Acesso à justiça

Reestruturação da Defensoria é urgente

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27 de janeiro de 2010, 7h49

O presente artigo tem por objetivo principal explicitar a natureza de direito e garantia fundamental e o caráter de serviço público essencial da assistência jurídica integral e gratuita devida pelo Estado aos necessitados. Parte-se do princípio, a propósito, de que o grau de desenvolvimento de uma sociedade não pode ser medido unicamente com base em critérios de cunho econômico, tais como os resultados de sua política macroeconômica e a possibilidade de se usufruir determinadas tecnologias e bens de consumo.

Com efeito, tem-se por assente, para bem avaliar o nível de evolução de uma nação, a exigência de se considerar, também, o nível de democracia real existente nas estruturas estatais, inclusive, daquelas organizadas em torno do Poder Judiciário, bem como a qualidade dos meios de que o povo dispõe para ter acesso à Justiça.

O desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais pode ser considerado uma das mais importantes contribuições propiciadas pelo constitucionalismo no período iniciado depois da Segunda Guerra Mundial. Via de regra, as argumentações que têm por objetivo assentar um determinado direito fundamental são estruturadas em torno da utilização de princípios, entendidos como “una condensación de los grandes valores jurídicos materiales que constituyen el substractum del ordenamiento y de la experiencia reiterada de la vida jurídica” (1), ou na dicção de Paulo Bonavides, “a chave de todo sistema normativo” (2).

É bastante extenso o caminho percorrido pela humanidade para que a dignidade da pessoa humana fosse reconhecida e sedimentada. Nessa jornada, uma vez assentado “o princípio moral de que o ser humano deve ser tratado como um fim e nunca como um meio” (3), passou-se a explicitar a ideia de que todo indivíduo, só pelo fato de ser gente, deve ser respeitado e tratado decentemente.

Firmou-se, nessa esteira, a percepção de que existe um conjunto de direitos inerentes a toda e qualquer pessoa humana que deve ser sempre observado a fim de se preservar a dignidade humana. A esse conjunto de direitos, revestidos de universalidade e de formulação internacional, convencionou-se chamar de “direitos humanos”.

Com o decorrer do tempo, os Estados passaram a incorporar os direitos humanos em seus ordenamentos jurídicos internos, insculpindo-os, no mais das vezes, em suas constituições. Dessarte, surgiu a noção de “direitos fundamentais”, entendidos como os direitos humanos positivados na ordem jurídica particular de determinado Estado.

Nesse sentido, acerca da diferenciação entre direitos humanos e direitos fundamentais, são oportunas as lições do eminente constitucionalista lusitano José Joaquim Gomes Canotilho (4):

[…] direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.

As constituições contemporâneas, como a brasileira de 1988, ao lado dos preceitos declaratórios dos direitos fundamentais, estabeleceram diversas disposições deles assecuratórias, denominadas garantias fundamentais. Conforme leciona Jorge Miranda, “os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens” (5).

Por vezes, entretanto, a previsão de uma dessas garantias já traz plasmado consigo um direito fundamental. É este o caso do artigo 5º, inciso LXXIV, da Constituição da República, que determina que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

Esse mandamento constitucional tem a natureza de direito fundamental porque a assistência jurídica integral e gratuita já é em si um bem essencial. Na dicção de Mauro Cappelletti, trata-se mesmo do “requisito fundamental — o mais básico de todos os direitos humanos — de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir e não apenas proclamar os direitos humanos” (6).


Ao mesmo tempo, tem caráter instrumental de garantia fundamental, uma vez que é por meio dele que aqueles que comprovarem insuficiência de recursos poderão ter efetivo acesso a outros direitos fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana, a isonomia, a inafastabilidade da tutela jurisdicional, o acesso à Justiça, o devido processo legal, o contraditória e a ampla defesa, etc.

Não há dúvidas, pois, de que a efetivação dos direitos fundamentais reclama a democratização do acesso à Justiça. Negar a possibilidade de que todos, independentemente de suas condições econômicas, tenham meios de recorrer ao Poder Judiciário significa frustrar expectativas legítimas da maioria da população e implica o risco de inviabilizar o Estado Democrático de Direito.

Nesse contexto, a assistência jurídica aos necessitados se insere como instrumento indispensável. É justamente por meio dela que se poderá dar azo à democratização do acesso à Justiça, propiciando que ela esteja ao alcance de todos e não apenas daqueles que disponham de recursos para arcar com o alto custo das despesas processuais e honorários advocatícios.

No Brasil, desde a Carta Política de 1934, conferiu-se nível constitucional ao tema. Seu texto dispunha que a União e os Estados concederiam aos necessitados, defesa judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais, e assegurando a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos. Correspondia, assim, a norma aos novos ideais de democracia, tornados princípios expressos dessa ordem fundamental. A mesma linha foi seguida pelas Constituições seguintes (1946, 1967 e sua Emenda 1ª, e 1969).

Na atual Constituição da República, houve significativo avanço, com a consagração da assistência jurídica, instituto de maior dimensão, que açambarca e ultrapassa a assistência judiciária que até então era assegurada.

Conforme observa Augusto Tavares Rosa Marcacini, tem-se que:

A assistência jurídica engloba a assistência judiciária, sendo ainda mais ampla que esta, por envolver também serviços jurídicos não relacionados ao processo, tais como orientações individuais ou coletivas, o esclarecimento de dúvidas, e mesmo um programa de informação a toda a comunidade (7).

De fato, a assistência judiciária tem menor abrangência porque se circunscreve às hipóteses em que haja uma demanda judicial em curso ou a ser ajuizada. Já a assistência jurídica vai além, alcançando também situações que não se encontram no bojo de uma relação jurídica processual, mas que requerem informações, orientações e consultoria a respeito de questões relativas ao Direito, além solução extrajudicial dos litígios.

A assistência jurídica integral e gratuita, vale dizer, é uma garantia fundamental e um direito subjetivo público de todo cidadão carente, que pode e deve exigir o seu cumprimento por parte do Estado. Sua consagração em nível constitucional é exigência e consectário lógico da cidadania e da dignidade da pessoa humana, valores estes erigidos pelo Poder Constituinte Originário em fundamentos da República Federativa do Brasil, ao teor do que dispõe o artigo 1º, incisos II e III, da Constituição de 1988.

Merece ênfase, ademais, o fato de que a assistência jurídica integral e gratuita se coaduna com os princípios da isonomia(8) e da inafastabilidade da tutela jurisdicional (9). Deveras, de nada adianta afirmar que todos são iguais perante a lei se não forem fornecidos os meios necessários para que essa igualdade, ao menos jurídica, se manifeste. Bem assim, de pouco vale enunciar que nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída da apreciação do Poder Judiciário se não forem assegurados mecanismos que possibilitem a todos os jurisdicionados, ricos ou pobres, efetivamente socorrerem-se da tutela jurisdicional.

Trata-se, pois, a assistência jurídica integral e gratuita dos necessitados de pressuposto da justiça social e da cidadania, indispensável para que se tornem reais, e não meramente simbólicos, os direitos do cidadão comum. Sua necessidade é imperativa para a existência de um verdadeiro Estado de Democrático de Direito.


É que o Estado Democrático se encontra obrigado a seus cidadãos tanto pelo dever de garantir-lhes o regular exercício de seus direitos conquistados quanto de facilitar-lhes a reintegração ou a defesa de direitos violados, ou ameaçados, ou ainda a reparação das lesões oriundas de atos ilícitos, bem assim de proporcionar-lhes condições de assegurar a dignidade da pessoa humana.

Efetivamente, o Poder Judiciário deve estar ao alcance de todos. A defesa jurídica dos direitos lesados ou ameaçados, dos pobres, dos economicamente mais fracos, não pode passar despercebida pelos Poderes Públicos. Receber assistência jurídica integral e gratuita é, pois, repise-se, um direito e uma garantia fundamental dos necessitados, cuja violação, em última análise, caracteriza desrespeito ao postulado universal de que todo ser humano deve ser tratado com dignidade.

A conceituação da categoria jurídica “serviço público” não é tarefa simples. Ao revés, como ressabido, trata-se de expressão que tem recebido diferentes acepções, que variam conforme o tempo e o lugar em que é empregada. No Brasil, mesmo hodiernamente, não há total consenso quer a respeito de sua definição, quer a respeito de sua abrangência. A propósito, faz-se oportuno analisar, apenas como referencial, os ensinamentos de dois grandes administrativistas pátrios acerca do assunto.

A Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro formulou a definição de serviço público como: toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente as necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público (10).

Já o Professor Celso Antonio Bandeira de Mello, apresenta o seguinte conceito: serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais –, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo (11).

Em todo caso, independentemente do conceito que se adote, importa destacar que integram a noção de serviço público, pelo menos, as seguintes características: são prestados pelo Estado (diretamente ou por delegação), destinam-se à satisfação de necessidades da coletividade, são desfruíveis individualmente e regrados por normas de Direito Público.

Assentadas esses premissas a respeito do tema, afigura-se evidente que a assistência jurídica aos necessitados constitui-se em serviço público.

Com efeito, à luz dos artigos 5º, inciso LXXIV, e 134 da Constituição da República, tem-se que a assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados incumbe ao Estado, por meio da Defensoria Pública. Bem assim, é indiscutível que se trata de prestação destinada à satisfação de necessidades coletivas, mas que pode ser desfrutada singularmente e que deve ser desenvolvida sob o balizamento de regras de Direito Público.

Ademais, é de se salientar que a assistência jurídica aos necessitados traduz-se em serviço público de caráter essencial, uma vez que está diretamente relacionado à imprescindibilidade de se conferir efetividade a direitos e garantias fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana, a isonomia, o acesso à Justiça, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, dentre outros.

Essas constatações são importantes, inclusive, para melhor explicitar a inconveniência de se admitir a existência de advogados dativos ou ad hoc, nomeados discricionariamente por membros do Poder Judiciário para atuar paliativamente na defesa dos necessitados nos lugares onde o Estado ainda não cumpriu o seu dever constitucional de estruturar efetivamente a Defensoria Pública.

De fato, como leciona o Professor Celso Antonio Bandeira de Mello, ao erigir-se determinados oferecimentos de prestações à categoria dos serviços públicos, bens relevantíssimos da coletividade, quer-se também impedir “que o titular deles; ou quem haja sido credenciado a prestá-los; procedam por ação ou omissão, de modo abusivo, quer por desrespeitar direitos dos administrados em geral, quer por sacrificar direitos ou conveniências dos usuários do serviço” (12).


Conforme demonstrado no bojo deste trabalho, a Constituição da República estatui que a assistência jurídica integral e gratuita é um direito e uma garantia fundamental, tem natureza de serviço público essencial e constitui-se em direito subjetivo público dos necessitados.

Nenhuma justificativa plausível existe, portanto, para que o Estado ainda não tenha implantando e estruturado a Defensoria Pública em todos as Unidades da Federação, nos moldes determinados pela Constituição da República, uma vez que já decorridos mais de 21 anos desde sua a promulgação.

As providências paliativas adotadas para tentar preencher o vazio institucional provocado pela ausência efetiva da Defensoria Pública são ineficazes e ontologicamente desprovidas de meios para assegurar a assistência jurídica integral e gratuita dos necessitados. Dentre elas, reveste-se de especial nocividade a inconstitucional nomeação indiscriminada de advogados dativos ou ad hoc. Não existem Juízes nem Membros do Ministério Público dativos ou ad hoc. Também não devem existir defensores dessa natureza.

Nesse contexto, em face da análise das circunstâncias expostas no presente artigo, tem-se que a efetiva estruturação da Defensoria Pública dos Estados e da Defensoria Pública da União é urgente. Nada mais justifica a omissão do Poder Público em implantar a Defensoria Pública nos Estados onde ela ainda não foi criada, nem, tampouco, em dotá-la da estrutura necessária para o fiel cumprimento de suas funções institucionais onde ela já existe, inclusive, em nível federal.

A inércia do Poder Público com relação a essa obrigação de cunho constitucional equivale a negar dignidade e cidadania à população carente do País. Constitui-se em escandalosa afronta à Constituição da República e gritante menoscabo à aspiração de consolidar o Brasil como um Estado Democrático de Direito.

Referência
1.
García de Enterría, Eduardo; Fernández, Tomás-Ramon. Curso de Derecho Administrativo, v. I, reimpr. Da 3. ed. Madri: Civitas, 1981, p. 400, apud Mello, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 112.
2. Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 258.
3. Diniz, Maria Helena. Direito à Morte Digna: Um desafio para o século XXI, v. II. São Paulo: Saraiva, 1999, p.133.
4. Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 359.
5. Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, p. 88 a 89, apud Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 29.
6. Cappelletti, Mauro e Garth, Bryant. Acesso à Justiça. Traduzido por Northfleet, Ellen Gracie. Fabris: Porto Alegre, 1988, p. 11 a 12.
7. Marcacini, Augusto Tavares Rosa. Assistência Jurídica, Assistência Judiciária e Justiça Gratuita. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 33.
8. Artigo 5.º, caput, da Constituição da República.
9. Artigo 5.º, inciso XXXV, da Constituição da República.
10. Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 99.
11. Mello, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 620.
12. Bandeira de Mello, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 17. edição. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 621.

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