Reforma do CPC

Restrição do uso de HC divide especialistas

Autor

1 de maio de 2010, 9h47

A reforma do Código do Processo Penal nem foi aprovada e já suscita críticas ferrenhas. Em um debate com juristas de peso, foram discutidos pontos cruciais do novo CPP, como a restrição aos Embargos Infringentes, limitação do uso de Habeas Corpus, Ação Penal Privada subsidiária, indiciamento, prazos recursais, entre outros. Mas o projeto também recebeu muitos elogios, porque, logo em seu início procura garantir as liberdades individuais, em consonância com o que determina a Constituição.

O anteprojeto foi elaborado por uma comissão de juristas formada por iniciativa do senador Renato Casagrande (PSB-ES). O PLS 156/2009 já foi aprovado e modificado na Comissão de Constituição e Justiça, e agora está no Plenário. Se aprovado, passa pela Câmara, e se não houver modificações significativas, vai para sanção do presidente. As expectativas de votação, no entanto, não são das melhores. Em quatro anos o projeto deve sair do papel, calcula um dos participantes do encontro promovido pelo Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), nesta quarta-feira (28/4).

O evento teve como mediador o advogado criminalista e presidente da Comissão de Processo Penal do IASP, José Luis de Oliveira Lima.

O diretor da Faculdade de Direito da USP, Antonio Magalhães Gomes Filho participa das reformas do código desde 1992 e foi um dos integrantes da comissão que elaborou o anteprojeto em debate. Ele conta que se assustou com o prazo que foi dado à comissão (menos de um ano para finalizar o projeto), porém, ressalta que a modificação foi feita de forma completa.

Conforme explica o diretor, o projeto procura criar um novo modelo acusatório. Apesar de reconhecer que o projeto tem deficiências que precisam ser repensadas, ele ressalta que a proposta se alinha às garantias fundamentais previstas na Constituição de 1988. Diferentemente do atual, que está de acordo com a Constituição anterior, da época do Estado Novo.

Ao demonstrar sua insatisfação com as modificações feitas na CCJ do Senado, o diretor afirma que o Poder Legislativo é legitimo para fazê-las. “Há uma emenda mantendo a Lei Maria da Penha, que tem propósitos bons, mas já quebra o sistema utilizado”, justifica.

O Código de Processo Penal em vigor é de outubro de 1941, mas em 2008 passou por diversas modificações. Essa reforma é a primeira que se faz de forma abrangente. As mudanças recentes e constantes podem gerar insegurança jurídica, como afirma o advogado criminalista Eduardo Muylaert.

“Nós ainda não absorvemos bem a reforma de 2008. As modificações começam a ser experimentadas por todos nós agora, não sei se já estão consolidadas a ponto de serem modificadas”, questiona. Contudo, o advogado diz que “o novo CPP é um monumento, que começa com uma declaração de princípios importante, e procura garantir as liberdades individuais”.

Muylaert diz também que não adianta existir um bom código, se a Justiça não tiver instrumentos suficientes para “aplicar o novo código uniformemente”. “Para que a música seja boa, não é preciso que partitura seja boa. Pode haver uma excelente peça de Beethoven, mas se a orquestra não tiver os instrumentos, ou não estiverem afinados a música não soa corretamente.”

O desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Marco Antonio Marques da Silva concorda com o advogado Muylaert ao elogiar o novo projeto. “A proposta tem uma maior efetividade de garantias do cidadão, porque o Processo Penal tem que ser visto não apenas como algo para prisão ou para resposta, mas sim como limite do poder do Estado em face da nossa liberdade enquanto cidadãos”, diz.

Entre os elogios, o desembargador afirma que apenas o fato de discutir reformas já é "salutar, pois demonstra uma democracia e uma transparência". Marques da Silva chamou atenção para os Juizados Especiais Criminais. Ele aponta que pelo fato de o juizado tratar de pequenas infrações, os advogados e promotores acabam dando pouca importância. Mas, segundo o magistrado, eles não podem ser deixados de lado. "O que para uns pode ser mais um processo, para o indivíduo, pode ser o drama da vida dele", observa.

O principal assunto do debate ficou por conta das modificações feitas nos recursos processuais e suas limitações. Para o procurador da república Rodrigo de Grandis, o novo CPP racionaliza os recursos. “Acho que o projeto racionaliza trazendo inclusive trazendo o Agravo de Instrumento, que poderá ser interposto pelo Ministério Público”, reforça.

“Na maioria das vezes, o Ministério Público se vale do Mandado de Segurança, como uma forma supletiva, subsidiária ou até mesmo uma correção parcial, o que gera complicações do ponto de vista jurisprudencial.” Isso porque, há divergência no ordenamento jurídico no uso do MS pelo Ministério Público.

De Grandis destaca também outro ponto do projeto, no qual o arquivamento de denúncia será feito exclusivamente pelo MP, sujeito a controle interno. "Isso na verdade, guarda conformidade com o que diz a Constituição. De que o MP é o dominus lites da ação, ou seja, o dono da Ação Penal. Pela sistemática atual o juiz realiza um controle.”

Habeas Corpus
Segundo o novo projeto, o Habeas Corpus poderá ser utilizado "sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação ilegal no seu direito de locomoção, ressalvados os casos de punição disciplinar".

Para o advogado Muylaert a nova redação restringe o uso deste recurso. “O anteprojeto cria uma esganadura e limita o HC à prisão e ameaça de prisão. Isso é inadmissível. O HC sempre foi um modo de garantir, inclusive o exame da falta de justa causa nas hipóteses mais absurdas”, assevera. “Qualquer tipo de restrição do HC tem um caráter quase medieval.”

O procurador De Grandis discorda de Muylaert ao falar do Habeas Corpus. “O projeto enquadra de forma mais adequada o HC. É remédio constitucional, de proteção de liberdade e restrito à locomoção”, ressalta. Ele cita que boa parte dos recursos dos tribunais superiores é constituída de HCs, “enquanto os outros recursos ficam aguardando anos um julgamento”, pondera.

Neste ponto, o diretor da Faculdade de Direito da USP endossa o que De Grandis defende. Ao falar sobre a redução do uso de Habeas Corpus, o acadêmico explicou que ela provém de uma preocupação do presidente da comissão, o ministro Hamilton Carvalhido, do Superior Tribunal de Justiça, o grande número de recursos desse tipo nas instâncias superiores.

“Com a evolução da jurisprudência, chegou-se à conclusão de que instaurada a Ação Penal já há um risco à liberdade, ou até antes, quando da instauração do inquérito policial”, diz. Todavia, ele conta que há casos, em que no inquérito policial a defesa impetra diversos Habeas Corpus. “Com isso, não só os tribunais estão assoberbados, como também os próprios advogados”, pondera.

“Nós temos que estabelecer alguma limitação ao cabimento do HC porque é um remédio para o direito da tutela à liberdade. Entretanto, para compensar essa limitação, o projeto prevê que o recurso de apelação terá sempre efeito suspensivo”, lembra.

Embargos Infringentes
Outro recuso limitado pelo projeto que foi posto em debate é a limitação dos Embargos Infringentes. Conforme o anteprojeto cabe Embargos Infringentes: do acórdão condenatório não unânime que, em grau de apelação, houver reformado sentença de mérito, em prejuízo do réu, cabem embargos infringentes a serem postos pela defesa, no prazo de 10 (dez) dias, limitados à matéria objeto da divergência no tribunal.

Dessa forma, só caberia Embargos Infringentes se a decisão, não unânime, do colegiado fosse prejudicial ao réu. Mas o advogado Muylaert explica que essa limitação também será prejudicial, isso porque em uma redução de pena com números não unanimes não poderão ser contestadas.

Como exemplo, o advogado explica que “os réus foram condenados a 10 anos de prisão em primeiro grau, e em segundo grau, a pena foi reduzida. Dois votos pra seis anos e um voto para quatro anos. Na pena de seis é regime semiaberto, na de quatro poderia haver uma substituição. São decisões gravíssimas”. “O código tem que ser mais generoso e permitir Embargados Infringentes em decisão de segundo grau”, argumenta.

Para explicar a mudança, o diretor novamente recorre a um problema do Judiciário: a morosidade. Ele diz que a ideia era dar mais celeridade ao processo diminuindo o número de recursos, contudo, isso não pode ser feito de modo a cercear a possibilidade de defesa do réu, garantida pela Convenção de Direitos Humanos.

“Para atender à redução, a única hipótese era limitar os Embargos Infringentes com o mesmo sentido do que existe no Código de Processo Civil.” Em contrapartida, Muylaert disse: “Não dá para trazer coisas do CPC para o CPP. Porque no CPC está se discutindo interesses patrimoniais, e no CPP é a vida da pessoa que está em jogo”.

Magalhães concorda que talvez fosse necessário rever este ponto.

Juiz de garantias
Também incorporado no projeto, o juiz de garantias levanta questões de ordem práticas. O diretor Antonio Magalhães explica que o objetivo é afastar o juiz que participou da fase de investigação, ainda que ele não tenha investigado. “Inclusive, isso existe em várias legislações. Esse juiz tem que ficar impedido de conduzir a Ação Penal”, sustenta.

Por outro lado, as críticas quanto a essa ação ficam por conta da falta de juízes em lugares distantes. Autoridades do Poder Judiciário afirmam ser impossível ter obrigatoriamente dois juízes para cada comarca. Magalhães diz que um código deve ser feito levando em consideração o Brasil inteiro, “isso não seria possível em lugares pequenos, mas não podemos deixar de fora os grandes centros”.

Prisão preventiva
O desembargador Marco Antonio Marques da Silva observa que o projeto impõe um prazo máximo para manter uma pessoa presa preventivamente. Ele diz ainda que ela tem contornos de necessidade quando houver perigo do indivíduo cometer novamente o crime, de fugir do local e clamor público.

Mas, para o desembargador, o prazo pode ser perigoso. “Será que criar um prazo não se cria também o risco de engessar e acabar obrigando que a pessoa fique presa este período?”, questiona. “É preciso estar atento para que a prisão preventiva não vire uma pena antecipada. Mas, desde que seja num caso necessário, por ordem judicial descrita e fundamentada”, ressalta.

Segundo Marques da Silva, é preciso atualizar conceitos, “é muito relativo se o indivíduo põe ou não em risco a sociedade, é um critério subjetivo”. Magalhães explica que o objetivo é delimitar e cumprir o prazo máximo da prisão preventiva. “Terminou, o indivíduo será posto em liberdade.”

Indiciamento
Um dos pontos unânimes entre os debatedores foi o repúdio ao indiciamento. Eles afirmam que o instrumento não tem serventia no sistema acusatório. Rodrigo de Grandis explica o motivo: “do ponto de vista prático o indiciamento não significa nada, e nem do ponto de vista jurídico”. Magalhães concorda que, de fato, o indiciamento é dispensável.

Ação Penal Subsidiária 
O novo projeto acaba com a Ação Penal Privada, mas manteve a Ação Penal Privada Subsidiária da Pública. O advogado Muylaert explica que depois da criação de órgãos como o Conselho Nacional do Ministério Público e Conselho Nacional de Justiça, não há mais necessidade de se manter esse tipo de ação. Ela só cabível quando existem inércia do MP.

"Não há mais o que se falar em Ação Penal subsidiária, que é um caso raríssimo. Essa hipótese deveria ser tratada pela via administrativa, e não pelo caminho do processo judicial. Eu acho que é uma coisa obsoleta."

Em resposta, Magalhães explica que ao longo do debate na elaboração do anteprojeto, foi cogitado retirar a Ação Penal Susbsidiária do projeto. Porém, não é possível, já que ela é uma previsão da Constituição. E considera um avanço a exclusão da Ação Penal Privada.

Outros temas
Os juristas comentaram ainda sobre sobre monitoramento eletrônico de presos, julgamento por videoconferência e unificação de prazos recursais. Todos entendem que os pontos necessitam de mais dicussão.

Leia aqui a íntegra do anteprojeto da reforma do CPP

Notícia alterada para correção de informação 3/5 às 14h43.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!