Súmula Vinculante 14

Não cabe reclamação ao STF quando inquérito é do MP

Autor

  • Eduardo Appio

    é juiz federal na 2ª Turma Recursal dos JEFs do Paraná em Curitiba e pós-doutor em Direito Constitucional pela UFPR (2007).

5 de maio de 2010, 6h51

O inquérito policial no Brasil tem por finalidade apurar a ocorrência de um crime — materialidade delitiva —, bem como sua autoria. Não se investigam as pessoas, mas sim os fatos, e nisto se estabelece uma premissa da mais alta relevância política, que distingue um Estado Democrático de Direito de um Estado de polícia ditatorial. Muito embora seja possível afirmar que mesmo os atos de cogitação e preparação de um crime, especialmente os que envolvem organizações criminosas nos termos da Lei Federal 9.304/1995[1], são passíveis de uma investigação prévia, o fato é que toda e qualquer investigação tem de, necessariamente, estar retratada em um processo administrativo.

Minha abordagem está centrada em dois tópicos principais: (1) definir de que maneira a cláusula do devido processo legal afeta a atividade dos advogados durante o trâmite do inquérito policial ou processo equivalente e (2) estabelecer as premissas de uma investigação que observe os princípios que regem a prática dos atos administrativos no Brasil (art. 37, “caput”, da Constituição Federal).

Inicio dizendo que, em dois julgados recentes, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu critérios na condução dos procedimentos de investigações (inquéritos policiais e equivalentes). O primeiro caso trata da edição da Súmula Vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal, a qual menciona que “é direito do defensor, no interesse do representado, ter amplo acesso aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do Direito de defesa (súmula editada em 2 de fevereiro de 2009)”. O segundo caso é mais recente, de 27 de outubro de 2009, autos do HC 94.173-BA, relator ministro Celso de Mello, através do qual o Supremo Tribunal Federal (2ª Turma) reforçou a tese de que o Ministério Público detém o chamado “poder investigatório”, pois até então se questionava se as investigações em matéria penal estavam reservadas, com exclusividade, às polícias judiciárias através do âmbito estrito da Constituição Federal (art. 144, parágrafo quarto, da CF de 1988).

Tratarei destes dois casos para subsidiar a necessidade de fixarmos um conceito claro acerca do inquérito policial e de que maneira a cláusula do devido processo legal o afeta.

A edição de súmula vinculante no país está ligada à solução de uma verdadeira “questão constitucional”, ou seja, está diretamente relacionada aos casos em que, em sede de controle difuso da constitucionalidade das leis, o STF reconhece repercussão geral — geralmente em recursos extraordinários — de maneira que a parte dispositiva do julgado refletirá na composição de uma súmula vinculante[2]. O Supremo Tribunal Federal, através da repercussão geral, define, em linhas gerais, os casos que pretende julgar, ou seja, decide o que irá decidir, fixando a latitude e a longitude de sua jurisdição[3].

No caso da edição da súmula 14, as coisas se passaram de maneira diversa, uma vez que a proposta de súmula derivou de sugestão da OAB e não de um dos membros da própria Corte, como costuma acontecer, razão pela qual se estabeleceu, durante o julgamento, debate sobre a oportunidade de edição da referida súmula. O enunciado (relator ministro Menezes Direito) foi editada com o sentido de reforçar a linha de julgados existentes no Supremo sobre o tema, permitindo a propositura de reclamação em caso de descumprimento de seu conteúdo, nos mesmos moldes do que ocorre com as decisões proferidas em sede de controle concentrado (ação direta de inconstitucionalidade por exemplo).

O que a súmula diz depende da leitura do conteúdo do julgado, além da interpretação de seu texto literal?
A súmula estaria a tratar somente dos inquéritos policiais e não dos procedimentos investigatórios conduzidos pelas polícias judiciárias. Todavia, o endereço era certo: as investigações conduzidas pelo Ministério Público. Ainda assim, a súmula vinculante, por retratar verdadeira atividade legislativa do Poder Judiciário, não pode ter a sua interpretação ampliada de maneira a alcançar as investigações conduzidas pelo Ministério Público. A súmula reforça princípios já existentes na jurisprudência do STF, dentre os quais avultam de interesse o princípio da ampla defesa e, fundamentalmente, o direito de assistência de um advogado.

Todavia, não se pode ampliar seu alcance preceptivo a partir da leitura dos debates. A súmula retrata a posição dominante no Supremo Tribunal Federal e, ao fixar seu alcance aos limites do inquérito policial, acaba por não afetar diretamente os procedimentos investigatórios conduzidos pelo Ministério Público. Com isto não digo, obviamente, que as investigações — procedimentos investigatórios — conduzidos pelo Ministério Público estejam imunes aos princípios já assentados pela jurisprudência do Supremo (especialmente em um modelo no qual as decisões em controle difuso produzem, segundo o STF, eficácia “erga omnes”, mas apenas que não cabe a propositura de reclamação constitucional em face de negativa de aplicação da súmula por parte de órgão do Ministério Público.

É cabível, no caso, a impetração de Habeas Corpus visando acesso ao procedimento, o qual será apreciado e julgado por juiz de primeiro grau, uma vez que o Ministério Público estará atuando em uma investigação passível de revisão judicial. A negativa de aplicação da Súmula 14, por parte de órgão do Ministério Público, não enseja, também, a propositura de procedimento de controle administrativo perante o Conselho Nacional do Ministério Público, porque se trata de revisar judicialmente um ato administrativo, e aí a importância dos princípios constitucionais que regem a administração pública (art. 37) e também da Lei dos Atos Administrativos (Lei 9.784/99).

A súmula também nos diz que somente os atos de investigação — prova já produzida e documentada nos autos — estão regidos pelos princípios do contraditório e ampla defesa, de maneira que as interceptações telefônicas e medidas equivalentes que correm sob sigilo judicial não asseguram acesso do advogado antes de sua produção. O advogado poderá impugnar seu conteúdo e influenciar o juiz na avaliação que fará da prova, mas não estará verdadeiramente participando de sua produção. Dada a sua natureza sigilosa, resta evidenciado que essas provas não serão reproduzidas futuramente nos autos do processo penal e aí uma importantíssima diferença em relação ao processo civil brasileiro no qual, como regra, as provas são produzidas durante a instrução com a efetiva participação dos advogados em sua produção.

A súmula também limita o acesso do advogado às provas que digam respeito ao seu cliente, de maneira que não terá acesso a todo o contexto probatório. Todavia, terá acesso às provas que estejam direta ou indiretamente relacionadas com a defesa de seu cliente. Ao limitar o acesso ao conteúdo amplo das provas já produzidas, a autoridade policial poderá, eventualmente, limitar a ampla defesa do suspeito ou indiciado, pois somente o advogado conseguirá identificar de que maneira as demais provas — como, por exemplo, interceptações de outros números de telefone ou dados eletrônicos apreendidos — servirão à efetiva defesa de seu cliente.

O que a súmula diz?
A súmula, por conseguinte, impede o acesso dos advogados às provas que estão sendo produzidas, bem como em relação às provas em relação as quais o advogado não consiga demonstrar que tenham pertinência com a situação de seu cliente. Ainda, não confere ao advogado efetiva proteção de suas garantias legais no acesso aos autos de procedimento investigatório conduzido pelo Ministério Público. Toda e qualquer nulidade que venha a surgir nesta fase poderá contaminar todo o processo em juízo, na medida em que são provas que, como regra, não serão novamente produzidas em juízo. O processo penal irá se desenvolver em torno da oitivas das pessoas que participaram do fato criminoso (agentes e testemunhas/informantes).

A Constituição Federal estabelece o princípio da publicidade como requisito indisponível da validade dos atos administrativos, a exemplo do princípio da legalidade. A par destes dois importantes princípios constitucionais, a Lei federal 9.784/1999 tratou de regular o tema no nível infraconstitucional, agregando novos princípios, como o da proporcionalidade.

Sobre o princípio da publicidade aplicado à esfera do inquérito policial, noto que o STF tem insistido na posição de que o inquérito policial é um processo administrativo, de natureza pública, de maneira que não se admitem inquéritos secretos. Resguarda-se o sigilo das investigações, mas depois de produzida a prova, as partes têm amplo e indiscriminado acesso a tudo o que foi produzido, especialmente interceptações telefônicas que a autoridade policial — ou o Ministério Público — tenham considerado como irrelevantes para o futuro processo penal.

Noto, inclusive, que a polícia e o Ministério Público estão à procura de elementos para a deflagração da ação penal, mas ainda assim têm de resguardar a legitimidade das evidências, ou seja, havendo prova produzida que venha em favor do suspeito ou do preso, esta prova tem de ser retratada nos autos. Existe, por conseguinte, um dever de impessoalidade que grava estes órgãos, sendo certo que as provas pertencem às partes e não somente àquele que as produziu. Muito embora seja forte o impacto da garantia constitucional de que ninguém será obrigado a produzir prova contra si mesmo, protegendo o acusado, o mesmo não vale para a Administração Pública e seus órgãos, os quais têm o dever de produzir prova nos autos públicos mesmo que eventualmente seja contrária a sua pretensão corporativa.

A conclusão resulta evidente e pode ser extraída da cláusula do devido processo legal, ou seja, a atuação estatal é impessoal e atrelada à legalidade. No processo penal, o fato de que a Constituição infunde ao Ministério Público e à polícia judiciária o dever de investigar crimes e buscar sua persecução, não lhes assegura todos os meios, mas somente os meios tidos como lícitos, ou seja, rigorosamente previstos em lei. Não existe meio de prova que não esteja previsto em lei votada pelo Congresso Nacional no âmbito do processo penal, e mesmo a produção de provas previstas em lei — como as interceptações telefônicas — estão adstritas ao princípio da proporcionalidade.

O processo administrativo[4] conduzido pela autoridade policial civil ou militar (nos crimes militares) é chamado pelo Código de Processo Penal Brasileiro de “inquérito policial”. Digo isto pois o Supremo Tribunal Federal convalidou, em data recente, o entendimento de que ao Ministério Público se assegura o poder de também investigar, através de procedimento investigatório próprio, o qual não pode ser dito como inquérito policial, muito embora esteja adstrito a dois grandes princípios de direito constitucional, o princípio do devido processo legal (“due process of law”) e o princípio da igualdade (isonomia entre os cidadãos perante o Estado).

O princípio do devido processo legal[5] é constituído, fundamentalmente, a partir da ideia de que nenhum homem pode ser julgador em causa própria. Funda-se, por conseguinte, na necessidade de bem distinguir potenciais interesses em conflito por parte de quem julga ou administra a coisa pública, de maneira a normatizar as condutas, direcionando-as a um fim estritamente público. No processo penal, a cláusula produz inúmeras consequências, que vão desde a previsão de impedimentos e suspeições para os juízes e auxiliares do juízo até a própria necessidade de fundamentação das decisões judiciais. Não seria exagerado afirmar que todo o processo penal é erigido a partir desta ideia fundamental, qual seja, a de assegurar um julgamento imparcial, durante o qual ao acusado e ao preso sejam asseguradas as prerrogativas de participar do processo de produção de provas, seja na sua constituição ou, posteriormente, na avaliação que se faz em relação a sua força probatória.

As famosas “leis de Miranda”, que deram origem direta a várias das disposições constantes em nossa Constituição Federal — como, por exemplo, o direito de assistência de um advogado e o direito de permanecer em silêncio e não produzir prova contra si próprio — refletem uma visão consistente da jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos nas décadas de 50 e 60 (fase dita ativista da Corte em prol dos direitos das minorias). O núcleo fundamental da Constituição dos Estados Unidos é a Emenda 14, que prevê dois instrumentos de garantia dos direitos fundamentais, a proteção da igualdade (equal protection) e a cláusula do devido processo (substantivo e procedimental).

Inicialmente, quando se falava da cláusula do devido processo legal se estava a tratar, na Inglaterra, de direitos e garantias de natureza nitidamente processual, fundamentalmente o direito de ser ouvido antes de qualquer decisão, e o direito de recorrer contra decisões que a parte julgava injustas. É um direito forjado das relações feudais na Inglaterra, em relação às quais passa o Rei a desempenhar um papel de julgador destes conflitos.

Ninguém será privado da liberdade, da vida ou do patrimônio sem o devido processo legal, irá dizer a Constituição dos Estados Unidos. Diferentemente do modelo europeu continental, que se concentra na proteção do princípio da dignidade da pessoa humana e suas conseqüências no plano do processo penal, no direito norte-americano são os membros da Suprema Corte que dirão quais direitos podem ser considerados como fundamentais (incorporados no Bill of Rights). Isto significa dizer que o procedimento a ser adotado pela polícia nos Estados Unidos é completamente modificado, a partir de Miranda, de maneira a preservar a validade das provas produzidas, com especial ênfase na confissão do preso.

A Constituição brasileira de 1988 tratou de incorporar, desde logo, estas disposições, assegurando ao preso efetivo acesso à defesa através de um advogado, com as garantias que lhe são inerentes, além de considerar a advocacia como essencial para a administração da justiça no país. Muito embora a lei processual penal brasileira não preveja, de modo expresso, a necessidade de que o preso em flagrante seja ouvido na presença de um advogado, o fato é que este direito tem de ser assegurado pela autoridade policial. O direito de não produzir prova contra si próprio traz como conseqüência a necessidade de uma efetiva presença e participação do advogado desde a prisão em flagrante (interrogatório e oitiva de testemunhas). O fato de que estas provas poderão ser reproduzidas futuramente em juízo não retira o rigor desta determinação constitucional, uma vez que as provas poderiam ser amplamente favoráveis ao indiciado nesta mesma fase.

O mesmo passa a valer para os procedimentos conduzidos pelo Ministério Público. O advogado tem o direito de acesso a todas as peças do inquérito policial, nos termos da súmula 14 do STF, bem como de acompanhar seu cliente durante o interrogatório na fase policial e pugnar pela produção de provas nesta fase, a exemplo do que se encontra previsto na Lei Federal 9.784/1999. Os atos administrativos são impessoais e somente o Estado, nesta fase, pode promover a oitiva de testemunhas e a requisição de documentos, de maneira que o cidadão investigado não pode ficar completamente alijado deste processo de produção de prova. O investigado deve ter condições de influenciar na decisão judicial acerca da presença de indícios suficientes de autoria e prova da materialidade. A defesa preliminar do acusado não teria nenhum sentido se o advogado não pudesse participar ativamente do inquérito policial, fazendo-se presente sempre que ouvida uma nova testemunha essencial à defesa.

Procedimento investigatório do Ministério Público
Registro, inicialmente, que o STF (HC 94.173, Bahia, Rel. Ministro Celso de Mello, segunda Turma) sepultou as discussões em torno da validade da investigação por parte do Ministério Público. O Ministério Público pode investigar, mas quais seriam os limites desta investigação, senão os que prevê a Constituição e a Lei 9.784/1999 em relação aos processos administrativos?

Note-se que a atividade de investigação do Ministério Público pode, por vezes, colidir frontalmente com a atividade de controle externo da atividade policial, esta sim prevista expressamente na Constituição da República e, talvez, até mais importante que a atividade de investigação. Digo isto porque as Promotorias de Investigação Criminal — tais como as PIC e o GAECO — são aparelhadas com policiais civis e militares, designados para atuar junto às promotorias mediante simples ato de designação. Esta designação tem um conteúdo precário, na medida em que os policiais civis e militares ocupam cargos públicos — providos mediante concurso público — e desempenham as funções previamente designadas pela lei.

Vige, pois, o princípio da legalidade e estes policias não poderiam, por óbvio, ser designados para exercer funções em cargos que sequer existem em lei. Não há previsão legislativa alguma destas funções, de maneira que as designações são manifestamente ilegais, ou seja, todo e qualquer ato praticado por estes policiais é nulo de pleno direito.

Com isto se pretende dizer que, tendo o STF finalmente definido que existe uma autorização constitucional implícita em favor do Ministério Público para investigar, há que se criar os cargos e funções correspondentes, especialmente aqueles em que se permite a execução de tarefas delicadas que tocam com a privacidade dos cidadãos, com especial enfoque nas interceptações telefônicas. Essa questão ainda não foi decidida pelo Supremo Tribunal e também não tem sido adequadamente explorada pelos Tribunais inferiores.

Dizer que o Ministério Público tem poder de investigar não significa dizer que o atual modelo esteja correto. Muito pelo contrário. O atual modelo, centrado exclusivamente no inquérito policial previsto no CPP e conduzido pela autoridade policial, não é adequado às investigações conduzidas pelo Ministério Público. O modelo terá de ser construído no país, assumindo um grande relevo a partir das atualizações (reformas) legislativas do CPP que preverão a possibilidade do “plea bargain” no Brasil, ou seja, aceitação de culpa pelo acusado com aplicação imediata de pena fixada no acordo, o que não guarda relação direta com o sistema de delações premiadas.

Esse novo modelo, centrado na cláusula do devido processo, também dependerá da criação legislativa dos cargos que correspondam a essas promotorias especiais, definindo claramente suas atribuições legais e estabelecendo os critérios para provimento destas cargos (promoção/remoção).

Fixada a competência administrativa, sugere-se que toda e qualquer investigação esteja devidamente documentada e retratada em meio físico ou digital, de maneira que se permita o acesso futuro das partes e dos advogados ao teor da investigação, especialmente escutas telefônicas realizadas e as transcrições registradas. Sem o acesso a essa prova, o advogado está impossibilitado de promover qualquer ação em defesa de seu cliente em juízo, já que as evidências não pertencem ao Ministério Público, mas sim às partes.

O princípio geral é da publicidade do atos administrativos. Esta publicidade não é somente a que avulta no acompanhamento das prisões pela grande mídia, na espetacularização do processo penal no país, mas sim acesso do advogado aos meios de prova. O fundamento do julgado do STF se assenta em um caso da jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos: MacCulloch v. Maryland (1819), e na chamada “doutrina dos poderes implícitos”. Assenta-se na ideia de que, se a Constituição cria determinados deveres em relação a órgãos do Estado, a lei deve assegurar os meios condizentes com o desempenho desta funções.

E assim fez o Congresso norte-americano nesse caso, quando criou um Banco Nacional com atuação no estado-membro de Maryland, assegurando-lhe a prerrogativa de atuar sem a cobrança de impostos por parte do estado. Nisto reside a tônica (princípio imanente) do julgado, na ideia de que a lei pode estabelecer esses meios para a fiel consecução das atividades. No caso brasileiro, não seria a lei, mas os juízes diretamente e que estariam legislando de maneira a criar um simulacro de inquérito policial sob o argumento de que o Ministério Público detém poder de investigação. Nisto se divorcia da realidade histórica norte-americana. Se é o Congresso, e não os juízes, que define os meios, então a conclusão a que deveria ter chegado o STF neste caso é diametralmente oposta, ou seja, não existe lei expressa, aprovada pelo Congresso brasileiro, que ampare a investigação direta promovida pelo Ministério Público.

O fato de que o Ministério Público é o destinatário das investigações não retira a importância de lei que preveja qual será o órgão da Administração Pública que irá desempenhar esta função. E mais, o art. 144 da CF de 1988 tratou de expressamente dispor sobre o tema, elegendo a polícia judiciária como o órgão de Estado encarregado destas funções, exatamente com o sentido de assegurar o chamado controle externo da atividade policial. Como, então, irá o Ministério Público controlar a atividade dos policiais lotados em sua Promotoria de Justiça, quando é certo que a cláusula do devido processo legal é fiança de que não haverá conflito de interesses no exercício das funções públicas?

O fato de que o Ministério Público pode promover a ação penal a partir de elementos de prova não colhidos em inquérito policial não retira a importância dos inquéritos pra os demais casos. Somente nos casos em que dispensada investigação policial para a propositura de futura ação penal é que podemos falar de uma atuação direta do Ministério Público, o que avulta de interesse, por exemplo, em crimes econômicos para os quais a quase-totalidade da prova é produzida na esfera administrativa pela Receita Federal, pelo Banco Central, pelo COAF, enfim, órgãos com especialização técnica. Para os casos em que se revele importante a investigação para fins penais (e não administrativos), o inquérito policial permanece como um procedimento indispensável. Esta é a conclusão necessária.

De qualquer maneira, para os casos em que se revela legítima a atividade investigatória do Ministério Público, o STF tratou de fixar dois requisitos que têm de ser observados. O primeiro: não se pode opor sigilo em relação ao advogado e ao acusado. Segundo: todos os atos, provas e evidências têm de estar documentados nos autos, não podendo o Ministério Público selecionar as provas que lhe convenham e deixar de produzir as que militem em favor do investigado, como no caso das interceptações telefônicas. Este princípio da “comunhão das provas”, o qual já se encontrava previsto na jurisprudência do STF (HC 82.354-PR, rel. Min. Sepúlveda Pertence) traduz, em última análise, o princípio da impessoalidade da Administração Pública e concretiza o princípio constitucional do devido processo legal. Especialmente em sede de futura alteração do CPP, quando então se permitirá a negociação das penas entre acusado e Ministério Público, não poderá o órgão encarregado da investigação sonegar à parte adversa amplo e irrestrito acesso ao acervo probatório já produzido, sob pena de responsabilização civil e criminal do agente de Estado.

No caso específico das interceptações telefônicas, a exemplo do que acontece na Alemanha, todos aqueles que tiveram sua privacidade telefônica devassada sem que se apurassem elementos consistentes para o indiciamento, têm o direito de ser notificados da medida praticada, de maneira a exercer, caso queiram, o legítimo direito de busca de ação indenizatória contra o Estado, comprovando, se for o caso, a responsabilidade objetiva do Estado.


[1] Art. 1o Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo.(Redação dada pela Lei nº 10.217, de 11.4.2001)

[2] APPIO, Eduardo. CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL: modulação dos efeitos, coisa julgada . Juruá. Curitiba: 2008.

[3] O traço mais marcante do órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro é a prerrogativa política de estabelecer quais serão os casos em que reputa presente sua jurisdição. O Judiciário é que irá definir e interpretar a cláusula de inafastabilidade de apreciação jurisdicional 9art. 5º, XXXV, da CF de 1988).

[4] O processo administrativo no Brasil é regido pela Lei Federal 9.784/99 (lei dos atos administrativos) e pelo art. 37, “caput”, da Constituição Federal de 1988.

[5] ORTH, John V. DUE PROCESS OF LAW: a brief history. University Press of Kansas, 2003

Autores

  • Brave

    é juiz da Turma Recursal Federal do Paraná e pós-doutor em Direito Constitucional. É também autor do livro Controle difuso de constitucionalidade: modulação dos efeitos, uniformização de jurisprudência e coisa julgada.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!