Judicialização da saúde

Poder Judiciário paga conta que não é dele

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25 de fevereiro de 2010, 11h01

O Poder Judiciário tem exercido uma atuação intensa no que se refere a questões de saúde e o volume de ações judiciais tem crescido a cada dia. Nas Varas da Fazenda Pública são julgadas ações contra estados e municípios e,praticamente, a metade dessas ações se refere à questão de fornecimento de medicamentos.

A nossa legislação relativa à saúde é questão complexa. Há, via de regra, a incidência do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90); a Lei 9.656/98, que regulamenta os planos de saúde; a Lei 9.294/96, aperfeiçoada pela Lei Serra, que restringe a publicidade para as empresas de tabaco; o Decreto Lei 73/66, que trata de Seguros, e as resoluções da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que se complementam e têm força legislativa, sendo muitas delas ilegais, além de diversas outras fontes normativas dispersas, todas se aplicando em “diálogo de fontes”, na feliz expressão do professor Erik Jayme.

Temos normas obscuras, malfeitas. Infelizmente, não se sabe fazer as leis adequadamente, e o juiz, então, precisa interpretá-las, para que profira a decisão e vá se formando a jurisprudência.

O Judiciário, às vezes, paga uma conta que não é dele. Por exemplo, quando o Congresso não legisla corretamente. As alterações na Lei 9.656/98, acima referida, foram realizadas com dezenas de medidas provisórias, uma editada após a outra. Para se estar atualizado sobre o que estava em vigor, naquele período, era necessário acompanhar o Diário Oficial e verificar se havia ou não uma nova medida provisória sobre o tema. Isso caracteriza uma falta de capacidade de governar, em matéria relativa aos planos de saúde, alarmante, que preocupa – e muito – os cidadãos brasileiros, gerando perplexidade e insegurança jurídica.

Outro aspecto que dificulta a compreensão das normas nesta matéria é a interferência política. Os planos de saúde privados influenciam, de forma indireta – é o que parece –, politicamente, a ANS. As privatizações foram importantes, mas não existia a regulação adequada das agências governamentais, de um modo geral, necessitando urgente aperfeiçoamento das mesmas. Para tal, basta conferir recentes reportagens publicadas com destaque em O Globo, nas áreas de defesa do consumidor, economia e política em dezembro de 2009 e janeiro de 2010.

A presidência da ANS tem uma tarefa difícil de ser cumprida, porque há fortes interesses econômicos de alguns atuando junto ao Poder Legislativo. O Executivo que, em alguns casos, restringe o fornecimento do medicamento, faz com que o juiz seja chamado a resolver a questão, a judicializar um problema que seria da mera alçada do gestor governamental.

Quando um laudo médico chega para o juiz, no meio da madrugada, informando que uma pessoa tem de ser operada imediatamente para colocação de uma prótese no coração, e essa pessoa está na sala anterior à sala de cirurgia, sedada, aguardando a autorização necessária – pelo fato do plano só autorizar a cirurgia, mas não a prótese, sendo que a colocação da prótese, deve-se pressupor, que ela é inerente à realização da cirurgia – isso se caracteriza como uma urgência óbvia, que exige decisão judicial liminar imediata e a cirurgia é realizada, plenamente verificada a premência e o perigo da demora na concessão da medida pleiteada.

Pode acontecer, então, que o plano de saúde questione, argumentando que o médico utilizou um material que custava o triplo do preço do material que seria ideal para o caso, o que só veio a ocorrer pela própria negativa do plano para a realização do ato cirúrgico.

Jamais se esqueça, todavia, a Constituição brasileira, em seu primeiro capítulo, declara os princípios fundamentais, que a dignidade humana está destacada como um dos seus itens principais (artigos 1º e 4º, da Lei Maior).

No meu caso, como juiz, então, quando eu estou diante de qualquer situação da vida em que haja uma antinomia de princípios, eu devo escolher qual é o princípio mais relevante. Quando, como magistrado, eu estou diante de um problema da saúde e um problema patrimonial – se depois o segurado poderá pagar a prótese ou não – qual é a decisão? É pela vida, sempre.

O juiz não tem como, no meio da noite, ligar para o médico ou para a administração do plano de saúde para saber se a prótese é aquela ou não, porque, quando conseguir a informação, poderá ser tarde para salvar aquela vida.

Logo, o que acontece é que há uma judicialização desnecessária, ou seja, há um conflito entre decisões do Executivo com decisões do Judiciário, por falta de agir correto de outros Poderes.

É por isso que, muitas vezes, a posição de secretário de saúde é extremamente desconfortável. O secretário de saúde sofre sempre ameaças de prisão por não entregar medicamentos. O secretário ou seu funcionário é preso pelo fato de não cumprirem as liminares, não cumprirem as decisões judiciais. Os planos privados, em peculiares situações, se esquivam de cumprir as decisões urgentes, que, em poucos minutos, podem decidir a vida de alguém e, igualmente, estão sujeitos às penalidades legais.

O que é necessário, então? Parece-me que se necessita de um amadurecimento cultural democrático e de um aprofundamento da democracia real. O aperfeiçoamento da democracia significa votar melhor, escolher de maneira mais adequada os legisladores e aqueles que irão dirigir as nossas cidades ou os nossos Estados. Assim, restará ao juiz cumprir, então, o seu papel definido constitucionalmente.

Ao final, não é demais lembrar de Capistrano de Abreu, que, certa vez, escreveu um poema no qual disse que a Constituição Brasileira necessitava ter somente dois artigos. O primeiro dizia o seguinte: “Todos os brasileiros ficam obrigados a ter vergonha.” O segundo dizia: “Ficam revogadas as disposições em contrário.”

Portanto, independente da situação vivida e da realidade existente, a crença do cidadão não passa somente por uma lei melhor, mas lhe aguarda e espera uma Justiça real, material, que valha pelo seu nome em si e o Poder Judiciário está e estará disposto a cumprir o seu papel.

Que o Estado, pois, respeite a Constituição e lhe dê efetividade concreta, conforme expressamente disposto no seu artigo 196, que afirma: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

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