Direito Tributário

Descaminho não é crime sem lançamento de crédito

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27 de junho de 2010, 6h01

Considerando a política criminal adotada no Brasil, buscamos aqui defender que o delito de descaminho deve ser incluído na categoria dos crimes contra a ordem tributária, ocorrendo atipicidade nos casos em que tenha havido decretação administrativa de perdimento de mercadoria, por ausência de lançamento definitivo do tributo.

O caput do artigo 334 do Código Penal descreve a conduta proibida nos seguintes termos: "Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria". A segunda parte do dispositivo (com grifo) refere-se ao tipo legal do descaminho, enquanto a primeira parte tipifica o contrabando.

Especificamente quanto ao descaminho, reconhecemos que a jurisprudência é ainda conflitante no que concerne a sua natureza jurídica, a começar pelo fato de estar tipificado em capítulo do Código Penal que trata dos crimes contra a Administração Pública, razão pela qual, entendem alguns, não seria propriamente um crime contra ordem tributária de que trata a Lei 8137/90.

Diverge-se ainda sob o argumento de que o delito de descaminho visaria à proteção de outros bens jurídicos que não a mera arrecadação de tributos. Essas divergências têm implicações na incidência ou não do regime jurídico já reconhecido aos crimes fiscais, basicamente sob dois aspectos:

i) necessidade de lançamento definitivo (prévio esgotamento da via administrativo-fiscal) como elemento objetivo do tipo penal, consoante decidiu o STF em 10/12/2003 (HC 81.611-8/DF), entendimento que deu origem à Súmula Vinculante 24.

ii) extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo ou suspensão da pretensão punitiva em caso de parcelamento de tributo (art. 9º da Lei 10.684/2003).

O cerne da questão, por conseguinte, está em saber se uma pessoa acusada de descaminho (que geralmente teve toda a sua mercadoria sumariamente apreendida e confiscada pela Receita Federal, sem opção de pagamento de tributos correspondentes) deve de logo responder a um processo criminal, enquanto grandes sonegadores (que muitas vezes se valem de complexos esquemas fraudulentos para esquivar-se das obrigações fiscais, inclusive com emprego de “laranjas”) somente venham a responder criminalmente após o lançamento definitivo do tributo e ainda assim tenham a oportunidade de efetuar o pagamento da dívida tributária, livrando-se a qualquer tempo da responsabilidade criminal.

Esse último argumento, pautado na busca por justiça e equidade, conforme os ditames constitucionais, já seria suficiente a justificar um tratamento isonômico em relação ao descaminho. Não bastasse isso, consoante veremos, a solução aqui defendida encontra fundamento jurídico na própria legislação tributária, bem como nos parâmetros traçados pela jurisprudência no tocante à criminalidade fiscal.

Insuficiência do argumento legal-topográfico

O argumento legal-topográfico – o fato de o descaminho estar tipificado no Código Penal, em capítulo dos crimes contra a administração pública – obviamente não é suficiente a concluir que devesse merecer tratamento jurídico diferenciado dos demais crimes contra a ordem tributária.

Primeiro por uma razão histórica, porque à época da edição do Código Penal de 1940 ainda não havia tipificação geral dos crimes contra a ordem tributária, existindo apenas o tipo do art.334 referente ao contrabando e descaminho. Naquele contexto, as demais condutas violadoras da ordem tributária somente poderiam mesmo ser enquadradas como crimes contra a Administração ou ainda como estelionato ou falsidade. Com o advento da Lei 4.729/65, e depois com a Lei n. 8.137/90, a matéria passou a ser tratada em legislação penal específica, porém ainda assim o legislador optou por manter a tipificação do descaminho no art. 334 do CP, alterando apenas a redação da norma original.

Em segundo lugar, o referido argumento cai por terra diante do fato de que outros delitos vieram a ser também inseridos na redação do Código Penal, não obstante lhes tenha sido conferido o tratamento jurídico comum a todos os crimes fiscais. É o que ocorre, v.g., com o crime de sonegação de contribuição previdenciária (art.337-A do CP, introduzido pela Lei 9.983/2000, no mesmo capítulo dos crimes contra administração pública). Saliente-se que, antes da introdução deste dispositivo no Código Penal, a tipicidade da conduta se dava nos termos da referida legislação penal especial (art. 1º, I, da Lei 8.137/90 c/c art. 95 da Lei 8.212/91). O mesmo se deu com o tipo penal de apropriação indébito previdenciária, que também veio a ser posteriormente introduzido no Código Penal (art.168-A).

Identidade de bens jurídicos protegidos nos crimes contra a ordem tributária

O que se disse bem demonstra que todos os crimes fiscais inserem-se no contexto de proteção aos amplos interesses da Administração Pública, estejam eles tipificados no Código Penal ou em legislação esparsa.

E não poderia ser diferente, porque ao se buscar classificar a norma criminal com base no bem jurídico por ela tutelado, sobretudo nos chamados crimes complexos ou pluriofensivos[1], deve-se observar os elementos subjetivos do tipo penal (teoria finalista da ação).[2]

Sendo assim, ao se examinar o tipo penal do art. 334 do CP (caput, 2ª parte), vê-se que o bem jurídico tutelado é prioritariamente o mesmo dos demais crimes fiscais, ou seja, a ordem tributária em seu sentido amplo, consubstanciada no interesse da Administração Pública numa regular arrecadação de tributos para fazer frente às necessidades coletivas, bem como em aspectos extrafiscais.

Essa discussão sobre a natureza tributária do crime de descaminho é antiga no Brasil.

Ainda durante a vigência do Decreto-lei 157/67, que previa regras de extinção de punibilidade em relação a todos os crimes envolvendo dívidas tributárias[3], o STF editou a Súmula 560[4] reconhecendo que o benefício haveria de ser aplicado também ao crime de descaminho, situação que só veio a ser modificada quando a Lei 6.910/81 revogou genericamente o benefício.

Isso demonstra que a política criminal vigente ao tempo do DL 157/67 levou em conta a identidade de bens jurídicos protegidos tanto na imputação de descaminho quanto nos crimes de sonegação tratados na Lei 4.729/65.

É certo que com a edição da Lei 8.137/90 (art.14), seguida depois pela Lei 9.249/1995 (art.34) e finalmente pela Lei 10.684/2003 (art.9º), restabeleceu-se no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo objeto do crime fiscal, tendo essa nova legislação se limitado a conceder o benefício aos acusados por crimes definidos na Lei 8.137/90 e nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal, sem nada mencionar quanto ao tipo penal do art. 334.

Não obstante, parece-me que a mesma razão de tratamento isonômico que justificou a edição da antiga Súmula 560 do STF deve agora prevalecer, mormente em vista dos ditames igualitários da Carta Magna de 1988, não havendo razão jurídica para se diferenciar o descaminho e os demais crimes de natureza fiscal.

Ora, o descaminho nada mais é do que uma modalidade de sonegação fiscal especificamente relacionada a operações aduaneiras. O núcleo do tipo do art.334 ("iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto"[5]) é exatamente o mesmo da sonegação fiscal previsto no artigo 1º da Lei 8.137/90 ("suprimir ou reduzir tributo").

Não se diga simplesmente que o descaminho teria um ingrediente diferencial consistente na proteção do comércio e da indústria nacional, porque o mesmo se verifica em outras situações configuradoras dos delitos tipificados na Lei 8137/90, mormente quando estejam envolvidos impostos de importação e exportação, sem olvidar que a correlativa proteção de interesses extrafiscais é uma marca característica de toda legislação tributária, existindo ainda, ao lado disso, legislações penais que tratam especificamente dos crimes contra a ordem econômica (Lei 8.176/90) e contra a ordem financeira (Lei 7.492/86).


Sendo (a proteção do comércio e da indústria nacional) um ingrediente comum a diversos crimes de natureza econômica, não deve servir racionalmente como elemento diferenciador do regime jurídico, inexistindo, por conseguinte, uma razão lógico-jurídica para se tratar o descaminho de modo diferente dos demais crimes contra a ordem tributária.

No julgamento do HC 48.805-SP (STJ, relatora: ministra Maria Thereza de Assis Moura), deixou-se assentado que “o crime de descaminho é intrinsecamente tributário, ou seja, tutela-se o direito que o Estado tem de instituir e cobrar impostos e contribuições”.

Apesar de não se tratar ainda de matéria pacificada, já há outros precedentes do STJ caminhando nessa mesma linha, como se infere no teor da seguinte ementa:

PENAL – HABEAS CORPUS – DESCAMINHO – TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL – AUSÊNCIA DE PRÉVIA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO NA ESFERA ADMINISTRATIVA – NATUREZA TRIBUTÁRIA DO DELITO – ORDEM CONCEDIDA.

 

1. Consoante recente orientação jurisprudencial do egrégio Supremo Tribunal Federal, seguida por esta Corte, eventual crime contra a ordem tributária depende, para sua caracterização, do lançamento definitivo do tributo devido pela autoridade administrativa.

 

2. O crime de descaminho, por também possuir natureza tributária, eis que tutela, dentre outros bens jurídicos, o erário público, deve seguir a mesma orientação, já que pressupõe a existência de um tributo que o agente logrou êxito em reduzir ou suprimir (iludir). Precedente.

 

3. Ordem concedida para trancar a ação penal ajuizada contra os pacientes no que tange ao delito de descaminho, suspendendo-se, também, o curso do prazo prescricional.

 

 

(HC 109205/PR, Relatora: Min.JANE SILVA, DJ de 09/12/2008).

 

 

Reforçando esta tese, podemos ainda mencionar as decisões do STF considerando que o tipo penal do art. 334 (caput, 2ª parte) não incide nas situações em que o valor tributário envolvido não conduziria à cobrança fiscal, aplicando-se, por conseguinte, o princípio da insignificância.[6] São os casos em que o valor estimado dos tributos respectivos não ultrapassaria R$ 10 mil (valor fixado pela Lei 11.033/04), porquanto o art. 20 da Lei 10.522/02 determina o arquivamento das execuções fiscais.

 

Essa aplicação do princípio da insignificância nas hipóteses de descaminho faz sobressair bem a natureza patrimonial do bem juridicamente protegido, quando se sabe que a jurisprudência não tem acolhido a aplicação deste princípio nos casos em que a lei penal protege valores não patrimoniais[7].

 

 

Descaminho como um crime fiscal material

 

Tal qual acontece com as modalidades de sonegação fiscal tratadas no art.1º da Lei 8.137/90, o descaminho há de ser considerado um crime material, porque exige, para a sua consumação, a ilusão no pagamento integral ou parcial do direito ou imposto.

 

A simples leitura do tipo (art.334, caput, 2ª parte) deixa transparecer que não se trata de crime meramente formal. A lei fala em iludir o pagamento, e não apenas em adotar medidas materiais com essa finalidade.

 

Serve aqui o mesmo raciocínio utilizado pela doutrina para distinguir os crimes materiais e formais tipificados na Lei 8.137/90. Ao diferenciar os crimes previstos nos arts. 1º e 2º desta Lei, José Paulo Baltazar Júnior leciona que os tipos penais nos crimes formais costumam ser construídos com expressões tais como “para”, “com o fim de”, “a fim de” etc.:

 

“A diferenciação mais aceita é no sentido de que o art.1º é um crime material por exigir a efetiva supressão ou redução do tributo, contribuição ou qualquer acessório para sua consumação. Já no art.2º inexiste essa referência no caput, estando mencionada a supressão ou redução do tributo no próprio inciso I, antecedido da proposição para. Ora, sempre que o tipo for construído com expressões tais como para, com o fim de, a fim de, etc., a elementar que se seguir constitui elemento subjetivo do tipo. Basta que o agente tenha aquela finalidade, ou seja, não é preciso que o que está descrito depois da preposição efetivamente se concretize para consumar o crime. Desse modo, se o contribuinte é autuado pela fiscalização tributária após ter cometido a falsidade tendente a reduzir o valor do tributo, estará consumado o delito do art.2º, I, ainda que não tenha vencido o prazo para o recolhimento (Seixas Filho: 426).

 

Daí resulta que o inciso I do art.2º é a forma tentada do art.1º. Assim, em vez de utilizar o art.14 do CP, para fazer a adequação típica da tentativa, utiliza-se o inciso I do art.2º.”[8]

 

Destarte, a consumação de descaminho exige que tenha havido entrada ou saída de mercadoria do País e que a autoridade competente constitua o crédito tributário que deixou de ser declarado nessa operação, caracterizando com isso ter havido imposto ou direito cujo pagamento foi iludido, consoante veremos no tópico a seguir.

 

Necessidade de prévio processo administrativo fiscal nas hipóteses de descaminho

 

Sendo um crime material de natureza tributária, cujo núcleo do tipo está em iludir o pagamento de direito ou imposto, o descaminho pressupõe que a autoridade fiscal competente determine e exija o crédito tributário por meio de um processo administrativo fiscal em que seja assegurada a ampla defesa e o contraditório.

 

Não vamos aqui nos estender num debate em torno do conceito de “tributo” na ciência jurídica, nem sobre a distinção entre “obrigação tributária” e “crédito tributário”, ou outros institutos estudados pelo Direito Tributário tais como “hipótese de incidência”, “fato gerador”, “lançamento ou crédito tributário”.

 

Ao menos para fins penais, esta questão foi superada pela jurisprudência do STF ao tratar dos crimes fiscais materiais. Pacificou-se que o prévio e definitivo lançamento tributário é requisito para se constatar a existência do “tributo” suprimido ou reduzido, de modo que antes disso o tipo penal simplesmente não se configura. Isto é, a existência do tributo é elemento objetivo do tipo[9] nos crimes materiais fiscais, tal como consta na Súmula Vinculante 24 do STF:

 

Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, inciso I, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo” (destaquei).

 

Esse preceito não decorre da suposta existência de um grau de comunicação entre as instâncias administrativa e criminal, nem tampouco do estabelecimento de uma regra de dependência decisória daquela em relação a esta. Ao que parece, o STF considerou simplesmente que a constituição formal do crédito tributário, por meio do lançamento definitivo, é pressuposto para a própria ocorrência do crime.

 

Há bons argumentos para se criticar esse posicionamento do Supremo[10]. Porém, havendo Súmula sobre o tema, discordar deste preceito vinculante soa como exercício de argumentação puramente dialético em torno da melhor política criminal a ser adotada na definição dos elementos de tipicidade nos delitos fiscais[11], tal como poder-se-ia também sustentar em relação à expressa previsão legal de extinção da punibilidade pelo pagamento[12]. Apesar de não considerarmos adequada esta política criminal que vem sendo adotada no Brasil, não é o que aqui se discute.

 

Vale dizer, o presente texto não se ocupa em questionar o mérito da decisão do STF retratada na Súmula 24. Toma-a simplesmente como premissa e, a partir daí, busca prolongar o debate jurídico apontando argumentos que, numa lógica sistemática, tornam forçosa a aplicação do mesmo entendimento às hipóteses de descaminho.


 

Ressalte-se que apesar de a Súmula Vinculante 24 fazer menção à modalidade de sonegação fiscal prevista no art.1º, I, da Lei 8.137/90, a mesma razão justifica idêntico tratamento jurídico em relação aos demais crimes fiscais materiais.

 

De mais a mais, homenageia-se o princípio constitucional da isonomia – uma vez que a política criminal na área fiscal tem notadamente se voltado à arrecadação como fator preponderante[13] – bem como aos princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade, porquanto, nos casos de descaminho que já comportem a mais pesada das sanções administrativas, o confisco, tal já se revela suficiente a inibir a prática de novos delitos, bastando para isso que haja a devida fiscalização pela polícia administrativa.

 

Perdimento de bens como obstáculo à incidência do tipo penal do descaminho

 

Ao lado das situações em se procede ao desembaraço aduaneiro, mediante lançamento fiscal definitivo do tributo incidente sobre os bens importados ou exportados, com aplicação de multa se detectada alguma irregularidade, há situações em que o Fisco dá início a um procedimento confiscatório.

 

São os casos em que a autoridade fiscal, após apreender a mercadoria, vem a aplicar a pena de perdimento, uma sanção administrativa prevista em norma legal (art. 105 do DL 37/66) e em regulamento aduaneiro (art. 689 do Decreto 6.759/2009), mas que acaba por impedir o próprio lançamento fiscal. Vale dizer, ao invés de simplesmente liberar a mercadoria e proceder regularmente à constituição do crédito tributário sonegado, acrescido de penalidades pecuniárias, a Receita Federal instaura de logo um outro processo administrativo para legitimar o confisco dos bens.

 

Ao assim proceder, o Órgão Fiscal não pode lançar o tributo, haja vista que a lei prevê a expropriação de bens, os quais inclusive poderão ser objeto de alienação ou incorporação[14], ressarcindo ao Erário o que deixou de ser recolhido. Tributar, nessa situação, configuraria até mesmo um enriquecimento sem causa por parte do Estado.

 

De fato, a importação de mercadorias, ao desamparo de guia de importação ou documento de efeito equivalente, é qualificada como “dano ao erário” punido com a pena de perdimento, consoante previsto no art.23, I e parágrafo1º do Decreto 1.455/76, com a redação dada pela Lei 10.637/2002, bem como no art. 689 do Decreto 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro). E o “dano ao erário”, por si só, não pode servir como hipótese de incidência tributária.

 

Se a mercadoria importada ilegalmente vem a ser confiscada pela Administração, não cabe cobrança de tributo a ela referente. Aliás, a mesma razão pela qual não se deve utilizar tributo com efeito de confisco (CF/88, art. 150, IV) justifica que não se deva fazer incidir tributo sobre bem confiscado.

 

Saliente-se que não se fala aí propriamente em “tributo”, porquanto não houve sequer prévio lançamento tributário, muito menos definitivo[15]. O que há, nesses casos, é uma mera estimativa do valor que poderia ter sido lançado caso tivesse havido o regular desembaraço aduaneiro, ou seja, do dano que seria experimentado pelo Erário e que é compensado pelo perdimento. É assim que o art.776 do Regulamento Aduaneiro estabelece que na formalização do processo administrativo fiscal, para aplicação da pena de perdimento, a autoridade poderá indicar um “montante correspondente” àquele que “seria devido” na importação regular[16]. E essa locução “seria devido”, no texto do regulamento, denota bem a idéia de que, com o confisco, nada pode ser cobrado a título de tributo.

 

Tanto isso é verdade que, se porventura tiver havido declaração de importação, a posterior decretação de perdimento do bem dá ao antigo proprietário até mesmo o direito de pedir de volta o tributo que eventualmente tenha adiantado ao fazer a declaração. Confira-se, nesse sentido, o seguinte trecho de julgado:

 

“A pena de perdimento dos bens é consectário lógico da situação ora desfavorável aos agravantes, em face da reforma da sentença concessiva do mandado de segurança, segundo orientação do Excelso Pretório. Os tributos pagos, por ocasião da internação dos automóveis no País, não têm o condão de tornar legal a importação e podem ser recuperados pelos agravantes mediante ação de repetição de indébito. Precedentes”[17] – destaquei.

 

Na verdade, como dito, o confisco de bens é incompatível com a tributação. Se houver decretação de perdimento, tem-se uma espécie de extinção antecipada da potencial obrigação tributária que sequer vem a ser constituída, pois a pena administrativa impede a incidência do tributo ou, como se queira, a ocorrência do fato gerador do imposto aduaneiro, obstando o próprio desembaraço.

 

Isso se extrai inclusive da redação do art.71, III, do Regulamento Aduaneiro, ao tratar do imposto de importação:

 

“Art.71. O imposto não incide sobre:

 

(…)

 

III – mercadoria estrangeira que tenha sido objeto da pena de perdimento, exceto na hipótese em que não seja localizada, tenha sido consumida ou revendida (Decreto-Lei 37, de 1966, art. 1º, parágrafo 4o, inciso III, com a redação dada pela Lei 10.833, de 2003, art. 77)”.

 

A interpretação desse dispositivo revela que os bens apreendidos pela Administração Fiscal e submetidos a processo administrativo de perdimento de mercadoria[18] não sofrem a incidência do imposto de importação. A tributação só seria cabível se, na hipótese de perdimento, não houvesse meios para se apreender a mercadoria e concretizar o confisco.

 

O mesmo se diga do imposto de produtos industrializados (IPI), cujo fato gerador na importação somente ocorre com a conclusão do desembaraço aduaneiro[19], assim como a contribuição para o PIS/PASEP-importação e a COFINS-importação.[20]

 

Ora, não sendo hipótese de incidência tributária, sequer se poderia falar em ilusão do pagamento de imposto ou direito. Logo, o núcleo do tipo penal do art.334 não ocorre.

 

 

Registre-se não se tratar de situação de extinção da punibilidade por aplicação analógica do art.9º da Lei 10.684/2003.[21] Cuida-se, sim, de impedimento à própria formação do crédito tributário que constituiria o elemento objetivo do tipo penal de descaminho.

 

Ressalva em relação ao contrabando

 

Cabe, por derradeiro, ressalvar que a identidade de bens jurídicos ora defendida somente há de se aplicar ao crime de descaminho, não ocorrendo no caso de contrabando, apesar de ambos estarem tipificados no mesmo dispositivo do art. 334 do CP.

 

No dizer de Mirabete, “embora, pela disjuntiva ou tenha a lei tratado os termos como sinônimos, contrabando, em sentido estrito, designa a importação ou exportação fraudulenta da mercadoria, e descaminho o ato fraudulento destinado a evitar o pagamento de direitos e impostos”.[22]

 

Com efeito, a análise dos elementos do tipo do contrabando (“importar ou exportar mercadoria proibida”) revela claramente que não se trata de proteger a ordem tributária consubstanciada prioritariamente na arrecadação de tributos, mas, sobretudo, impedir a entrada no país de produtos considerados nocivos sob vários aspectos.


 

No descaminho, a simples entrada ou saída do produto, por si só, não é crime, se o agente não ilude o pagamento do imposto; enquanto, no contrabando, o crime se consuma com a simples entrada ou saída do produto proibido, sem se falar em incidência de tributos. Ambos são crimes materiais, porém no descaminho o núcleo do tipo está na ilusão do pagamento.

 

Daí porque o descaminho é um crime de natureza tributária, diferentemente do contrabando, conforme explica Luiz Régis Prado:

 

“num enfoque moderno, contrabando passou a denotar a importação e exportação de mercadoria proibida por lei, enquanto que descaminho significa a fraude ao pagamento de tributos aduaneiros. Diferenciam-se, pois, porque enquanto este constitui um crime de natureza tributária, clarificando uma relação fisco-contribuinte, o contrabando expressa a importação e exportação de mercadoria proibida, não se inserindo, portanto, no âmbito dos delitos de natureza tributária. Assim, ao serem vedadas a importação ou exportação de determinada mercadoria, a violação legal do preceito estatal constitui um fato ilícito e não um fato gerador de tributos”.[23]

 

O contrabando, portanto, segue sendo punível independentemente de constituição de crédito tributário.

 

Do que acima se expôs, podemos traçar as seguintes etapas para o raciocínio conclusivo:

 

8.1) O fato de o descaminho estar tipificado no Código Penal, em capítulo dos crimes contra a administração pública não obsta que tenha o mesmo tratamento jurídico conferido aos demais crimes contra a ordem tributária previstos na Lei 8.137/90. Todos os crimes fiscais inserem-se no contexto de proteção aos amplos interesses da Administração Pública, estejam eles tipificados no Código Penal ou em legislação esparsa.

 

8.2) O descaminho nada mais é do que uma modalidade de sonegação fiscal especificamente relacionada a operações aduaneiras. O núcleo do tipo do art.334 ("iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto") é exatamente o mesmo da sonegação fiscal previsto no artigo 1º da Lei 8.137/90 ("suprimir ou reduzir tributo").

 

8.3) Havendo decisões do STF aplicando o princípio da insignificância em hipóteses de descaminho, fica evidente a natureza patrimonial do bem juridicamente protegido, já que a jurisprudência tem afastado a aplicação deste princípio nos casos em que se busca proteger valores não patrimoniais, tais como a fé pública.

 

8.4) O descaminho é um crime material, porque exige, para a sua consumação, a ilusão no pagamento integral ou parcial do direito ou imposto. A simples leitura do tipo (art.334, caput, 2ª parte) deixa transparecer que não se trata de crime meramente formal. A lei fala em iludir o pagamento, e não apenas em adotar medidas materiais com essa finalidade.

 

8.5) A consumação de descaminho exige que tenha havido entrada ou saída de mercadoria do País e que a autoridade competente apure e exija o crédito tributário que deixou de ser declarado nessa operação, configurando a ilusão do pagamento.

 

8.6) O STF considerou o prévio e definitivo lançamento tributário como elemento objetivo do tipo penal nos crimes fiscais materiais (Súmula Vinculante n. 24). Esse preceito não decorre da existência de um grau de comunicação entre as instâncias administrativa e criminal, nem tampouco do estabelecimento de uma regra de dependência decisória daquela em relação a esta. Considerou-se simplesmente que a constituição formal do crédito tributário, por meio do lançamento definitivo, é pressuposto para a própria ocorrência do crime.

 

8.7) Apesar de a Súmula Vinculante n. 24 apenas fazer menção à modalidade de sonegação fiscal prevista no art.1º, I, da Lei 8.137/90, a mesma razão justifica idêntico tratamento jurídico em relação aos demais crimes fiscais materiais, como é o caso do descaminho.

 

8.8) A importação de mercadorias, ao desamparo de guia de importação ou documento de efeito equivalente, é qualificada como “dano ao erário” punido com a pena de perdimento, consoante previsto no art.23, I e parágrafo 1º do Decreto 1.455/76, com a redação dada pela Lei 10.637/2002, bem como no art. 689 do Decreto 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro).

 

8.9) Se a mercadoria importada ou exportada ilegalmente vem a ser confiscada pela Administração, não cabe cobrança de tributo a ela referente. E se porventura tiver havido declaração de importação, a posterior decretação de perdimento do bem dá ao antigo proprietário o direito de pedir de volta o tributo que eventualmente tenha adiantado ao fazer a declaração.

 

8.10) O confisco de bens é incompatível com a tributação. Se houver decretação de perdimento, tem-se uma espécie de extinção antecipada da potencial obrigação tributária que sequer vem a ser constituída, pois a pena administrativa impede a incidência do tributo ou a ocorrência do fato gerador do imposto aduaneiro, obstando o próprio desembaraço.

 

8.11) O Regulamento Aduaneiro, ao tratar do imposto de importação (art.71, III), diz expressamente que não incide o imposto sobre mercadoria estrangeira que tenha sido objeto de pena de perdimento. O mesmo ocorre em relação ao imposto sobre produtos industrializados (arts. 238 c/c 570, parágrafo1º, II c/c 571 do Regulamento Aduaneiro), assim como a contribuição para o PIS/PASEP-importação e a COFINS-importação (art.250 c/c 71, III).

 

8.12) Não sendo hipótese de incidência tributária, sequer se poderia falar em ilusão do pagamento de imposto ou direito. Logo, o núcleo do tipo penal do art.334 não ocorre.

 

8.13) Ao contrário do tipo penal do descaminho (CP, art. 334, 2ª parte), que busca proteger a ordem tributária consubstanciada na arrecadação de tributos, o tipo penal do art.334, caput, 1ª parte, visa impedir a entrada no país de produtos considerados nocivos sob vários aspectos, daí porque o contrabando segue sendo punível independentemente de constituição de crédito tributário.

 

Em suma, para a configuração do crime de descaminho, tal como tipificado no ordenamento jurídico brasileiro (art.334, caput, 2ª parte), faz-se necessário que tenha havido o lançamento definitivo do crédito tributário, de modo a se identificar o tributo objeto de ilusão. Não constituído o tributo ou tendo havido a decretação de perdimento de bens, não há justa causa para a persecução criminal.

 


 

 

[1] Conforme leciona Francisco de Assis Toledo, “os crimes complexos são em geral crimes pluriofensivos por lesarem ou exporem a perigo de lesão mais de um bem jurídico tutelado”. In Princípios básicos de Direito Penal, 5.ed., Saraiva, p.145.

 

[2] O latrocínio, por exemplo, apesar de ser um crime hediondo que atinge também a vida, encontra-se tipificado no Código Penal no capítulo dos crimes contra o patrimônio (art.157, §3º, 2ª parte), com destaque para o elemento subjetivo do tipo, razão pela qual não vem sendo considerado como da competência do tribunal do júri (Súmula 603 do STF).

 

[3] Além de se referir aos crimes fiscais previstos na Lei n. 4729/65, o art.18, §2º do DL 157/67 também determinava a extinção da punibilidade quando a imputação penal estivesse relacionada a falta de pagamento de tributo.

 

[4] “A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido estende-se ao crime de contrabando ou descaminho por força do art.18, §2º, do Decreto-lei 157/1967”.

 

[5] A doutrina considera que a expressão “pagamento de direito”, no art.334, está “no seu sentido histórico, como apelido dos antigos gravames que pesavam sobre importação (‘direitos de importação’, ‘direitos aduaneiros’ e ‘direitos alfandegários’)”. Maximiliano Roberto Ernesto Führer e Maximilianus Cláudio Américo Führer. Código Penal comentado. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.633.


 

[6] Confira-se, v.g. os julgados no HC n. 99.594 e no HC n. 94.058.

 

[7] Não fosse o descaminho essencialmente um crime contra a ordem tributária, não se poderia sequer aplicar esse vetor, já que a jurisprudência tem afastado a incidência do princípio da insignificância nos casos em que, mesmo sendo irrisório o dano patrimonial experimentado, o tipo penal busque proteger valores não patrimoniais, tais como a fé pública. Nesse sentido, v.g, o posicionamento do STF no HC n. 93251/DF.

 

[8] Crimes federais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.360.

 

[9] Registre-se que houve divergências entre os ministros do STF sobre a natureza jurídica do lançamento definitivo em relação ao crime contra ordem tributária, notadamente se seria condição objetiva de punibilidade ou elemento normativo do tipo. Do que restou consignado na ementa do HC n. 81.611-SP (relator Min. Sepúlveda Pertence), uma ou outra solução em nada alteraria o resultado ali proclamado, pois “embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 – que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo”. Não obstante, ao que parece a Súmula Vinculante n. 24, ao falar que “não se tipifica”, seguiu o entendimento de que seria elemento objetivo do tipo.

 

[10] Cite-se, por exemplo, o excelente texto de Douglas Fischer (Procurador Regional da República na 4ª Região), intitulado “A impunidade: sonegação fiscal e exaurimento da esfera administrativa – ainda sobre os problemas derivados do precedente do STF no HC nº 81.611- SP e seu confronto com o que decidido no HC nº 90.795- PE”. Disponível em: www.anpr.org.br/portal/…/Artigo_Sonegacao_DouglasFischer.doc. Acesso em maio/2010.

 

[11] O próprio Douglas Fischer, ao afirmar ser equivocado o entendimento do STF em termos de consistência lógico-sistêmica, reconhece que o debate naquele artigo é eminentemente dialético. Idem.

 

[12] Nesse caso, consideramos razoável a posição de Douglas Fischer quanto sustenta que a benesse da extinção da punibilidade pelo pagamento de tributos, prevista no artigo 9º, § 2º, da Lei 10.684, seria materialmente inconstitucional, por violação da Proibição de Proteção Deficiente (Untermaβverbot). Ib idem.

 

[13] O que é bastante discutível sob o prisma de uma adequada política criminal, porém, como dito anteriormente, não é o objeto deste ensaio.

 

[14] O art.803 do Regulamento Aduaneiro prevê três destinações para os bens confiscados, a depender do caso: 1) alienação; 2) incorporação; 3) destruição ou inutilização.

 

[15] Na referida linha de entendimento seguida pelo STF.

 

[16] “Na formalização do processo administrativo fiscal para aplicação da pena de perdimento, na representação fiscal para fins penais e para efeitos de controle patrimonial e elaboração de estatísticas, a Secretaria da Receita Federal do Brasil poderá: (…) II – aplicar a alíquota de cinqüenta por cento sobre o valor arbitrado das mercadorias apreendidas para determinar o montante correspondente à soma do imposto de importação e do imposto sobre produtos industrializados que seriam devidos na importação”.

 

[17] TRF da 1ª Região, AI 01000231438, Rel. Des. Fed. Cândido Ribeiro, 11/11/1997.

 

[18] O art.689 do Regulamento aduaneiro prevê a pena de perdimento em várias hipóteses, dentre elas quando a mercadoria estrangeira for “encontrada ao abandono, desacompanhada de prova de pagamento dos tributos aduaneiros” ou ainda quando “exposta à venda, depositada ou em circulação comercial no País, se não for feita prova de sua importação regular”.

 

[19] Conforme o art.238 do Regulamento Aduaneiro: “O fato gerador do imposto, na importação, é o desembaraço aduaneiro de produto de procedência estrangeira”. Ao lado disso, o art.571 estabelece que “desembaraço aduaneiro na importação é o ato pela qual é registrada a conclusão da conferência aduaneira”. Saliente-se ainda que, nos termos do art.570, §1º, II, a não-apresentação de documentos exigidos pela autoridade aduaneira faz com que se interrompa a conferência aduaneira, impedindo o prosseguimento do despacho aduaneiro.

 

[20] O art.250 do Regulamento Aduaneiro prevê expressamente a não incidência dessas contribuições no tocante aos bens objeto de perdimento tratados no referido art.71, III.

 

[21] Até porque um argumento nesse sentido encontraria um forte obstáculo no direito positivo brasileiro, porquanto as hipóteses de extinção do crédito tributário são aquelas taxativamente previstas em lei, ex vi do art.97, VI, do CTN.

 

[22] Manual de Direito Penal, vol. 03, Atlas, p.368.

 

[23] Curso de Direito Penal brasileiro, vol. 4, RT, 2001, p.558.

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