Justiça transicional

Ainda paira a dúvida sobre destinatários da anistia

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20 de fevereiro de 2010, 7h26

O filme Katyń narra o massacre de cerca de 12 mil oficiais poloneses pelas forças soviéticas em 1940, na floresta que o intitula. Ele narra um bom exemplo dos problemas que envolvem um direito à verdade: ao término da guerra, os soviéticos atribuem a responsabilidade aos nazistas, distorcendo e reescrevendo a história. A luta das vítimas e sucessores dos oficiais mortos exemplifica de modo sensível o que significa ser privado de um passado.

O termo justiça transicional tem sido utilizado para se referir à série de medidas a serem tomadas nos períodos de transição de regimes autoritários para regimes democráticos. Rudi Teitel, professor da New York Law School, salienta que a grande pergunta que envolve a justiça transicional é: como devem as sociedades lidar com seus passados perversos? Desta questão central emerge outra: qual a relação entre responsabilidade do Estado ante seu passado de repressão e suas perspectivas de criação de uma ordem liberal? Não se trata, portanto, de um conceito jurídico qualquer, mas que envolve uma complexa relação entre o passado e o futuro de uma democracia.

As medidas abrangidas pela justiça transicional são as mais variadas: medidas reparatórias de cunho patrimonial ou não, processos judiciais contra eventuais responsáveis, comissões que permitam um exercício do direito à verdade, a confrontação entre vítimas e opressores, o desligamento de agentes públicos envolvidos em violações de direitos humanos dos quadros do Estado, reformas institucionais, a preservação da memória como forma de aprendizado e, principalmente, um doloroso, e às vezes lento, processo de reconciliação.

O jurista argentino Juan Méndez, presidente do International Center for Transitional Justice, observa, contudo, que na América Latina o termo reconciliação tem sido adotado de forma deturpada: ele implicaria na ausência de medidas. Isto transformaria a reconciliação em impunidade: o Estado não poderia se arrogar na posição de vítima e oferecer um perdão a quem só poderia fazê-lo por um ato personalíssimo. Como observa Jacques Derrida, para além do fato do perdão ser da competência da pura singularidade da vítima, uma anistia geral paralisa e confirma a vítima em seu destino de vítima.

Tais medidas são implementadas por cada comunidade política à sua maneira. Não são medidas isoladas: são complementares e serão aplicadas por cada país em seu adequado momento histórico. É o mesmo Derrida que também esclarece que a reconciliação, assim como a liberdade, percorre um caminho, é um processo no sentido de um amadurecimento, de uma saída da minoridade.

A África do Sul, por exemplo, enfrentou o problema logo no fim do regime do apartheid. Em 1993, a própria Constituição Provisória previu mecanismos de anistia para que pudessem os opositores políticos participar das discussões sobre o advento de um texto constitucional definitivo, mas, principalmente, para promover medidas de justiça transicional. A mais famosa delas foi a instalação da Comissão Verdade e Reconciliação em 1996. Ouvindo mais de 20.000 testemunhas, ela teve como resultado, por exemplo, a responsabilização criminal de quase quatro mil agentes públicos, anistiando-se apenas cerca de mil e cem destes.

Em relação às comissões sobre verdade, apenas na América Latina, elas foram instaladas na Argentina (1983-1984), no Chile (1990-1991), em El Salvador (1992-1993), no Haiti (1995-1996), na Guatemala (1994-1999) e no Peru (2001-2003). Paradoxalmente, o povo uruguaio, em 26 de outubro de 2009, ratificou uma vez mais a chamada “Ley de Caducidad”, que anistiou diversos agentes públicos que praticaram violações a direitos humanos no período de ditadura militar (1973-1985), não obstante a Suprema Corte de Justiça tenha declarado de forma incidental a inconstitucionalidade de tal lei.

O Brasil é um claro exemplo de como tais medidas podem ser concatenadas de forma diferenciada ao longo da história. A Lei 6.683/1979, Lei de Anistia, fez parte da longa e gradativa distensão idealizada por Geisel. Entretanto, paira hoje a dúvida sobre quem seriam os reais destinatários da anistia: os opositores políticos ou estes e os agentes públicos que praticaram crimes durante a Ditadura Militar? Para além do fato de que dificilmente o regime militar reconheceria seus agentes como criminosos, a discussão chegou, uma vez mais, ao Supremo Tribunal Federal, que terá, por meio da ADPF n° 153, a chance de definir os rumos da democracia brasileira.

Atos de reparação pecuniária também integram a forma como a justiça transicional se processa no Brasil. Não ignorando que tal reparação é apenas um dentre outros elementos da justiça transicional, há que se mencionar o disposto nos artigos 8º e 9º do ADCT e nas Leis 9.140/1995 e 10.559/2002.

Retrocessos, contudo, não faltam: as Leis 8.159/1991 e 11.111/2005 procederam a uma clara lesão ao disposto no artigo 5º, inciso XXXIII, da Constituição da República, que assegura o direito à informação, ao permitirem a classificação pela Casa Civil da Presidência da República de documentos públicos como do mais alto grau de sigilo mantendo-os inacessíveis por prazos que vão de 30 anos até a indeterminação total. Novamente, o Supremo Tribunal Federal foi instado a se pronunciar sobre a constitucionalidade destas normas na ADI 4.077, ainda sem julgamento definitivo.

O Ministério Público Federal tem promovido uma série de ações civis públicas visando responsabilizar judicialmente agentes públicos envolvidos em atos de violação a direitos humanos.

Destaque-se, ainda, que o novo Programa Nacional de Direitos Humanos prevê a iniciativa de lei para a instituição de uma Comissão de Verdade e Justiça com poderes para apurar crimes de lesa humanidade cometidos no período da Ditadura. Vale registrar que a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça tem desenvolvido um trabalho de proteção do direito à memória e à verdade. Por meio da chamada Caravana da Anistia, têm sido promovidos julgamentos públicos de anistiados políticos, como uma forma de integração da sociedade no processo. Além disto, será em Belo Horizonte a instalação da sede do Memorial da Anistia Política, que abrigará os 60 mil processos que já tramitaram na Comissão de Anistia.

Mais do que fragmentar a discussão em posições políticas de uma direita e uma esquerda fluidas, a justiça transicional busca procedimentalizar a construção de um regime democrático forte e consciente de seu passado; não só isto, mas uma democracia que aprenda com os erros do passado. Ainda que seja árdua a reconciliação e ainda que ela possa gerar confrontações.

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