Constituição cidadã

Justiça não pode esquecer do direito de defesa

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23 de fevereiro de 2010, 14h00

“É disso que se trata, na raiz, quando cogitamos do Estado de Direito: direito de defesa”.
(STF – HC 95.009 – do voto do Min. Eros Grau)

O final do Século XX no Brasil foi marcado pela queda da ditadura militar e o advento da Constituição Cidadã, com a qual o país se proclamou um estado democrático de direito. E na raiz do estado de direito, disse-o nossa Suprema Corte, está o direito de defesa. É ele que nos garante a certeza de que atos arbitrários, vindos de qualquer Poder do Estado, não se pratiquem contra nós e que o monopólio estatal da força só possa ser exercido depois de cumpridos requisitos impostos pelo direito.

Entre esses estão a garantia de que a defesa seja ampla, não podendo sofrer limitações por lei ou por ato do juiz; a possibilidade de discutir e produzir contraprova a tudo o que for apresentado pela acusação; e o “devido processo legal”, segundo o qual os atos do processo devem obedecer ao rito previsto em lei.

Fundamental, também, é a garantia de um juiz imparcial para apreciar a causa. O juiz não pode ser alguém que assume a tarefa de combater o crime, pois ela cabe à Administração, tanto através da Polícia como do Ministério Público. O juiz deverá ser a figura superior e neutra que arbitra o inevitável conflito entre o combate ao crime e os direitos do indivíduo. A ele caberá dizer quais restrições deve o cidadão suportar e quais são ilegais.

Nossa colonização levou-nos a crer que a função maior do processo penal seria a descoberta da verdade. Esse entendimento é medieval e incompatível com o estado de direito. O objetivo do processo moderno é achar a verdade possível, a verdade legal, a verdade justa, apenas.

Quando Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os “reis católicos” da Espanha, inauguraram o antisemitismo assumido, obtiveram do Vaticano o envio – logo estendido a Portugal – da Inqusição, que se autodenominava “Santa”. Na busca da verdade, padres e bispos não mediam meios e a tortura campeou.

A herança medrou pelas colônias e pelos séculos à frente. Na década de 70, assisti, por acaso, a interessante julgamento. O relator explicou que o réu fora torturado de forma tão bárbara que sofrera deformidades. Durante o suplício confessou um furto e indicou o local onde estavam os objetos subtraídos à vítima. A polícia apreendeu lá esses bens e os devolveu.

O juiz – um bom profissional para seu tempo, por sinal – propôs a solução, acatada por unanimidade: a tortura é crime e, por isso, deve ser instaurado um processo contra os policiais envolvidos na investigação. Mas não é possível ignorar a verdade do encontro dos bens, o que exige a condenação do torturado!

Somente em 1988, com a Constituição, viemos a ter a proibição expressa do uso da tortura e das demais provas ilícitas. São apenas 21 anos de civilização contra mais de 500 de tradição ibero-católica. É pouco.

Por conta disso, toda vez que uma decisão judicial estabelece a vigência do estado de direito e manda respeitar o direito de defesa, há uma grita de alguns no sentido de que isso colabora para a impunidade.

Oliver Wendell Holmes, lendário juiz da Suprema Corte americana, certa vez foi interpelado por alguém que via na declaração de ilicitude de prova a libertação de alguém que, com firme certeza, havia praticado um crime grave, pois a prova podia ser ilícita, mas era contundente.

Holmes respondeu que melhor seria abrir todas as cadeias da América do que o Judiciário convalidar um ato ilegal do governo, porque se assim não fosse, o governo jamais respeitaria o ordenamento jurídico e a nação regrediria ao faroeste: uma terra de ninguém, onde o xerife do dia é a lei.

Mas o questionamento pôs o dedo numa ferida verdadeira: A prova ilícita (não a declaração de que ela o é) gera, sim, impunidade. Implica anulação do processo e sua reabertura sem o material espúrio, e dificilmente levará a condenação.

Se da afirmação do estado de direito decorre impunidade, devemos chamar a responder por ela os que cometeram ilegaliades no processo, mas nunca considerar que os restauradores da ordem constitucional são culpados por isso.

A maior causa de impunidade no Brasil é a incontinência de autoridades que, por violar direitos da cidadania, põem por terra a apuração de fatos que poderiam, talvez, levar a punição justa.

É preciso que isso fique bem claro: quando o direito de defesa é observado à risca, há uma possibilidade de que se conclua pela inocência do investigado mas, se isso não ocorrer, sua culpa será provada. Já quando se atropela o direito de defesa o processo será anulado; seu refazimento trará dificuldades e é provável a prescrição. Se o acusado for realmente culpado, acabará ficando impune por conta do excesso de acusação.

A observância estrita do direito de defesa gera condenações justas ou a absolvição de inocentes, que é o que muitos não desejam.

E, se há impunidade, ela é causada pelos que posam de xerifes legisladores, que ao violar as garantias constitucionais constroem – com dinheiro público – processos midiáticos, porém nulos.

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