Ficha suja

Presunção de inocência é obstáculo ao abuso de poder

Autor

  • Ulisses César Martins de Sousa

    é sócio do escritório Ulisses Sousa Advogados Associados conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil e vice-presidente no CFOAB da Comissão Especial de Estudo do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil.

6 de maio de 2010, 19h13

Há poucos instantes, li no site Consultor Jurídico, estarrecido, reportagem na qual são citadas declarações do ilustre procurador-geral da República afirmando que “nosso maior inconformismo é com a amplitude da presunção de inocência tal como foi defendida pelo STF”. Disse ainda sua Excelência que “o Supremo leva longe demais o princípio da presunção da inocência e isso coloca em risco a própria efetividade da tutela penal. Se temos esse obstáculo da presunção de inocência no campo penal, com muito mais razão sustentamos ser indevido transpor isso para o campo eleitoral”.

Infelizmente, o povo não tem memória. Se tivesse, lembraria que, em 6 de agosto de 2008, em um julgamento histórico, por 9 votos a 2, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a arguição de descumprimento de preceito fundamental proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros, na qual era pretensão que fosse admitida a possibilidade de, com base no parágrafo 9º do artigo 14 da CF, negar-se o registro da candidatura àqueles que respondiam a processos criminais ou ações de improbidade administrativa, ainda que as decisões condenatórias não tivessem transitado em julgado.

O exame do entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto revela, de forma inquestionável, a inconstitucionalidade do projeto de lei que pretende impedir as candidaturas dos chamados “fichas sujas”. Tal projeto viola cláusula pétrea da Constituição Federal que estabelece, como regra, a presunção de inocência (inciso LVII do artigo 5º da CF), assegurando que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, princípio que vigora em todas as sociedades democráticas. O precedente referido também demonstra a total ausência de fundamento jurídico para a pretensão externada pelo procurador-geral Eleitoral de postular o reconhecimento da inelegibilidade dos candidatos chamados de “fichas sujas”.

No brilhante voto que proferiu ao julgar a ADPF 144 o ministro Celso de Melo afirmou que “a repulsa à presunção de inocência, com todas as consequências e limitações jurídicas ao poder estatal que dela emanam, mergulha suas raízes em uma visão incompatível com os padrões ortodoxos do regime democrático, impondo, indevidamente, à esfera jurídica dos cidadãos, restrições não autorizadas pelo sistema constitucional”. O ilustre jurista foi claro ainda ao afirmar que o princípio presunção da inocência “embora historicamente ligado ao processo penal, também irradia os seus efeitos, sempre em favor das pessoas, contra o abuso do Poder e a prepotência do Estado, para esferas processuais não criminais”, ressalvando que apenas a própria Constituição Federal pode estabelecer restrições a essa regra, que é um obstáculo à pretensão de afastar da disputa eleitoral os acusados de certos crimes ou de improbidade administrativa, antes do trânsito em julgado da condenação.

Some-se a esse argumento a afirmação contida no voto do Ministro Ricardo Lewandowsky (ADPF 144) dando conta que “quase um terço das decisões criminais oriundas de tribunais inferiores foram total ou parcialmente reformuladas pelo STF”, que leva à conclusão de que quase um terço dos candidatos “fichas sujas” poderia, em momento posterior à eleição, obter o reconhecimento da sua inocência, com a “limpeza” da ficha. Porém, já teriam sido apenados com a impossibilidade de obter o registro de suas candidaturas.

É inadmissível, principalmente em um estado que se diz democrático, que qualquer cidadão seja apenado, com a perda da elegibilidade, antes do trânsito em julgado da decisão condenatória. Por mais grave que seja a acusação, não se pode tratar o réu, antecipadamente, como culpado. Sempre, há de se exigir o trânsito em julgado da decisão condenatória, como está previsto no inciso III do artigo 15 da CF.

O projeto em comento (assim como a pretensão externada pelo procurador-geral Eleitoral) representa um verdadeiro retrocesso ao pretender trazer de volta ao ordenamento jurídico regra que vigorava na época da ditadura (LC 5/70). Isso em um país em que as instituições ainda são largamente utilizadas para perseguir os adversários e proteger os aliados daqueles que, temporariamente, detêm o poder político e no qual inquéritos policiais são sigilosos para os investigados e públicos para a imprensa. E, o que é pior, onde muitas vezes alguns inocentes são acusados como forma de proteger os verdadeiros culpados.

A vida pregressa do candidato deve ser avaliada pelo eleitor, quando da votação. Ao povo, cabe o direito de ser devidamente informado acerca dos candidatos e o dever de fazer a sua escolha. Se as escolhas populares, realizadas nas urnas, não são as melhores, só podemos lamentar. É o preço que se paga para viver a democracia.

O problema que devemos enfrentar não é a exigência do trânsito em julgado da decisão como condição necessária para o reconhecimento da inelegibilidade, mas sim um sistema judiciário falido que é incapaz de levar o processo ao fim, em tempo razoável, para afirmar se o acusado é culpado ou inocente.

A afirmação do procurador-geral da República de que a presunção da inocência é um obstáculo é assustadora. Revela que, infelizmente, as garantias constitucionais ainda são enxergadas por alguns como obstáculo. Efetivamente, tal garantia é um obstáculo. Como disse o STF, um obstáculo contra o abuso de poder e a prepotência do Estado. É melhor que permaneça assim.

Para encerrar, cabe lembrar Bertrand Russel quando afirmou que “o fato de uma opinião ser amplamente compartilhada não é nenhuma evidência de que não seja completamente absurda”.

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