Marco Aurélio, 20

Marco Aurélio, um "puta" ministro

Autores

  • Alberto Zacharias Toron

    é advogado defensor de Aldemir Bendine doutor em direito pela USP professor de processo penal da Faap e autor do livro "Habeas Corpus e o Controle do Devido Processo Legal" (Revista dos Tribunais)

  • Heloisa Estellita

    é professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Econômico e da Empresa na mesma instituição.

16 de junho de 2010, 10h00

Spacca
Marco Aurélio 20 Anos no STF - Selo - Spacca

Perdões pela irreverência, mas o ministro merece. De mais a mais, todos sabem que paulistas, quando gostam de alguém, usam a expressão um puta cara. Já quando gostam de uma coisa dizem um puta carro, uma puta casa e assim vai… Ainda há pouco o genial Washington Olivetto publicou um belo artigo na Folha de S. Paulo intitulado “A puta ideia[1]. Então não há porque permitir que as amarras do formalismo protocolar (e de um falso decoro) escondam um sentimento que vigora, ao menos entre os criminalistas, há vinte anos em relação ao queridíssimo ministro Marco Aurélio.

Quando no começo do ano de 1990 se cogitou da indicação do ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, que então judicava no Tribunal Superior do Trabalho, havia uma aura de suspeita que recaia sobre o indicado, pois era primo do presidente da República. Como todos se lembram, o mandatário supremo vivia sob um forte questionamento que, no final, levou ao seu impeachment. O ponto, porém, é que, uma vez nomeado, o ministro Marco Aurélio abriu um clarão na Suprema Corte. 

Sim, é verdade que ali já estavam dois gigantes que, embora novos na Suprema Corte, também a ventilaram; falamos obviamente dos ministros Sepúlveda Pertence e Celso de Mello, dois ícones. Todavia, ao menos aos nossos olhos, o Supremo era sisudo e engessado por um formalismo assustador. Imperava, ademais, um apego à ordem do passado. Não sem razão, o ministro Pertence, ao relatar o RE 210.917-7-RJ no Pleno do STF, fez uma contundente referência ao “misoneísmo exegético ou a interpretação retrospectiva que sói atribuir-se, muitas vezes com razão, à jurisprudência constitucional que, avessa às inovações de uma Constituição, continua a decidir, na sua vigência, como se nada houvesse mudado…” (cf. item 10 do aresto). 

O ministro Marco Aurélio, que então os criminalistas mal conheciam, veio para mudar. Enfrentou resistências e preconceitos. Quebrou as primeiras e venceu os últimos. Seu nome é desses que marcam a história do Supremo Tribunal Federal não apenas pela coragem ___ os votos vencidos falam por si sós ___, mas por uma cultura garantista, que não se afrouxa diante dos que pregam o incremento repressivo, e um profundo humanismo. Em mais de uma oportunidade ele pediu vista adiantando que “o justo” já havia divisado. O mais era mera fundamentação. Daí a correção do que lemos na Revista Análise: “A sua criatividade começa quando contraria um tabu da Justiça brasileira: o de que primeiro vem a lei e depois o direito de quem reivindica. “Primeiro idealizo a solução mais justa”, declara ele. “Só depois vou buscar apoio na lei.” 

Foi ele o primeiro a votar pela inconstitucionalidade da regra da Lei dos Crimes Hediondos que impunha o cumprimento integral da pena em regime fechado (RTJ 146/611, HC 69.603, DJ 23/4/92) e também o primeiro a contestar a Súmula 691, que amesquinha o Habeas Corpus (Ag. Reg. no HC 84.014, DJ 25/06/04). Foi também o primeiro a conceder liberdade provisória a acusados da prática de tráfico e, em casos rumorosos, quando a publicidade se revela opressiva e o papel do juiz se agiganta em termos de responsabilidade. O juiz Marco Aurélio nunca fugiu das suas responsabilidades republicanas. 

E, para não irmos muito longe, é sempre bom lembrar suas palavras no julgamento do HC 83.515, no STF, quando o Pleno, em 2004, reconheceu a possibilidade de sucessivas renovações em monitoramentos telefônicos – sem antever os arbítrios que daí poderiam decorrer -, votou vencido: “Já disse neste Plenário: se como guarda da Carta da República tiver de proferir, segundo a minha consciência, sobretudo a minha formação humanística, voto que implique a queda do teto, o teto cairá, permanecendo fiel à crença inabalável, enquanto estiver com a toga sobre os ombros, no Direito posto, no Direito subordinante”.

Embora muito mais se pudesse dizer e escrever, a homenagem não estaria completa se não escrevêssemos sobre algo que representa seu profundo humanismo e respeito aos direitos fundamentais. Não se trata de um voto vencido, mas um estudo a propósito de um leading-case da maior importância na história da Suprema Corte brasileira, um verdadeiro marco: o fim da obrigatoriedade da prisão preventiva nas extradições, cujo pioneirismo lhe coube.

Prisão preventiva para extradição e sua natureza cautelar: 

Revisão da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e o novo entendimento firmado a partir do julgamento da Ext-QO 1.054 

Sumário: 1. Introdução: sobre a prisão cautelar na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal; 2. Natureza jurídica da prisão preventiva para extradição; 2.1 O entendimento do STF acerca da prisão preventiva para extradição; 2.2 Da natureza cautelar da prisão preventiva para extradição; 3. A Questão de Ordem na Extradição n. 1.054; 3.1 O caso concreto; 3.1.1 Ausência de periculum in mora; 3.1.2. Ausência de fumus boni iuris; 3.2 A decisão do Tribunal Pleno; 4. À guisa de conclusão.

1. Introdução: sobre a prisão cautelar na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal

Desde 1994, sustentava o ministro Marco Aurélio com base na nova ordem constitucional que a “Carta de 1988 jungiu a perda da liberdade a certos pressupostos, revelando, assim, que esta se constitui em verdadeira exceção. Indispensável para que ocorra é que se faça presente situação enquadrável no disposto no inciso LXI do rol das garantais constitucionais, devendo, se possuidora de contornos preventivos, residir em elementos concretos que sejam passíveis de exame e, portanto, enquadráveis no artigo 312 do Código de Processo Penal. Não há como inverter a ordem natural das coisas, tal como definida pelo ordenamento jurídico, elegendo-se a possibilidade de responder em liberdade a acusação, simples acusação, em exceção. Enquanto ciência, em direito, o meio justifica o fim, mas não este aquele, mormente quando se parte da visão distorcida sobre constituir-se a postura rigorosa em panacéia para consertar o quadro de delinqüência notado.”[2]

Alguns anos depois, a partir, pelo menos, do julgamento da Rcl 2391[3], é que o Supremo Tribunal Federal passou a expressamente rever jurisprudência anterior da Corte a respeito dos requisitos, limites e finalidade das prisões cautelares. Passou a sustentar, pela maioria de seus membros, sob a luz da presunção de inocência (ou princípio da não-culpabilidade), que a prisão anterior ao trânsito em julgado da sentença condenatória não pode ter caráter de pena e que, portanto, a prisão preventiva pressupõe hipótese de cautelaridade, sempre fundada em elementos concretos que demonstrem a necessidade dessa prisão — que é excepcional –, para o sucesso do processo penal.

Um passeio, ainda que meramente ilustrativo, pela jurisprudência da Corte nos últimos anos evidencia seu atual entendimento acerca das hipóteses, condições, requisitos e limites do uso dessa medida excepcional que tanta gravidade traz consigo.

Ressalta-se, hoje, que a “prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerte, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal”[4].

Por isso que sendo “medida cautelar, a prisão preventiva só se admite na medida em que necessária para resguardar a lisura da instrução do processo, a aplicação da lei penal, na eventualidade da condenação e, em termos, a ordem pública; e a aferição, em cada caso, da necessidade da prisão preventiva há de partir de fatos concretos, não de temores ou suposições abstratas”, sendo inidônea a “motivação da necessidade da prisão preventiva, que, despida de qualquer base empírica e concreta, busca amparar-se em juízos subjetivos de valor acerca do poder de intimidação de um dos acusados e menções difusas a antecedentes de violência, que nenhum deles se identifica”[5].


“A prisão preventiva”, nas palavras do ministro Eros Grau, “como exceção à regra da liberdade, é providência excepcionalíssima e, por isso mesmo, só deve ser decretada nas hipóteses arroladas no artigo 312 do Código de Processo Penal, conjugadas com situações reais concretamente demonstradas, a justificarem a necessidade da medida extrema de segregação da liberdade ante tempus[6].

Tratando da privação cautelar da liberdade individual como um todo, decidiu a Segunda Turma, na pena do ministro Celso de Mello, que a “privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade”. Por isso, a “prisão preventiva, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe – além da satisfação dos pressupostos a que se refere o artigo 312 do CPP (prova da existência material do crime e indício suficiente de autoria) – que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu.” Disso decorrendo que a “prisão preventiva não pode – e não deve – ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia.” E, concluindo: “A prisão preventiva – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal”[7].

Por isso, a “gravidade do crime imputado, um dos malsinados ‘crimes hediondos’ (Lei 8.072/90), não basta à justificação da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, no interesse dos interesses do desenvolvimento e do resultado do processo, e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária: não serve a prisão preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual, entretanto, ‘ninguém será considerado culpado ate o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’ (CF, artigo 5., LVII)”[8].

Esse caráter instrumental, por outro lado, carece de base concreta e factual, que demonstre a necessidade da medida. Daí “porque, desajudado ou carente de base factual, o apelo retórico a possível fuga e seu risco à aplicação da pena não podem sustentar decretação de prisão preventiva, como tenho decidido (cf. HC 86373- MC; HC 86140-MC; HC 83516-MC)”[9]. E, mais, “não é do réu o ônus de assegurá-lo previamente, mas, sim da acusação e do juízo o de demonstrar, à vista dos fatos concretos, ainda que indiciários – não de vagas suposições – haver motivos para temer a fuga às conseqüências da condenação eventual”[10].

Desse caráter excepcional advém o entendimento de que a prisão preventiva não pode ter duração ilimitada, excessiva: “A jurisprudência deste Supremo Tribunal firmou o entendimento segundo o qual o encerramento da instrução criminal afasta a alegação de excesso de prazo. Todavia, aquela inteligência haverá de ser tomada com o temperamento jurídico necessário para atender aos princípios constitucionais e infraconstitucionais, especialmente quando o caso evidencia flagrante ilegalidade decorrente do excesso de prazo não imputável ao acusado. Precedentes das Turmas”[11].

“Cabe”, assim, “ao Estado aparelhar-se objetivando a tramitação e a conclusão do processo criminal com atendimento dos prazos processuais e, portanto, em tempo razoável. Configurado o excesso, impõe-se, como conseqüência da ordem jurídica em vigor, a liberdade do acusado, até então simples acusado”[12].

A “duração prolongada e abusiva da prisão cautelar, assim entendida a demora não razoável, sem culpa do réu, nem julgamento da causa, ofende o postulado da dignidade da pessoa humana e, como tal, substancia constrangimento ilegal, ainda que se trate da imputação de crime grave”[13]. Ressaltando o relator, inistro Cezar Peluso, que esta é “a razão por que o Plenário já assentou que duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar do réu, sem julgamento da causa, ofende o postulado da dignidade da pessoa humana e, como tal, substancia constrangimento ilegal, ainda que se trate da imputação de crime grave (HC 85237-DF; Rel. ministro Celso de Mello; j. 17/03/2005. Idem, HC 85583-MG; 1ª Turma; Rel. ministro Sepúlveda Pertence; j. 09/8/2005).”

E, ainda, o “excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, artigo 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei. – A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, artigo 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência. – O indiciado ou o réu, quando configurado excesso irrazoável na duração de sua prisão cautelar, não podem permanecer expostos a tal situação de evidente abusividade, ainda que se cuide de pessoas acusadas da suposta prática de crime hediondo (Súmula 697/STF), sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável (e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal. Precedentes.”[14]

Daí que o ministro Ricardo Lewandowski, com o apoio dos demais membros da Primeira Turma, tenha afirmado que a “prisão preventiva deve ser reavaliada de tempos em tempos, tendo em vista que se modifica a condição do réu ou do indiciado no transcurso da persecutio criminis.” Sendo “inadmissível que a finalidade da custódia cautelar seja desvirtuada a ponto de configurar antecipação de pena. A gravidade do delito e a existência de prova de autoria não são suficientes para justificar a prisão preventiva”[15].

E a razoabilidade e proporcionalidade que devem cercar a medida têm impedido que a prisão cautelar perdure por mais tempo do que a pena concreta ou eventualmente imposta: “É de se considerar excessivo o lapso temporal de mais de dois anos para julgamento de recurso de apelação criminal. Notadamente quando se trata de réu preso, com parecer ministerial favorável à sua apelação e que sofre o risco de cumprir integralmente a sanção que lhe foi imposta (reclusão por 3 anos)”[16].


Esses os atuais contornos da prisão preventiva na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A questão, todavia, continua em debate no Plenário em, pelo menos, quatro feitos.

No HC 83868, sob relatoria do ministro Marco Aurélio, discute-se se a norma que determina que, em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade é inconstitucional face ao princípio constitucional da presunção de inocência. Neste caso, o Plenário, por maioria, já deferiu o pedido cautelar para que o paciente aguarde em liberdade o julgamento do habeas corpus, tendo o relator declarado inconstitucional o artigo 3º da Lei 9.613/98.

No RHC 83810, também já com voto favorável de seu relator, o ministro Joaquim Barbosa, discute-se se a apelação interposta pela Defensoria Pública em favor de réu revel não pode ser conhecida porque este não se recolheu à prisão. Já acompanharam o relator os ministros Carlos Britto, Cezar Peluso e Gilmar Mendes.

Na AO 1.034, sob relatoria do mesmo ministro, discute-se, uma vez mais, se o artigo 594 do CPP conflita com o princípio da presunção de inocência. Neste caso, o Plenário, por maioria, concedeu a cautelar ao paciente, até o julgamento final do feito, determinando sua imediata soltura, se por outro motivo não estiver preso.

Finalmente, no HC 85.961, também sob relatoria do ministro Marco Aurélio, discute-se se o artigo 595 do CPP, que prevê que se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação, foi recebido pela ordem constitucional vigente.

2. NATUREZA JURÍDICA DA PRISÃO PREVENTIVA PARA EXTRADIÇÃO

2.1 O entendimento do STF acerca da prisão preventiva para extradição
Desde a promulgação do Estatuto do Estrangeiro pela Lei n. 6.815/80, remansosa jurisprudência se formou no sentido da inexorabilidade da prisão preventiva para efeitos de extradição. É que o parágrafo único do artigo 84 deste diploma legal determina que “a prisão perdurará até o julgamento final do Supremo Tribunal Federal, não sendo admitidas a liberdade vigiada, a prisão domiciliar, nem a prisão-albergue.”

Não se pretende fazer um paralelismo absoluto entre esta modalidade de prisão preventiva e aquela prevista no artigo 312 do Código de Processo Penal, mas, tão-somente, identificar os seus elementos comuns para averiguar em quais pontos a jurisprudência da Corte sobre a prisão preventiva para extradição está a merecer revisão à luz do entendimento acima brevemente analisado.

Para isso, é preciso partir dos contornos que, atualmente, a Corte atribui à prisão preventiva para fins de extradição.

Assim, afirma a Corte que a “prisão preventiva para os efeitos da extradição não se fundamenta nos requisitos do artigo 312 do CPP. Ela é requisito indispensável ao regular desenvolvimento do processo de extradição (L. 6.815/80, artigo 84, parágrafo único).”[17]

Ainda que assim não seja, ensina o ministro Celso de Mello, “essa prisão de natureza cautelar destina-se, em sua precípua função instrumental, a assegurar a execução de eventual ordem de extradição”[18].

O mesmo ministro, em outra oportunidade, explicava, que “é por essa razão que o magistério da doutrina (Mirtô Fraga, ‘O Novo Estatuto do Estrangeiro Comentado’, p. 339, 1985, Forense) – refletindo o entendimento jurisprudencial firmado por esta Suprema Corte (RTJ 125/1037, Rel. ministro Néri da Silveira – RTJ 140/136, Rel. ministro Marco Aurélio – RTJ 149/374, Rel. ministro Celso de Mello, v.g.) – observa: A prisão do extraditando deve perdurar até o julgamento final da Corte. Não se admitem a fiança, a liberdade vigiada, a prisão domiciliar ou a prisão-albergue. A privação da liberdade, nessa fase, é essencial ao julgamento, é condição sine qua non para o próprio encaminhamento do pedido ao Supremo Tribunal. Ela não tem nenhuma relação com a maior ou menor gravidade da infração, maior ou menor periculosidade do agente; ela visa, tão-somente, possibilitar a entrega, se a extradição vier a ser deferida. Afinal de contas, existe, no estrangeiro, uma ordem de prisão (artigo 78, II) expedida contra o extraditando e há, em conseqüência, a presunção de que esteja fugindo à ação da Justiça do Estado requerente.’ (grifei).”[19]

Em caso paradigmático no qual se discutia a constitucionalidade do disposto no artigo 84, parágrafo único, da Lei 6.815/80, decidiu o Plenário daquela Corte pela sua conformidade à ordem constitucional[20]. Pedia-se ali o arbitramento de fiança ao argumento de ser direito constitucional do acusado (artigo 5º, LXVI, CF) e não estar vedado pelo parágrafo único do artigo 84 da Lei n. 6.815/80.

Já neste julgamento, como em várias ocasiões posteriores, o ministro Marco Aurélio, em tom de lamento, revelou que tentou “levantar, e descobrir, uma base para caminhar no sentido do reconhecimento do direito, mas, lastimavelmente, não a encontrei em nosso ordenamento jurídico. Continuarei a refletir sobre a espécie.” [21] Estávamos em 2001.

Mais recentemente, e no mesmo sentido, também ficou decido que conforme “remansosa jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, a prisão para fins extradicionais tem natureza cautelar. Seu objetivo é preservar a utilidade da mobilização da Justiça penal. Inexistência de relação necessária entre a custódia imposta no feito extradicional e a prisão decorrente de sentença definitiva.” [22]

Observou o relator deste Habeas, ministro Carlos Britto, que “não é de ser acolhida a alegação de que o artigo 84 da Lei 6.815/80 padece da mesma inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 8.072/90. Isso porque a prisão para fins extradicionais tem natureza cautelar, conforme visto, e visa a preservar o exercício da jurisdição penal. Em palavras outras, trata-se de custódia que tem como finalidade o acautelamento do processo e das funções da jurisdição penal, evitando-se a inutilidade da mobilização da Justiça.

Muito embora não alterada, até o recentemente julgamento da Questão de Ordem na Extradição 1.054 (cf. infra), essa orientação, a questão da inexorabilidade e inflexibilidade da prisão preventiva para extradição vinha incomodado os ministros da Corte Suprema. Assim é que em sessão plenária do dia 9 de agosto, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes tocou no assunto, ao apresentar para julgamento a Extradição 1.064,dizendo-se uma vez mais incomodado com a falta de qualquer limite para a prisão para extradição e com a violação da razoabilidade que tal medida extrema pode causar em determinadas hipóteses. Nisso foi seguido, como registra, agora, o acórdão[23], pelos ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Ricardo Lewandowski e Sepúlveda Pertence.  

Em outras oportunidades, o mesmo desconforto já tinha sido registrado por diversos outros ministros, aí incluídos os ministros Marco Aurélio, Carlos Britto e Eros Grau.

Como se chegou a mencionar naquela sessão sessão plenária de 09 de agosto, em alguns casos pode-se chegar ao absurdo de o extraditando cumprir em prisão preventiva para a extradição no Brasil a pena que poderia vir a ser aplicada no Estado requerente. Observou o ministro Celso de Mello, que “tem-se dispensado, ao extraditando, tratamento cuja severidade, em matéria de liberdade individual, a jurisprudência desta Corte não estende nem aplica às pessoas sujeitas à persecução penal em território brasileiro”[24], em aberta referência, portanto, à nova orientação acima exposta sobre a prisão cautelar. O que não passou desapercebido pelo ministro Cezar Peluso ao observar “como, de certo modo, isso é contraditório”, arrematando que “de certo modo, reservamos ao extraditando um tratamento processual muito mais grave do que aplicamos aos nacionais”[25]. “Inclusive”, complementou o ministro Ricardo Lewandowski, “antecipando a pena, em muitos casos.”[26]

Da forma ilimitada como está estabelecida esta prisão, pode até eventualmente ocorrer de o extraditando ficar mais tempo preso do que o da própria pena que lhe seria imposta no estrangeiro, acaso deferida a extradição, sem que o Supremo Tribunal Federal possa adotar qualquer medida para evitar o abuso. O que, como vimos, entra em frontal contradição com o judicioso controle que aquela Corte vem fazendo do uso da prisão preventiva, onde não se permite fique o acusado preso preventivamente por mais tempo do que a condenação, para dizer o mínimo. Mais que isso, a Corte tem repelido a prisão preventiva quando se mostre mais severa do que aquela à qual se veria submetido o acusado após o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Já se chegou a afirmar que tal prisão teria caráter administrativo, o que não parece ser o melhor entendimento. Não se pode afastar totalmente a imbricação da prisão preventiva para fins extradicionais com o jus puniendi, ainda que de outro Estado. Embora seja verdade que o provimento final de uma extradição não é de natureza condenatória ou absolutória de uma imputação criminal, não é menos verdade que a extradição só se presta para a eventual entrega de estrangeiro a Estado requerente em virtude da prática de infração penal. É o que se extrai da interpretação conjunta e a contrario sensu dos artigos 77 e 78 e do artigo 80, todos da Lei n. 6.815/80. Não é por outra razão que a lei expressamente prevê o cômputo da prisão preventiva para extradição, daquela que eventualmente tenha de cumprir o extraditando no Estado requerente (artigo 91, II, Lei n. 6.815/90).

2.2 Natureza cautelar da prisão preventiva para extradição
Salvo exceções,[27] o Supremo Tribunal Federal já afirmara que a prisão preventiva para fins de extradição tem caráter cautelar, sendo sua função “preservar o exercício da jurisdição penal”, acautelando um processo extradicional com substancial probabilidade de êxito, “evitando-se a inutilidade da mobilização da Justiça”, para utilizar as palavras do ministro Carlos Britto, acima já transcritas.

Disso decorre, logicamente, que tal prisão está fundada em dois requisitos que devem ser auferidos no caso concreto: a possibilidade de êxito do pedido extradicional (fumus boni iuris ou plausibilidade jurídica do pedido) e o perigo de fuga do extraditando (periculum in mora).

Fora desse quadro, a prisão preventiva para fins de extradição seria medida irracional, violadora do valor constitucional central que é a dignidade humana,[28] na vertente da proteção da liberdade individual, porque implicaria em constrição desnecessária de direito fundamental, em clara violação ao princípio da proporcionalidade,[29] na sua nuance de proibição do excesso.

De fato, o princípio da proporcionalidade demanda que as medidas de constrição de direitos devem ser adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito. Uma “medida é adequada se o meio escolhido está apto a alcançar o resultado desejado”[30]; é necessária se, “dentre todas as disponíveis e igualmente eficazes para atingir um fim, é a menos gravosa em relação aos direitos dos sujeitos envolvidos”; e, é proporcional “se, relativamente ao fim perseguido, não restringir excessivamente os direitos dos envolvidos”.[31]

O primeiro deles, a possibilidade de êxito do pedido extradicional (fumus boni iuris ou plausibilidade jurídica do pedido), deve ser avaliado em função dos próprios pressupostos e condições estabelecidas nos artigos 76, 77, 78, 80 e 82 da Lei 6.815/80, diante dos quais, não se configurando algum deles, quer concomitantemente ao pedido, quer posteriormente, não deve ser decretada ou, no segundo caso, mantida a prisão cautelar.

Assim, por exemplo, na ausência de tratado ou promessa de reciprocidade (artigo 76), em se tratando de brasileiro (artigo 77, I), quando o fato não considerado crime no Brasil (artigo 77, II), tiver ocorrido a extinção da punibilidade pela prescrição (artigo 77, VI), em caso de inexistência de cópia autêntica ou certidão da sentença condenatória, da de pronúncia ou da que decretar a prisão preventiva (artigo 80, caput, salvo o disposto no artigo 82), não deve sequer ser decretada a prisão preventiva por ausência de pressupostos legais.

Outros pressupostos, todavia, podem dar causa à ausência superveniente dos pressupostos da preventiva como, por exemplo, quando o extraditando logra provar que responde a processo no Brasil pelo mesmo fato (artigo 77, V), que o fato constitui crime político (artigo 77, VII) ou, ainda, quando a falha de instrução do pedido não é suprida no prazo do artigo 85, § 2º, ou no prazo que prever o respectivo tratado de extradição. Evidentemente que alguns desses pressupostos, ou mesmo a maioria deles, será objeto da decisão final do pedido extradicional, todavia, se demonstrados durante o curso do processo, podem fulminar o juízo sobre a possibilidade de êxito do pedido extradicional enfraquecendo-o em grau tal que não mais se justifique a prisão preventiva. Foi justamente o que aconteceu na Extradição 1.054, como veremos a seguir.

O segundo, o perigo de fuga do extraditando (periculum in mora), embora não encontre parâmetros claros na Lei de regência, decorre de situações concretas que indiquem a probabilidade de fuga, e, assim, de frustração da tutela jurisdicional do processo de extradição. Como costuma suceder, como bem lembrou o ministro Celso de Mello na decisão monocrática acima citada, quando o extraditando fugiu do Estado requerente justamente para evitar submeter-se a provimento jurisdicional penal ali proclamado.

À luz destas considerações, todas extraídas de precedentes da própria Corte, e do atual entendimento sobre os pressupostos, requisitos e finalidade das prisões cautelares, parecia ser tempo de o Supremo Tribunal Federal rever os pressupostos, requisitos e limites da prisão preventiva para extradição, para melhor afiná-lo com o entendimento hoje predominante na Corte acerca dos valores, direitos e princípios constitucionais que estão em jogo na matéria. Isso veio a ocorrer no julgamento da Questão de Ordem na Extradição 1.054 pelo Plenário, em 29 de agosto de 2007. 

3. A QUESTÃO DE ORDEM NA EXTRADIÇÃO 1.054 

Como acentuou o relator da Extradição 1.054, ministro Marco Aurélio, ao apresentar Questão de Ordem ao Plenário da Corte, na qual se pedia a revogação da prisão preventiva do extraditando, circunstâncias particulares cercavam o caso concreto. Não obstante, na sessão de julgamento na qual o Tribunal Pleno decidiu a matéria, ficou claro que a prisão preventiva para extradição foi apreciada também sob as luzes da necessidade da cautela, em consonância com a orientação mais recente da Corte acerca da prisão preventiva em geral, acima já discutida. Como veremos, o julgamento, pioneiro por si só e mais um marco na consagração dos direitos fundamentais pela Suprema Corte, parecer ter dado início a um novo entendimento jurisprudencial acerca dos contornos dessa modalidade de prisão preventiva.

3.1 O caso concreto
3.1.1 Ausência de periculum in mora
No caso concreto, sustentou-se que a prisão preventiva do extraditando era desnecessária como acauteladora do processo extradicional. Isto porque se tratava de cidadão estrangeiro que morava há mais de quarenta anos no Brasil, aqui tendo se casado, tido filhos e netos, encontrando-se profissionalmente estabelecido desde então. O extraditando, como acontece comumente com inúmeros estrangeiros residentes no Brasil, resolvera não se naturalizar porque, tendo visto permanente no Brasil, optara por manter também a cidadania natal, dado que em seu país de origem não se aceita a dupla cidadania.

Dado importante para a solução alcançada na referida Questão de Ordem, foi o fato de o extraditando não ter se furtado à Justiça do Estado Requerente. Na verdade, o extraditando só tomou ciência de que havia um processo contra si nos Estados Unidos da América quando foi preso preventivamente para a própria Extradição aqui no Brasil. Isto porque a acusação lá deduzida foi pela prática do crime de conspiracy, que teria sido praticada em território brasileiro.

A par disso, trata-se de extradição instrutória, ou seja, não está formada a culpa do extraditando. A finalidade da medida seria, justamente, a de instruir o processo penal instaurado no estrangeiro. Como vimos, o próprio Supremo Tribunal Federal não admite que a prisão cautelar tenha finalidade de antecipar a punição, ou que se transforme em regra o que é a exceção, submetendo à prisão pessoas sujeitas a mera acusação, precária por sua própria natureza[32].

3.1.2. Ausência de fumus boni iuris
Outra peculiaridade analisada pela Corte no caso concreto dizia respeito à não configuração da “probabilidade de êxito do pedido extradicional”, ou seja, do fumus boni iuris. É que ali houve solicitação pelo ministro relator de complementação de documentos. Instado por três vezes a instruir o feito em conformidade com tal determinação, quedou-se silente o Estado requerente. O feito ficou, assim, aguardando as informações por mais de sete meses. Quando a Questão de Ordem foi apreciada pelo Plenário, já tinha sido expedido o quarto ofício solicitando informações.

Em casos análogos, diversos pleitos extradicionais foram indeferidos.    

Caso muito semelhante foi o relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence e no qual ficou decidido que “a correta instrução dos autos é ônus do requerente”, sendo que “essa instrução, que há de ser feita no ato de formalização do pedido de extradição, pode, excepcionalmente, ser complementada em momento posterior”, mas, “dessa excepcional possibilidade eventualmente conferida ao Estado requerente, contudo, não pode resultar uma dilação excessiva da prisão, que se mantém até a decisão final do processo (RISTF, artigo 213)” (Ext. 1.056, Pleno, DJ 25/05/2007). A seguir, ponderou o ministro relator, que, no caso, a prisão preventiva do extraditando tinha sido efetivada em 12 de junho de 2006 e que, assim, “quando do segundo pedido de diligências (…), portanto, o extraditando já se encontrava preso por quase 9 meses, sem que tenha dado causa a qualquer demora.” “Daí que”, continua o ministro, “evidenciada a desídia por parte do Estado requerente, me pareceu abusivo o deferimento de novas diligências.” E, assim, foi indeferido o pedido de extradição pelo Plenário da Corte.

Em maio de 2007, o ministro Celso de Mello deparou-se com situação de análoga desídia por parte do Estado requerente na Extradição 1.057 e, em decisão monocrática, indeferiu o processamento do pedido. Naquele caso, a extraditanda alegara que já teria cumprido pena referente ao delito pelo qual se pedia sua extradição. Instado a esclarecer os fatos, por duas vezes quedou-se silente o Estado requerente. Daí a decisão do e. ministro no sentido de que “constitui obrigação do Estado requerente produzir, nos autos do processo extradicional, todas as informações e documentos aptos a comprovar os requisitos necessários ao deferimento, por esta Suprema Corte, do pedido de extradição.”[33] 

 O ministro Cezar Peluso também se deparou com a mesma situação e levou o feito a Plenário, em questão de ordem, que foi acolhida por unanimidade na Extradição 1.036 indeferindo-se o pedido. Também o ministro Gilmar Mendes quando levou a Extradição 988 em Questão de Ordem ao Plenário, votando no sentido de indeferi-la em virtude de ter sido o “pedido insuficientemente instruído” e de a “determinação de diligências ao Estado requerente, não [terem sido] satisfeitas adequadamente”, no que foi acompanhado à unanimidade pelo Tribunal Pleno[34].

 No caso concreto, ainda, tratando-se de extradição requerida pelos Estados Unidos da América, disposição do Tratado de Extradição – que, como se sabe, prevalece sobre as normas da Lei n. 6.815/80 –, prevê, em seu artigo XII, que o Extraditando seja colocado em liberdade quando o pedido não venha adequadamente instruído.

O extraditando encontrava-se preso há quinze meses à disposição da Suprema Corte e em caso bastante similar, em que a relutância do Estado requerente extrapolava o limite da razoabilidade, deferiu o ministro Marco Aurélio o HC 83.326para permitir ao extraditando aguardar o julgamento em prisão domiciliar. Naquela oportunidade, é verdade, os demais ministros concederam a ordem em menor extensão, mas desde então se notava claramente a preocupação do Tribunal Pleno com os excessos dessa prisão cautelar e com a necessidade de adaptá-la à nova ordem constitucional inaugurada em 1988 [35].

Finalmente, bom ter em mente que a Lei 6.815/80 permite uma só oportunidade de complementação dos documentos dos autos: “Não estando o processo devidamente instruído, o Tribunal, a requerimento do Procurador-Geral da República, poderá converter o julgamento em diligência para suprir a falta no prazo improrrogável de 60 (sessenta) dias, decorridos os quais o pedido será julgado independentemente da diligência” (artigo 85, § 2º).

No caso concreto, assim houve o desaparecimento do fumus boni iuris que porventura tivesse respaldado a prisão preventiva. Causa ulterior à formulação do pedido extradicional (a omissão do Estado requerente) acabou por subtrair-lhe a possibilidade de êxito ou sua plausibilidade jurídica do pedido, já que no processo extradicional a instrução insuficiente do feito ou o não atendimento a diligências é causa legal de indeferimento do pleito, e, assim, as omissões já praticadas pelo Estado requerente, no caso, estavam a indicar a probabilidade de que a Extradição viesse a ser indeferida. Indicação que, inclusive, acabou se refletindo no voto dos ministros Cezar Peluso, Celso de Mello e Eros Grau que na própria questão de ordem entenderam ser o caso de já indeferir a própria extradição.                                                              

3.2. A decisão do Tribunal Pleno
Até a data de conclusão deste artigo, o acórdão da Ext-QO 1.054não havia sido publicado, mas o julgamento foi noticiado no Informativo 477 da Corte, o qual destacou que, consideradas as peculiaridades do caso, “o preceito da Lei 6.815/80 — que estabelece a permanência da prisão do extraditando até a apreciação final do pedido — não poderia ser levado às últimas conseqüências, merecendo interpretação consentânea com o arcabouço normativo constitucional, com a premissa de que, sendo a prisão preventiva exceção, ela deve ter limite temporal”; reconhecendo-se, ainda, “o excesso de prazo da custódia do extraditando, por culpa do Governo requerente”.

Por isso, em decisão sem precedentes na Corte, “ordenou-se a expedição do alvará de soltura em seu favor [do extraditando], a ser cumprido com as seguintes cautelas: a) o depósito do passaporte do extraditando no STF; b) a advertência ao extraditando, na presença dos profissionais da advocacia que o assistem, da impossibilidade de, sem autorização desta Corte, deixar o Estado de São Paulo, o domicílio que tem no referido Estado; c) a obrigação de atender aos chamamentos judiciais, embora, na hipótese, já tenha havido a instrução do processo em termos de apresentação de defesa e interrogatório; d) o registro da valia deste ato, no que o Poder Judiciário credita-lhe confiança a ponto de mantê-lo em liberdade ante o pedido de extradição” (Informativo STF/477).

4. À GUISA DE CONCLUSÃO

A decisão tomada pelo Plenário pouco mais de dez dias depois bem demonstra a importância do precedente fixado na Ext-QO 1.054 e serve-nos como capítulo conclusivo do presente artigo.

Em 13 de setembro, o Plenário, aqui por maioria, deferiu o HC 91.657, relator o ministro Gilmar Mendes, permitindo a outro extraditando que aguardasse solto ao julgamento final da extradição contra si deduzida naquela Casa. Foram-lhe impostas as mesmas condições fixadas naExt-QO 1.054. Não acolhidas algumas das questões colocadas pelo paciente, discutiu-se no Plenário a questão da desnecessidade da prisão preventiva. Uma vez mais, o ministro relator e os ministros Celso de Mello, Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Cezar Peluso sustentaram a necessidade de rediscussão, pelo Tribunal, do instituto da prisão preventiva para fins de extradição.

A ordem acabou sendo concedida com base nas ponderações do ministro Gilmar Mendes que “lembrou que a jurisprudência do STF é no sentido da prisão preventiva até o fim do julgamento dos pedidos de extradição, para garantir a entrega do extraditando ao Estado requerente. Mas observou que, freqüentemente, há grande demora na instrução desses processos. Com isso, segundo ele, o Estado brasileiro acaba, muitas vezes, sendo mais rigoroso com os cidadãos estrangeiros do que com os próprios brasileiros, considerando o que preconiza o Código de Processo Penal para a prisão preventiva.” E, ainda, “lembrou, a propósito, que a Constituição brasileira, em seu artigo 5º, ao dispor sobre os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, não exclui os estrangeiros dessas disposições. Ele invocou, também, o Pacto de São José, que trata da punição dos países que desrespeitam os direitos humanos, lembrando que o Brasil é um dos seus signatários. Ressaltando este argumento, o ministro Carlos Ayres Britto disse que os direitos e garantias fundamentais expressos no artigo 5º da CF não excluem outros direitos, nem aqueles contidos em tratados internacionais de que o Brasil é signatário.”[36]

Muito embora a divergência dos ministros Menezes Direito e Marco Aurélio neste julgamento, pode-se afirmar sem receio que o Supremo Tribunal Federal iniciou uma nova trilha na revisão dos contornos e limites da prisão preventiva para extradição, a única forma de prisão cautelar que ainda escapava dos cânones constitucionais impostos pela própria Corte às demais formas de prisão cautelar, e assim, mais uma vez, cumpriu com singular brilho a sua função de guardião da Constituição.


[1] Tendências e Debates, p. A3, de 6/jun/2010.

[2] HC 71.361, Min. Marco Aurélio, Segunda Turma, DJ 23/09/1994.

[3][3] A Reclamação não alcançou julgamento final em virtude da perda de objeto. Todavia, diversos Ministros apresentaram preciosos votos no decorrer do julgamento, votos estes que somente virão a público quando o acórdão for publicado.

[4] HC 79.857, Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJ 04/05/2001.

[5] RHC 83.179, Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ 22/08/2003.

[6] HC 86.620, Min. Eros Grau, Primeira Turma, DJ 17/02/2006.[7] HC 89501, Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJ 16/3/2007, grifos do original.

[8] RHC 68.631, Min. Sepúlveda Pertence, RTJ 137/287. No mesmo sentido, cf. HC 69.950, Min. Francisco Rezek, RTJ 128/147; HC 79.204, Min. SEPÚLVEDA PERTENCE; HC 84.884 , Rel. Min. Sepúlveda Pertence; HC 85.036 , Min. Eros Grau; HC 85.900, Min. Sepúlveda Pertence; HC 84.797-MC, Min. Cezar Peluso.

[9] HC 87.343-MC, Min. Cezar Peluso, DJ 01/02/2006.

[10] HC 81.148, Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ 19/10/01; grifo do original.

[11] HC 87.913, Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJ 07/12/2006.

[12] HC 86.104, Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, DJ 23/03/2007.

[13] HC 84.931, Min. Cezar Peluso, Primeira Turma, DJ 16/12/2005.

[14] HC 85.237, Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 29/04/2005.

[15] HC 90.464, Min. Ricardo Lewandowski. DJ 04/05/2007.

[16] QO-MC-HC 84.539, Min. Carlos Britto, Primeira Turma, DJ 18/02/2005.

[17] Ext 820, Min. Nelson Jobim, DJ de 03/05/02. Confira-se, ainda, HC 82.920, Min. Carlos Velloso, DJ 01/08/03; HC 82.847, Min. Carlos Velloso, DJ01/08/03; HC 81.809, Min. Carlos Velloso, DJ de 14/06/02.  Do levantamento feito pelo Setor de Jurisprudência do STF e publicado no sítio www.stf.gov.br.

[18] Ext 579-QO, Rel. Min. Celso de Mello, DJ10/09/93.

[19] Ext 890, Min. Celso de Mello, decisão monocrática, DJ 29/08/03.

[20] Ext 785-QO, Min. Néri da Silveira, DJ 05/10/01. No mesmo sentido: Ag. Reg. na Extradição 966, Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ 10/08/2006.

[21] Cf. fl. 209.

[22] HC 88.455, Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, DJ 25/08/06.

[23] Embora o julgamento tenha sido no dia 9 de agosto de 2007, o acórdão foi recentemente publicado em 14 de setembro.

[24] Ext 1.064, Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJ 14/09/07, fls. 63/64, grifos do original.

[25] Fl. 64.

[26] Fl. 64.

[27] Cf. supra.

[28] Sobre a centralidade desse postulado em nossa ordem constitucional vide, por todos, HC 82.959, Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJ 01/09/06.

[29] Inúmeros os arestos aplicando o princípio da proporcionalidade nas mais variadas searas, v.g., ADI 1.976, Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJ 18/05/07; HC 89.429, Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, 02/02/07; HC 86.384, Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJ 03/02/05; HC 86.424, rel. p/ac. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJ 27/10/06; RMS 24.901, Min. Carlos Britto, Primeira Turma, DJ 11/02/05; ADI-MC 1.910, Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ 27/02/04; RE 175.161, Min. Marco Aurélio, Segunda Turma, DJ 14/05/99; HC 77.003, Min. Marco Aurélio, Segunda Turma, DJ 11/09/98.

[30] AVILA, Humberto Bergman. Repensando o “princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”. Em SARLET, Ingo Wolfgang (org.). O direito público em tempos de crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 113.

[31] Id. Ibid., p. 114.

[32] Acaso se tratasse de extradição executória, onde há culpa formada, outras questões poderão vir a desafiar a Corte, como a de uma eventual maior severidade da prisão preventiva extradicional quando comparada à própria pena imposta no estrangeiro ao extraditando, por exemplo.

[33] DJU 28/05/2007, grifos do original.

[34] DJU 9/06/2007.

[35] HC 83.326, Min. Marco Aurélio, rel. p/acórdão Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ 01/10/04.

[36] Disponível em http://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=71155. Acesso em 23/09/07.

 

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