JUSTIÇA NA HISTÓRIA

A Operação Borracha e a Comissão da Verdade

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19 de janeiro de 2010, 7h43

Spacca
Coluna Cassio Schubsky - Spacca

Em 1971, no período mais sangrento da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), durante o Governo Médici, o escritor gaúcho Erico Veríssimo trouxe a público o romance “Incidente em Antares”. A obra, combinando ficção e realidade, transformou-se em um libelo contra a repressão política, denunciando a tortura e o assassinato de presos políticos e o acobertamento dos fatos pelos mandões da cidade imaginária de Antares, supostamente localizada perto de São Borja, no Rio Grande do Sul, nas proximidades do Uruguai e da Argentina. Mais do que denúncia contra as arbitrariedades da ditadura, o livro serviu de alerta sobre os riscos futuros de se tentar apagar o passado – como se isso fosse possível…

Fábrica de mentiras
O Estado Novo (1937-1945), que namoricava com o fascismo italiano e flertava com o nazismo alemão, já tivera seu detrator, o magistral escritor alagoano Graciliano Ramos. Em sua obra autobiográfica “Memórias do Cárcere”, Graciliano denunciou, com as tintas cáusticas de sua pena afiada, as arbitrariedades de Vargas, revelando as condições sub-humanas a que milhares de presos políticos eram submetidos pela ditadura getulista. Mais: o autor mostrava a ilegalidade das prisões, sem amparo legal algum, destituídas de processo judicial. O crime sem previsão legal era o de pensar, pensar livremente, divergir dos poderosos de ocasião. A pena ministrada pelas forças repressoras: cadeia.

Em um aforismo conhecido, Karl Marx escreveu que "A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. E assim foi com as ditaduras do Brasil no século passado. Nem a denúncia arrasadora de “Memórias do Cárcere” serviu para aliviar a contundência da barbárie perpetrada por órgãos de segurança civis, militares e paramilitares durante a ditadura implantada em 1º de abril de 1964. A tragédia se repetia como farsa, começando no dia da mentira. Após o Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, a tortura, o estupro e o assassinato tornaram-se práticas generalizadas contra presos políticos, muitos deles, como ocorrera com Graciliano Ramos décadas antes, “condenados” sumariamente, sem o devido processo legal, pelo “grave” crime de opinião divergente, como o jornalista Vladimir Herzog ou o deputado Rubens Paiva, para resumir os exemplos.

A mentira tem pernas curtas, mas, lamentavelmente, tem vida longa. No caso de Herzog, como ocorreu tantas outras vezes no regime de triste memória, forjou-se a versão de suicídio (e não faltou nem um atestado de óbito para referendar a farsa). No caso de Rubens Paiva, como no de tantos outros presos políticos, a versão inventada foi a do “desaparecimento”.

Campanha pela anistia nas escadarias do Paláciio Tiradentes, 18 de setembto de 1979.É certo que a Lei 9.140, aprovada em 1995, reconhece a situação de morte dos “desaparecidos”. Mas a mentira sobrevive, pois se desconhecem os meios pelos quais os mortos foram executados. E muitos dos corpos dos presos sob a tutela do Estado permanecem “desaparecidos”.

Operação Borracha
Já dizia Ezra Pound, poeta, tradutor e teórico da comunicação, que “os artistas são as antenas da raça”. Quer dizer: eles têm uma sensibilidade aguçada, muitas vezes conseguindo enxergar adiante e, portanto, antes do comum mortal.

Erico Veríssimo, em seu “Incidente em Antares”, teve, pois, uma antevisão do que a história brasileira nos reservava. O personagem João Paz é morto vitimado por torturas na delegacia da cidade imaginária de Antares. Uma greve geral paralisa inclusive o serviço funerário. E, no meio da confusão, sete mortos insepultos ressuscitam, a história de Paz vem à tona, e os torturadores são denunciados em praça pública.

Finda a greve, enterrados os sete mortos, as denúncias de maus-tratos aos presos políticos também precisavam ser sepultadas, pois denegriam a imagem ilibada dos próceres da cidade, como o prefeito, o delegado e o coronel político da localidade. E a solução foi a fatídica “Operação Borracha”. Uma ação coordenada para escamotear os fatos ocorridos, as denúncias veiculadas. Enfim, uma iniciativa deliberada para forjar uma versão oficial – e mentirosa – do passado. E o passado foi apagado e o que restou dele foi jogado para debaixo do tapete. E ai de quem temesse mexer no vespeiro da História!

Comissão da Verdade
Quase quarenta anos depois da publicação de “Incidente em Antares” e vinte e cinco anos após o fim do regime militar, o Brasil está às voltas novamente com sua Operação Borracha, com a resistência de pessoas e segmentos sociais envolvidos com a ditadura, que não querem ver, de jeito nenhum, o passado ressuscitar, desmantelando-se as versões forjadas para tortura, estupro e assassinato de centenas de opositores do regime. A nova Operação Borracha perdura até em eufemismos, para chamar a repressão política no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), recentemente divulgado, por outro nome qualquer.

Alegam, porém, familiares dos mortos e “desaparecidos” políticos, entre outros atores sociais, que possuem o direito legítimo à memória e à verdade – conhecer os fatos é um direito de todos, aliás. Daí a necessidade de implantação da Comissão da Verdade, prevista no PNDH, ainda pendente de aprovação pelo Congresso Nacional.

De fato, é preciso parar com essa história de que o brasileiro não tem memória, como se fôssemos um povo relapso, que por vontade própria ou algum tipo de deformação inata esquece o que se passa. Há forças poderosas que, ainda hoje, resistem em se defrontar com o passado real, com uma história recente repleta de atos criminosos de lesa-humanidade, que ferem tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo País. Afinal, o brasileiro só pode ter memória se o passado real for escarafunchado, sem peias.

Tema polêmico é o da revisão da Lei da Anistia, ou se esta lei é legítima por ter sido promulgada durante a ditadura, ou ainda se ela abrange os crimes de lesa-humanidade. A questão deve ser julgada em pouco tempo pelo Supremo Tribunal Federal, que foi provocado pelo Conselho Federal da OAB a manifestar-se a respeito.

Seja como for, a História insepulta do Brasil continua se recusando a morrer abraçada com a mentira. O direito à memória e à verdade eclode, mais cedo ou mais tarde, porque, como ensinam Chico Buarque de Holanda e Pablo Milanês, “a História é um carro alegre, cheio de um povo contente, que atropela indiferente todo aquele que a negue”.

Autores

  • é formado em direito pela USP e em história pela PUC-SP, editor e historiador, é autor, entre outras obras, de "Advocacia Pública - Apontamentos sobre a História da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo".

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