combates tão desproporcionais, não teriam aprovação tão elevada.

Tomemos por um breve instante, apenas por amor ao debate, como verdadeira a alegação da OAB. Isso levaria ao seguinte raciocínio: embora o cidadão esteja desamparado e, ainda, embora seja vítima de um massacre jurídico imenso, ainda assim, a despeito de toda essa injustiça, ele confia e admira os Juizados. Das duas uma: ou a premissa é equivocada, ou o jurisdicionado padece de patologia mental severa.

Vamos nos aprofundar um pouco mais no tema da capacidade para postular em juízo. Permite a Lei que o cidadão ingresse sem a assistência de advogado nas causas de valor inferior a 20 salários-mínimos. É claro que nesse âmbito, a despeito do valor envolvido, também se inserem questões tecnicamente complexas. São exceção, dentro do universo de demandas que tramitam, mas elas existem. Afinal, a complexidade não reside no valor do pedido, mas nas características do problema enfrentado pelo jurisdicionado.

Para casos como esses, a própria Lei previu a solução. Deve o juiz alertar as partes da “conveniência do patrocínio por advogado”. Então, o juiz, constatando que a causa é complexa e que a parte poderá ser prejudicada pelo patrocínio sem advogado, orientará o interessado para a contratação de um. Simples assim.

Em minha experiência profissional, de quase três anos de dedicação exclusiva aos Juizados, uma única vez fiz uso dessa regra. No mesmo período, proferi quase 2.000 sentenças completas em processos de conhecimento. Isso quer dizer que, pelo menos nos feitos em que atuei, a circunstância excepcional representou 0,05% dos casos julgados. Não consigo crer que uma exceção, que representa percentual ínfimo do funcionamento dos Juizados e, pior, que possui solução legislativa simples, possa justificar a alteração que se está propondo.

Outra hipótese que se alegou: e se o cidadão estiver sem advogado e a empresa comparecer com advogado? Simples novamente. Um advogado de plantão participa da audiência e auxilia o jurisdicionado. Isso já está previsto na Lei. Garante-se a paridade de armas.

Com esses exemplos, quero destacar que a Lei 9.099/1995 já previu as soluções para os problemas levantados. As soluções são simples e, ainda que a OAB não goste de admitir, funcionam.

Não há a necessidade de impor advogados para todos os processos. Os Juizados, nesse modelo proposto, deixarão de ser a porta de entrada do Poder Judiciário. Nem todo prejuízo econômico, quando se impõe a contratação de um advogado, será levado a julgamento. O valor a ser pago para o advogado criará um filtro de processos. Apenas aqueles de maior valor, em que o prejuízo econômico justifica a contratação de um profissional especializado, ingressarão no Judiciário. Os demais, como já ocorria no passado, ficarão esquecidos. O cidadão irá amargar o prejuízo em ter a quem recorrer.

Nem se afirme que a existência das Defensorias Públicas impedirá esse efeito imediato. As Defensorias não atendem todas as pessoas, atende apenas as realmente necessitadas. A crescente classe média brasileira possui renda mensal que não justifica a prestação gratuita dos serviços judiciais. Ela será a maior prejudicada pela alteração. Ela é a que mais sofrerá com o filtro proposto.

O Brasil é um país diferente. Aqui existem leis que “pegam” e leis que não “pegam”. Esse fenômeno é estranho e mereceria, por si só, um grande estudo. Mas não é esse o objetivo destas linhas. Aqui quero destacar uma lei que “pegou”: o Código de Defesa do Consumidor. Ele é um marco legislativo e dispensa maiores apresentações. O que as pessoas esquecem é que ele “pegou” graças ao trabalho dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais. Porque os Juizados são o campo próprio para a discussão das violações às relações de consumo. Neles o consumidor sabe que terá, gratuita e rapidamente, a solução do seu problema.

O liquidificador defeituoso, o celular que não recebe chamadas e a máquina de lavar que mancha as roupas não são discutidos na Justiça Comum. Nela não há espaço para as miudezas do cotidiano, para os prejuízos de pequeno valor. Isso porque a quantia necessária para a contratação de um advogado afasta desse ramo do Judiciário essas discussões.

O modelo proposto irá ampliar essa barreira econômica também para os Juizados. Por que diminuir o acesso da população à Justiça? É isso que o jurisdicionado merece?

Por mais que pense no tema, não consigo imaginar que a intenção da proposta da OAB é outra que não seja a de aumentar o mercado profissional de seus membros. Isso e nada mais. Porque não é na população que se está pensando. O jurisdicionado não precisa de uma modificação legislativa. Precisa de mais Juizados, com mais estrutura humana e material.

Pode-se travestir a proposta de “avanço”, baseada em argumentos vazios e que não resistem a uma análise empírica. Só não se pode ignorar que, se a modificação legislativa foi aprovada, milhões de brasileiros perderão o acesso a uma Justiça que funciona. Uma Justiça gratuita, célere e simples, criada e estruturada para resolver os problemas do cotidiano. Pequenas quantias que, para muitos, representam os vencimento de todo um mês de trabalho, às vezes mais.

Com a palavra, a Comissão de Reforma do Código de Processo Civil e o Congresso Nacional. Que sejam lúcidos.

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    é juiz de Direito em São Paulo, titular dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Comarca de Bragança Paulista e presidente do Colégio Recursal da 6ª Circunscrição Judiciária.

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