Intempestiva Justiça

Há algo de muito errado na legislação eleitoral brasileira

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23 de fevereiro de 2010, 12h00

Editorial do Estado de S.Paulo

Há, evidentemente, algo de muito errado na legislação brasileira, que permite que juízes de primeira instância possam julgar matéria vencida em tribunais superiores e assim levar a insegurança jurídica ao processo de escolha de governantes e representantes pelo voto popular, que é órgão vital das democracias.

Não é por falta de apego ao cargo, nem por irresponsabilidade e muito menos por ingenuidade que o prefeito Gilberto Kassab tem se mostrado tranquilo em relação à possibilidade concreta de ser afastado do comando da Prefeitura desta capital, em razão da decisão do juiz da 1ª Zona Eleitoral, que cassou seu mandato. O prefeito tem sólidas razões para acreditar que a sentença de primeira instância será derrubada no Tribunal Regional Eleitoral e em instâncias superiores, se lá chegar. Há jurisprudência em favor da regularidade das contribuições eleitorais que recebeu, de empresas acionistas de prestadoras de serviços ao Município. Decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de 2006, em processo relativo a contribuições eleitorais para a campanha de reeleição do presidente Lula, avaliza essa regularidade.

Por outro lado, a consideração de que a uma entidade integrada por empresas sindicalizadas caso da Associação Imobiliária Brasileira (AIB), responsável pelo outro tipo de contribuição eleitoral considerada irregular se estende a proibição legal de doações eleitorais feitas por sindicatos é no mínimo discutível. Nada parece proibir que doações desse tipo sejam feitas, embora qualquer dúvida fosse evitada se cada empresa fizesse diretamente suas legítimas contribuições eleitorais. Se havia razões para dúvidas, não deixa de ser estranho que o prefeito Gilberto Kassab e a vice-prefeita Alda Marco Antônio, agora condenados por receber contribuições eleitorais irregulares na campanha de 2008, tivessem suas prestações de contas aprovadas, sem qualquer contestação, pela Justiça Eleitoral.

Mais estranho ainda é o critério adotado pelo juiz da 1ª Zona Eleitoral. Só cassa mandato se mais de 20% dos recursos de campanha forem irregulares, porque assim considerados pelo Ministério Público. Por que 20%? Se há irregularidade, deve haver sanções, independentemente de quanto representa no volume global de recursos da campanha do candidato. O magistrado criou essa porcentagem sem base legal por achar que é a partir dela que se configuraria o abuso do poder econômico. Convenhamos, no entanto, que a cassação de um mandato é uma sanção drástica, que não comporta avaliações subjetivas ou aleatórias.

Há ainda a considerar que, se a morosidade da Justiça é problema que afeta cidadãos e empresas, no campo eleitoral a intempestividade judicial pode produzir consequências caóticas, de imenso prejuízo para toda a população. Uma sentença de cassação de mandato, prolatada nos primeiros dias da gestão de um governante, por maior que seja a comoção política, certamente não provocará maiores traumas administrativos. Mas um afastamento que se efetive no meio do mandato principalmente numa cidade importante e complexa como São Paulo será sempre fator de grande e profunda perturbação administrativa.

Além disso, é evidente que o anúncio da cassação do prefeito e da vice-prefeita de São Paulo, bem como de vereadores de diferentes partidos, provoca grande repercussão política, especialmente quando se dá em ano eleitoral, como o que atravessamos.

O efeito suspensivo dos recursos judiciais elimina o risco de uma súbita mudança administrativa. Mas o problema é a "espada de Dâmocles" que se instala sobre as cabeças dos cassados em primeira instância. Seus adversários, certamente, a explorarão. Fossem esses casos julgados rapidamente, o eleitorado teria uma orientação mais clara e firme do comportamento dos gestores públicos. E assim poderia votar melhor.

Para os políticos essa situação é desastrosa. Uma sentença de cassação de mandato, reformada depois de um ano ou mais, causa um grande estrago político E observe-se que os 16 vereadores cassados pelo mesmo juiz de direito, em fins do ano passado, ainda não tiveram seus recursos julgados.

Há, evidentemente, algo de muito errado na legislação brasileira, que permite que juízes de primeira instância possam julgar matéria vencida em tribunais superiores e assim levar a insegurança jurídica ao processo de escolha de governantes e representantes pelo voto popular, que é órgão vital das democracias.

[Editorial publicado nesta terça-feira, 23 de fevereiro de 2010, no Estadão].

 

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