Justiça livre

Não há mais razão para adiar democratização do Judiciário

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7 de janeiro de 2010, 6h34

Não é mistério ou segredo que vigente a Constituição Cidadã de 1988 o Judiciário passou a ser mais exigido, porquanto se permitiu, por assim dizer, mais fácil e ampla possibilidade de se buscar a tutela jurisdicional.

Como a litigiosidade num País como o nosso, cheio de injustiças sociais e com graves defeitos a corrigir é enorme, quando não paquidérmica, se esperava que o Judiciário fosse munido de meios que propiciassem o cumprimento de sua obrigação constitucional, com eficiência e rapidez, até como consectário de princípio que é entendido como cláusula pétrea, no sentido de que os Poderes são harmônicos e independentes entre si, garantida a autonomia orçamentária.

Passados mais de vinte anos, o que se enfrenta é tão só o descumprimento do texto constitucional, posto que, pelo menos no estado de São Paulo, jamais se viu tamanha desconsideração e desrespeito à propalada e nunca cumprida autonomia financeira. Basta se verificar, anualmente, os cortes que são feitos pelo Poder Executivo na Proposta Orçamentária do Judiciário, aprovada pelo Egrégio Órgão Especial do Tribunal de Justiça, para que a constatação seja de que a tal autonomia é falaciosa.

Sem contar com recursos orçamentários que lhe sejam pertinentes, não consegue o Judiciário, diante da dinâmica social, acompanhar com sucesso e velocidade a demanda da tutela jurisdicional. A isso se somam outros fatores para impedir que a Justiça seja feita de modo rápido e de sorte que qualquer cidadão compreenda o alcance de uma decisão judicial, dentre os quais se reveste de grande envergadura o problema da legislação processual ultrapassada, notadamente naquilo que se refere ao trato dos recursos, facilitando a eternização dos processos. O cumprimento dos julgados trânsitos não encontra respaldo de efetividade, mormente quando devedor seja o Poder Público.

Num estado como São Paulo, em que tramitam cerca de 18 milhões de processos, com taxa de crescimento avassalador de ano para ano, debatem-se os juízes, de primeira e segunda Instância, com falta de estrutura comparável à que existe em outras unidades do judiciário nacional. É notório o fato de que os juízes de Tribunais Federais Regionais contam com quase vinte funcionários lotados em seus gabinetes de trabalho, enquanto um desembargador estadual conta com dois assistentes jurídicos e dois escreventes.

A insofismável litigiosidade incontida, que é fruto dos desacertos dos governantes quanto à economia e as próprias vicissitudes sociais, acaba por se tornar um Leviatã, contra o qual nossas armas são sangue, suor e lágrimas, porquanto sequer temos programa de informatização que não apenas racionalize nosso serviço, como dê ao cidadão, sem maiores complicações, a possibilidade de saber como estão se desenvolvendo os processos de seu interesse, ou, ainda, que possa aliviar a burocracia dos protocolos, fazendo com que petições e recursos possam ser diretamente endereçados aos juízes naturais.

A par dessa falta toda de estrutura, nos deparamos com a ingenuidade ou timidez de nossos dirigentes, que se lançam ao diálogo político com o Poder Executivo para buscarem utopicamente o respeito ao cânone constitucional, a ponto de já estar arraigado o entendimento de que não pode combater esse sistema judicialmente, posto que o diálogo sempre se mostra mais produtivo. Olvidam, contudo, que após tantos anos de diálogo constante e de tratamento dos mais cordiais, perdemos a cada três anos um orçamento inteiro em razão dos cortes efetivados pelo Poder Executivo, nada havendo a fazer ou esperar da augusta Assembleia Legislativa em função da maioria governamental jamais deixar de obedecer aos comandos vindos do Palácio dos Bandeirantes.

Os egrégios Tribunais de Justiça de Tocantins, Rio Grande do Sul e Alagoas não se submeteram ao tratamento ilegal dispensado ao Poder Judiciário e conseguiram no colendo Supremo Tribunal Federal decisões liminares que obstam esses cortes. O egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, nada obstante isso, jamais pensou em seguir o exemplo, sem que saiba de razões de ordem concreta que impeçam a busca da mesma ferramenta de defesa dos nossos interesses, mormente quando se tem conhecimento que a proposta orçamentária é elaborada em Comissão formada por desembargadores experientes e gabaritados, que a desenham dentro da mais absoluta obediência às regras de direito financeiro e ao respeito, também, dos limites traçados na Constituição Federal e na Carta Estadual, sem olvidar a Lei de Responsabilidade Fiscal.


O mesmo, contudo, e sintomaticamente, não ocorre com relação ao Ministério Público.

Não se sabe de cortes tão drásticos que o afetem e é de notório conhecimento que o parquet consegue prover com o Poder Executivo e com o Poder Legislativo todas as suas necessidades, e isso não se dá somente porque possui uma Lei Orgânica Nacional mais moderna e adaptada ao texto da Carta Magna. No meu modo de pensar, isso se dá porque o Ministério Público tem força política que nós não possuímos e não porque seus membros são ou façam vezes de partes ou representam interesses coletivos e difusos, mas porque são unidos em termos de Instituição e essa coesão vem, dentre outras razões, do fato de que o Procurador Geral detém legitimidade maior em razão de ser eleito por todos os Procuradores e Promotores de Justiça vitalícios.

E isso se dá porque no Ministério Público, assim como na augusta Ordem dos Advogados do Brasil, há pleno exercício da democracia. As eleições se repetem ordinariamente, sem solução de continuidade, conquista que até os dias de hoje não foi alcançada pelo Judiciário, posto que nossa vetusta Lei Orgânica não a estabelece, havendo mesmo interpretação muito restritiva do seu texto, como é cediço.

Sei que esse tema é tormentoso e polêmico. Contra a possibilidade da escolha democrática ampla e direta dos dirigentes dos sodalícios por todos os magistrados se levanta grande e respeitosa corrente, da qual fazem parte desembargadores estaduais e ministros de Tribunais Superiores, que se apoia na ideia de não poder haver partidarização, sob o argumento de que o eleito não estaria livre para adotar soberanamente as decisões que lhe são afetas. Em outras palavras, haveria uma espécie de impedimento para tanto, dado que ninguém viria a arrostar interesses de quem o elegeu.

Conquanto já tenha feito parte dessa corrente, atualmente penso de modo diverso, concessa vênia. A atual diretriz de eleição para os cargos diretivos dos Tribunais Estaduais ou Federais, levada a efeito sob a luz da Lei Orgânica da Magistratura Nacional emascula os desembargadores, que são obrigados a votar em tais ou quais candidatos, não escolhidos livremente porque competentes ou portadores de ideias administrativas avançadas e coerentes, mas tão só por que ponteiam a lista de antiguidade.

Nem mesmo se permite, no caso do nosso sodalício estadual, que os desembargadores que façam parte integrante do Egrégio Órgão Especial concorram.Em pleno Século XXI pode a antiguidade por si só servir como parâmetro para escolhas tão graves? O preparo e descortino administrativo, o conhecimento de como funciona a máquina judiciária, o estudo aprofundado das questões de gerenciamento e planejamento não deveriam servir como base para a eleição?

Notem que não estou a colocar desdouro em qualquer desembargador que tenha sido eleito segundo tal diretriz, porque são todos muito respeitáveis, de carreiras consagradas pela luta renhida de décadas em relação às coisas da Justiça, sendo de todo impertinente qualquer digressão ao caráter de quem quer se seja. O que proponho seja combatido é o critério.

A antiguidade, nesse sentido, é até apanágio de inconstitucionalidade, porquanto vulnera o princípio da isonomia, posto que a todos os desembargadores se faculta votar, porém somente alguns podem ser votados, e a escolha dos que podem não se dá por resultado de debates, pela troca de ideias, pela aviventação da celeuma construtiva, mas só porque alguém é mais longevo na lista. O desembargador é meio cidadão, a meu sentir. É tratado como menino imberbe. Não pode escolher seus candidatos livremente, nem muito menos pode se candidatar, a não ser que esteja entre os mais antigos, em relação direta ao número de cargos em disputa.

Pior ainda a situação dos colegas de primeira instância. São eles nossos aríetes. São eles que em primeiro instante recebem a carga invencível de serviço. São os que mais sofrem com a falta de estrutura, pois sequer possuem um único assistente, para não se mencionar a exiguidade de funcionários de cartórios judiciais e a penúria de recursos materiais com que não são beneficiados. São eles os responsáveis pela entrega inicial da tutela jurisdicional. São a linha de frente desse combate sem fim. Nada obstante, diferentemente do que ocorre com os desembargadores, não podem votar, pura e simplesmente.


Ora, aí não se é nem meio cidadão. O juiz primeira instância vem a ser um nada em termos de decisão quanto aos destinos do Poder de que faz parte, sem dúvida uma das mais importantes. Não posso aceitar mais o argumento da partidarização. Existem comandos que impedem abusos e punem omissões: Constituição Federal, Constituição Estadual, Lei de Improbidade Administrativa, Lei de Responsabilidade Fiscal.

E agora há o Conselho Nacional de Justiça, que é o órgão congênito da fiscalização dos instrumentos de administração e planejamento dos Tribunais. Caso queiramos pretender possuir a mesma força política do Ministério Público, que proporcionalmente tem um orçamento maior que o nosso, devemos nos colocar a favor da mais rápida e inadiável democratização do Judiciário. Caso almejemos que os nossos problemas de estrutura sejam resolvidos a contento, devemos partir para modelos mais modernos de administração. Já foi montado plano plurianual, recentemente aprovado pelo egrégio Órgão Especial, em decorrência do ingente trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Planejamento da Corte. Devem ser instituídos outros mecanismos para que o cumprimento da tutela jurisdicional se dê de forma correta em termos de efetividade e que haja célere desimcunbência dessa tarefa.

Nenhum juiz com mínimo de consciência e discernimento se apraz ao saber do enorme acervo de feitos que lhe compete, sem poder dar a ele solução rápida e certeira.

Nada disso será obtido, porém, sem que haja democratização no Judiciário. E a Emenda Constitucional 45, de 2004, almejava, dentre outras inovações, a democratização na eleição dos Órgãos Especiais, determinando que metade de seus cargos fosse preenchida por eleição direta. Com essa diretriz não se coaduna o artigo 102 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional. O choque é evidente. Democracia não pode ser estatuída sem escolhas livres. Os critérios devem ser os da competência administrativa, da inteligência de planejamento, da capacidade de execução efetiva das metas. Não pode haver um critério que retire dos eventuais eleitores a liberdade de escolher livremente. Não se pode aceitar que a lei trace critério que afaste o que é melhor para a Nação e o Estado Democrático de Direito.

E porque só quanto ao Judiciário se aplica ainda tal critério?

Porque devemos interpretar como recepcionada pela Constituição Federal, nesse parte, Lei Orgânica que foi introduzida sob em pleno regime de exceção, em que sequer as garantias individuais eram respeitadas? A Democracia só serve para os demais Poderes e Instituições? Ou somos tão vituperados a ponto de não sabermos traçar nossos destinos?

Não há mais razão alguma para adiarmos a democratização completa do Judiciário. A timidez não pode mais impedir que o Judiciário ocupe seu lugar nas Instituições democráticas, tal como preconiza a Carta Magna.

A escolha livre e soberana dos nossos dirigentes só fará com que o debate acerca das nossas necessidades e falhas seja enriquecido, fomentando soluções que, muito ao largo da mera antiguidade, sejam determinadas pela competência administrativa, pelo conhecimento de como se organiza um orçamento, de como se impõem políticas de racionalização e eficiência.

É até provável que os magistrados mais antigos, em razão da experiência, se apresentem como os candidatos mais completos para preencherem as vagas. Deve nos ser dado, porém, o direito de decidir se o são. Da mesma forma, o juiz de primeiro grau não pode ser alijado desse processo, tanto como não o são os promotores de Justiça em pertinência ao Ministério Público.

É hora de nos fazermos efetivamente cidadãos ou de nos calarmos diante da situação que vigora, posto que nos dias da atualidade não mais se justifica, sob qualquer enfoque, que a escolha de dirigentes de Tribunais somente tenha como base a longevidade na carreira.

Os mais novos podem e devem contribuir para os destinos do Poder Judiciário, não como meros partícipes secundários, mas como formuladores das mudanças necessárias. E isso porque respondem pelos seus atos. São responsáveis por suas decisões. Não podem ser lembrados apenas quando cobrados por algo. Deve-se a eles o respeito que merecem por trabalharem no limite quase do impossível, com prejuízo da saúde e da vida familiar e social.

A sociedade deve se unir para buscar o convencimento de quem de direito, a fim de que esse novo modelo seja estabelecido. O medo da mudança não pode continuar a obstruir o Poder Judiciário que se deseja como servidor da Nação, eficaz, seguro e célere. Chegará o dia em que seremos chamados para responder pela nossa omissão, se continuarmos a dar legitimidade ao sistema atual.

Fazemos isso ou virá o dia em que, não suportando mais a capitis diminutio que sofrem, chegarão os desembargadores estaduais e juízes federais dos Tribunais à conclusão de que é melhor não votar, ou anular seus votos, como registro de protesto que desnudará, com inacreditável veemência, a inadequação do sistema atual aos tempos de democratização que vivemos. Há necessidade, mais do que nunca, de que sejamos corajosos e destemidos. Vamos abraçar essa causa para o benefício não dos juízes, mas da cidadania, do Estado de Direito e da própria democracia.

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