Função constitucional

"Verba paga a dativos deveria ir para a Defensoria"

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24 de junho de 2012, 6h37

Daniella Cembranelli - Spacca [Spacca]Spacca" data-GUID="daniella-cembranelli-spacca.png">São Paulo é um estado superlativo. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou, em 2010, 41,2 milhões de pessoas distribuídas em 645 municípios. É, de longe, o estado mais populoso do Brasil. Só a capital tem 11,3 milhões de habitantes. Os números se refletem no Judiciário. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, São Paulo tem 3.207 magistrados, entre juízes e desembargadores. Dos 17,7 milhões de casos novos que chegaram à Justiça estadual em 2010, segundo o relatório Justiça em Números do CNJ, São Paulo respondeu por 5,2 milhões. Dos 47,9 milhões de processos pendentes, 16,4 milhões são paulistas. Não por acaso, o estado tem a maior população carcerária do país. Das 514,6 mil pessoas presas em 2011, 180 mil estavam em São Paulo, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça. Dos presos, 57,8 mil são provisórios e 93,2 mil estão em regime fechado. As cifras impressionam e assoberbam de trabalho os poucos defensores que trabalham exclusivamente em varas de execução criminal, as VECs. Segundo informações da Defensoria Pública do estado, apenas 47 defensores são destacados para a função.

Recentemente reconduzida ao cargo de defensora-chefe do estado, Daniela Sollberger Cembranelli conhece como poucos o tramanho do problema. Calcula que sejam necessários, no mínimo, 1,5 mil defensores a mais para enfrentar essa situação. Em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico, mencionou o Plano Plurianual de 2007, quando José Serra (PSDB) foi eleito governador do estado. A proposta era que fossem criados cem cargos de defensor por ano. Mas, segundo ela, durante o último governo, foram criados apenas cem cargos. “Crescemos cem cargos em quatro anos”, lamenta.

O Mutirão Carcerário do CNJ em São Paulo, concluído recentemente, ao analisar 76 mil processos de presos em regime fechado, concedeu 8,7 mil benefícios aos detentos, ignorados até então por falta de acompanhamento pelas autoridades que coordenam a execução penal. Os mais concedidos foram a progressão para o regime semiaberto, dado a 5,9 mil presos, e o livramento condicional, dado a 1,9 mil apenados — medidas que alteram diretamente o quadro de superlotação de presídios.

A situação pode ser vista como uma amostra da necessidade de o estado ter uma Defensoria Pública mais pujante. Mais defensores poderiam auxiliar no controle de cumprimento de penas. No entanto, dos 645 municípios de São Paulo, a Defensoria está em apenas 29. Nos demais, os presos contam com advogados dativos. Para um público-alvo de 28,7 milhões de pessoas, há apenas 500 defensores, segundo cálculos do Ministério da Justiça. O resultado é uma incrível média de 57,4 mil pessoas para cada defensor.

Essa fotografia está prestes a mudar. No último dia 12 de junho, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) encaminhou à Assembleia Legislativa paulista duas importantes propostas: uma cria 400 cargos de defensor público; outra, traz o texto da nova Lei Orgânica da Defensoria Paulista. O presente vem logo após o Dia Nacional da Defensoria Pública, comemorado em 19 de maio, e quase dobra a força de trabalho do órgão. Para Daniela, é um "momento histórico". "Quem ganha não é a Defensoria Pública, mas a população carente de São Paulo", comentou.

Os projetos ajudam, mas não resolvem. Segundo a chefe da Defensoria, ainda falta verba. Dos R$ 500 milhões do orçamento anual da Defensoria, em média R$ 300 milhões vão para os advogados dativos. “Por que não investir na própria instituição da Defensoria Pública?”, questiona. “Para empregar recursos públicos tem de ser pelo modelo que a Constituição estabeleceu.” 

Também participaram da entrevista os jornalistas Alessandro Cristo e Carlos Arthur França.

Leia a entrevista:

ConJur — O Brasil é um país de advogados. É possível que ainda haja quem não consiga ter acesso à Justiça?
Daniela Cembranelli — O Brasil ainda é um país profundamente desigual, lamentavelmente. Temos uma Constituição absolutamente rica em direitos fundamentais básicos a todo ser humano, mas há pessoas ainda em situações de alta vulnerabilidade, que não exercem seus direitos. De maneira interessante, a Defensoria é uma instituição que existe para um dia não existir mais. Mas a demanda ainda é muito alta.

ConJur — Com tanta demanda e tantos advogados precisando trabalhar, é razoável que a Defensoria mantenha o monopólio da assistência aos pobres?
Daniela Cembranelli — Sim, porque o acesso à Justiça deve ser feito por um órgão público. Temos, por exemplo, na área criminal, um órgão público investido de poderes para acusar, o Ministério Público. É natural que se tenha também um órgão público com poderes para fazer frente a isso. É o Estado acusador e o Estado defensor. É uma forma de superar a desigualdade, tratar estratégias e mecanismos em prol da igualdade. E na área civil, é uma forma de garantir o exercício de direitos.

ConJur — O advogado não teria condições de exercer esse papel?
Daniela Cembranelli — A Defensoria, como desenha a Constituição, é instituição. O defensor público não se limita a uma atuação processual. Ele tem atribuição legal de, antes do processo, priorizar a conciliação e a mediação. Isso está na Lei Complementar 80, de 1994, que é a Lei Nacional da Defensoria Pública. Já é um diferencial. O defensor tem a ideia inicial de que não vai ajuizar uma ação, mas de que vai conseguir pacificar aquele conflito de outra maneira. Outro diferencial é a dedicação exclusiva, integral. O defensor tem que acordar e dormir pensando em Defensoria Pública.

ConJur — O defensor é treinado para conciliação?
Daniela Cembranelli — Sim, por meio de curso de capacitação promovida pela escola da Defensoria, que é outro diferencial. Temos escolas pensando em capacitar pessoas para esse trabalho. Temos também um quadro de apoio com servidores da área de assistência social e psicologia para isso, fundamentalmente para fazer conciliação. Em 2011, promovemos cerca de 12 mil mediações e conciliações, além de 5 mil questionamentos à rede pública de serviços. Isso é um diferencial fantástico, que também tem o papel de renovar, de pacificar e de evitar judicializações. A Lei da Defensoria determina também que o defensor público faça trabalhos de educação em direitos. Ele precisa fomentar a cidadania, que é levar educação e direito à população pobre. Os defensores dão palestras, vão à periferia. A gente tem um curso de defensores populares: a população vai à Defensoria durante um ano, e ela ganha um curso que nós fazemos, com defensores públicos dando aulas, além de juízes e promotores que são convidados. E vão lá lideranças populares, aprender seus direitos. Você fomenta a cidadania e difunde o exercício de direito, o conhecimento sobre direito. Há aulas de todas as matérias. Eles vão conhecer o direito à moradia, à saúde, se devem abrir a porta para a Polícia entrar, ou se devem ver o mandado antes.

ConJur — Esses cursos têm muita procura?
Daniela Cembranelli — Hoje temos turmas de cerca de cem alunos. Além disso, vamos a escolas públicas, fazemos palestras nas periferias e nas comunidades carentes. Atuamos nos Centros de Integração e Cidadania da Secretaria estadual da Justiça. Todo CIC tem defensores públicos fazendo justamente esse trabalho. Esse é um papel importante de transformação da sociedade. 

ConJur — Não é mais urgente libertar os presos injustamente do que conscientizar a população?
Daniela Cembranelli — Evidentemente, essas atividades não tomam todo o dia do defensor. Muitas das nossas ações de cidadania são feitas nos fins de semana. É claro que você não tira o defensor de sua atuação para fazer esse serviço. Eventualmente, fazemos mutirões. Mas essa é uma discussão que temos dentro da carreira. Alguns colegas acham que temos de nos dedicar mais a esse trabalho de conscientização, mas ponderamos justamente que somos poucos. Não conseguimos cumprir todo o rol de atribuições que a lei nos dá. Temos de estar em todos os presídios, em todas as unidades de internação, por exemplo. É lógico que, com 500 defensores, isso não é possível. Então, temos de selecionar prioridades.

ConJur — Os advogados dativos não ajudariam a resolver esse problema?
Daniela Cembranelli — O que foi pensado pela Constituição foi a atuação da Defensoria. Então, o foco deve ser o aumento dos nossos quadros. A opção de advocacia dativa paga pelo Estado não existe. Não somos contra, por exemplo, a advocacia pro bono. Ninguém defende reserva de mercado da Defensoria Pública para lidar com assistência jurídica. Muito pelo contrário. Somos favoráveis à advocacia pro bono. O advogado privado tem o seu espaço importantíssimo para o acesso à Justiça. Mas com recursos públicos? Essa é a questão. Se existe o recurso público, por que não investi-lo na instituição que foi idealizada pelo constituinte? Na Defensoria de São Paulo, por exemplo, se pagamos R$ 300 milhões para o convênio da OAB, por que não investir R$ 300 milhões na própria instituição?

ConJur — Há exemplos no exterior de defensorias que conseguem dar conta, sozinhas, do atendimento à população?
Daniela Cembranelli — Não precisa ir tão longe. Aqui no Brasil, no Rio de Janeiro, não existe convênio com a OAB, existem apenas os defensores públicos atuando no estado inteiro. Lá, o número é maior que o de promotores e juízes. 

ConJur — Em muitos presídios há defensores de plantão. Por que eles não conseguem identificar condenados que já cumpriram pena e deveriam estar em casa, e presos provisórios encarcerados por tempo excessivo, que os mutirões do CNJ sempre encontram?
Daniela Cembranelli — Onde tem defensor, certamente isso está sendo feito. Onde não tem defensor, existe esse problema. Hoje, advogados conveniados com a Defensoria ainda fazem esse atendimento, mas não deveria ser assim. A Fundação de Amparo ao Preso [Funap] foi idealizada para oferecer uma atuação próxima ao preso e não para atuar em execução. Então, tem que ter defensor público. Onde tem Defensoria, certamente não vai haver processo nessas condições, eu garanto. A menos que o juiz não tenha concedido o benefício que o defensor pediu. Mas onde tem Defensoria, tem pedido de benefício no prazo, não tem gente presa por tempo demais.

ConJur — Um defensor consegue dar conta de todos os presos de um presídio? Como isso funciona?
Daniela Cembranelli — Não é por presídio. É por vara de execução criminal. Mas falta defensor público. É necessário que haja defensores em cada presídio do estado, em cada vara de execução criminal. Essa é a minha vontade. Minha ideia com a criação dos novos cargos é colocar defensor público em todas as varas de execução criminal de São Paulo.

ConJur — Embora a lei preveja a possibilidade de a Defensoria Pública ajuizar ações civis públicas, esse não é um papel mais adequado ao Ministério Público, haja vista a grande quantidade de trabalho que os defensores têm para dar conta principalmente em casos individuais?
Daniela Cembranelli — Temos de fazer as duas coisas. Se o Ministério Público fizer, e deve fazer, e atua muito bem quando o faz, não há problema algum. Mas a Defensoria é procurada por comunidades pobres, em alto grau de vulnerabilidade, e não vai deixar de prestar esse atendimento. Não tem de priorizar nem um, nem outro. É claro que estamos entre a cruz e a espada. Com pouca gente, não há o que fazer. O que o defensor tem de fazer é atender à demanda que chega. Se chegar uma demanda nesse sentido, de pessoas em situações de risco que vão ser desalojadas, e não houver atuação do Ministério Público, a Defensoria vai tomar a frente. Se puder trabalhar junto com o Ministério Público, tanto melhor. E já há locais onde o Ministério Público e a Defensoria ajuízam conjuntamente ações civis públicas.

ConJur — Qual é o balanço dos últimos anos no comando da Defensoria Pública de São Paulo?
Daniela Cembranelli — Nesses últimos dois anos houve avanços importantes. Uma meta que eu queria cumprir, e que também está para os próximos dois anos, é um investimento na área de conciliação e mediação. É notório que o Judiciário precisa ser desafogado. Saídas como essas não só desafogam o Judiciário, mas também mudam uma cultura. Conseguimos abrir um centro de conciliação em cada regional da Defensoria Pública. Estamos em 29 cidades. Em cada local, temos um centro de conciliação formado por defensores públicos, assistente social e psicólogo. Em 2011, foram 12.976 conciliações feitas na área cível, e um total de cerca de 1 milhão de atendimentos. Hoje, antes de uma demanda ser ajuizada, passa por esse pequeno centro. Praticamente todas as demandas são submetidas a esse processo, mas é claro que estamos falando da área civil e, basicamente, de família. Casos de família são o grande volume da Defensoria Pública, respondendo por 50% da nossa atuação. A outra metade é dividida entre criminal, execução criminal, infância e juventude e consumidor.

ConJur — O que tem sido feito para ampliar a interiorização?
Daniela Cembranelli — Em São Paulo, há apenas 29 cidades com Defensoria Pública. Não existe projeto de expansão, porque nossa lei estabelece que, quando se vai abrir uma unidade para a Defensoria, deve-se prestigiar o local onde há maior adensamento populacional e IDH mais baixo. Hoje, a Defensoria está atingindo cidades de cerca de 300 mil habitantes. Para cidades com menos habitantes, ainda não é possível, porque temos de fazer opções. 

ConJur — Quantos defensores há em São Paulo?
Daniela Cembranelli — São 500. Tínhamos um plano de crescimento de cem cargos ao ano, que estava no Plano Plurianual. Na gestão José Serra, só conseguimos cem cargos. Foram apenas cem cargos em quatro anos. 

ConJur — Em quanto a situação é resolvida com o projeto de lei que cria 400 cargos de defensor, enviado pelo governador Geraldo Alckmin à Alesp?
Daniela Cembranelli — Trata-se de um momento histórico para a Defensoria Pública no estado. É um passo fundamental para que a Defensoria avance em sua meta de estar presente em todas as comarcas. Onde há um juiz e um promotor de Justiça trabalhando, deve também haver um defensor público para representar os interesses das pessoas que não possuem condições para contratar os serviços de um advogado ou que se encontrem em grave situação de vulnerabilidade. Gradativamente, superaremos o atual quadro, que ainda enseja grandes distorções. A Instituição caminha para ter o tamanho de nosso estado. Quem ganha não é a Defensoria Pública, mas apopulação carente de São Paulo.

ConJur — Qual o investimento anual feito na Defensoria?
Daniela Cembranelli — A Defensoria tem um orçamento de quase R$ 500 milhões. São R$ 170 milhões praticamente só com a estrutura da Defensoria, e R$ 300 milhões com o pagamento do convênio da OAB. O orçamento é composto de duas fontes: Fundo de Assistência Judiciária e Tesouro do estado. A maior parte vem do Fundo de Assistência Judiciária, já que o Tesouro responde por apenas R$ 50 milhões. O fundo é composto por taxas extrajudiciais, provenientes dos cartórios. Uma parte disso vai para o estado, que repassa uma outra parte para a Defensoria. Antes de existir a Defensoria, fundada em 2006, essas taxas existiam apenas para o pagamento de advogados dativos. Hoje, esse fundo é destinado ao pagamento de vários convênios, inclusive com a OAB, e também para o custeio da Defensoria. Mas a parte que vem do estado é insuficiente para arcar com todos os custos da instituição.

ConJur — Há uma discussão pulsante sobre a necessidade de inscrição de defensores na OAB. Qual é a sua avaliação?
Daniela Cembranelli — É o que diz a Lei Complementar 80/1994, recém alterada pela Lei Complementar 132. A Lei 132 acabou clareando aquilo que já pensávamos. Ela diz que a capacidade postulatória do defensor público decorre exclusivamente da sua investidura no cargo. É ser defensor público que o habilita a peticionar em juízo. Os defensores entenderam que não precisam estar vinculados à OAB e pagar uma mensalidade porque já estão habilitados a peticionar, a falar no processo. A questão não é ser ou não advogado, mas que não é preciso estar vinculado a uma entidade de classe para ter capacidade postulatória. Alguns desembargadores receberam um comunicado da OAB-SP dizendo que esses defensores, que se desvincularam da Ordem, não podiam atuar nos processos. O que eu, como defensora-geral, fiz foi dizer que essa questão deve ser discutida judicialmente, mas que indicaria outro defensor para atuar nos casos específicos. Resguardei, no primeiro momento, qualquer risco de prejuízo. No segundo momento, ajuizei um Mandado de Segurança. Defendo que a lei está em vigor. Se ela é constitucional ou não, é o Supremo quem vai dizer. Tanto ela está em vigor que a OAB se movimentou para impetrar com uma ADI no Supremo. 

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