Espírito da lei

STF e STJ corrigem jurisprudência sobre apropriação

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19 de fevereiro de 2010, 11h06

A seara penal fiscal também sofre com as alterações legislativas que vêm ocorrendo desde a década de 90 do século passado como forma de implementação das políticas econômicas pelo governo.

O equilíbrio das contas públicas é atingido pela dualidade “arrecadação de tributos-redução de despesas”. Como a redução de despesas é sobremaneira mais árdua de atingir-se, as políticas arrecadatórias seguem um caminho de crescimento sem tréguas, funcionando a legislação penal como garantia para a eficácia da arrecadação.

Trata-se de movimento expansionista penal, por diversas vezes citados em outros artigos de nossa lavra. Especificamente no presente artigo, nosso foco é a evolução das leis penais criadas para tutelar a arrecadação das verbas previdenciárias.

Inicialmente veio a Lei 8.137/90 e seu genérico artigo 2º, inciso II. Após, tivemos a tutela específica na Lei 8.212/91 e, em 2000, finalmente, aperfeiçoou-se no artigo 168-A do Código Penal a tutela criminal da arrecadação previdenciária. Estas leis geraram uma série de interpretações e desacertos de nossos tribunais federais e agora, finalmente, parece que a interpretação encontrou um caminho de correção.

É sabido que o empregador retém os valores descontados dos vencimentos do empregado devendo repassá-los à Previdência. Esses valores, parte da doutrina e da jurisprudência dizem pertencer ao Estado e não ao empregador.

Porém, mesmo que se fictamente tais valores pertencessem ao Estado, fisicamente eles estão nas mãos do pagador, ou seja, do empregador — esta figura acabou por aproximar a espécie em questão da apropriação indébita em sentido estrito. Em muitas vezes, seja por ilícita vontade de se “apossar” desses valores ou por real dificuldade financeira, o repasse não é feito, ensejando autuação por parte da Previdência e consequente instauração da persecutio criminis, com altíssimo índice de condenações.

O que havia de falha na interpretação da aplicação legal, a nosso ver, era a colocação num mesmo patamar daquele que agia com o específico dolo da apropriação com o outro que, sem condições de recolher aquelas verbas retidas, utilizava-se dessa diferença de valores não recolhidos na própria empresa, fosse para pagar salários de outros funcionários ou para quitar compromissos imperiosos à manutenção da atividade empresarial. Presenciamos ao longo dos anos empresas concordatárias e em vias de falência não terem condições de realizar os recolhimentos à Previdência e serem os administradores condenados pelo crime do artigo 168-A, o que, para grande parte da corrente mais liberal da doutrina, é uma grande aberração.

Os Juízes Federais passaram a inverter o ônus da prova, dizendo apenas que o simples não repasse dos valores configuraria o crime, sendo delito de natureza formal, não necessitando de resultado. Mesmo com a inversão do ônus da prova, impunham ainda à defesa tarefas hercúleas sobre a comprovação das dificuldades financeiras, o que em geral acabavam por não reconhecer. O entendimento judicial pelo estado de necessidade ou pela inexigibilidade de conduta diversa geraria a absolvição dos acusados. De forma a não permitir essas saídas legais, a interpretação recrudesceu ao ponto, como supracitado, de que o simples não recolhimento seria considerado o crime do artigo 168-A. Um paradoxo, pois o legislador havia previsto esse problema e inserido o artigo 168-A em meio à Apropriação Indébita do Código Penal, artigo 168.

Teleologicamente, a vontade do legislador foi a de criar o tipo de “apropriação” e não um tipo de simples “não recolhimento”. O tipo de apropriação impõe um modo de agir para o agente criminoso com o específico dolo animus rem sibi habendi, ou seja, a vontade de tomar a coisa como própria, possuir os valores como se fossem próprios. Vide que, com essa exigência, o agente, além de não repassar os valores, deve utilizá-los como próprios, seja guardando-os em investimentos, comprando bens como carros, barcos, imóveis etc, diferentemente daquele que, sem condições, não os retirou da empresa em dificuldades, destinando os valores, por exemplo, aos salários dos demais empregados.

Surpreendentemente, o novo artigo não surtiu modificação nos decisuns e acórdãos, seguindo a Justiça Federal de todo país a orientação antiga no sentido de que o simples não recolhimento configuraria o crime, independentemente da vontade do agente. A jurisprudência vinha dando este entendimento até 2008, quando deu sinal de modificação.

Houve, inicialmente, um julgamento de um Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal em relatoria do ministro Marco Aurélio[1]: A Apropriação indébita disciplinada no Art.168-A do Código Penal consubstancia crime omissivo material e não simplesmente formal.

Foi um passo importante, pois afirmou ser o crime uma espécie típica de resultado, abrindo as portas da discussão sobre seu conteúdo comportar os elementos intrínsecos da apropriação.

Na sequência, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em relatoria da Minisitra Laurita Vaz decidiu no mesmo sentido do STF[2]: Nos termos do entendimento recente da Suprema Corte, os crimes de sonegação e apropriação indébita  previdenciária são crimes materiais, exigindo sua consumação a ocorrência de resultado naturalísitco, consistente em dano para a previdência.

E desse julgamento mais uma evolução ocorreu com recente julgado também do STJ, no fim do ano passado, tratando-se da mais profunda modificação na linha de aproximar-se o espírito do artigo 168-A à sua origem. A afirmação decorre de uma decisão muito importante da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em relatoria da Ministra Maria Thereza Moura em 10 de novembro de 2009 cuja ementa do julgado traz[3] O tipo do Art. 168-A do Código Penal, embora tratando de crime omissivo próprio, não se esgota somente no "deixar de recolher", isto significando que, além da existência do débito, haverá a peça acusatória de demonstrar a intenção específica ou vontade deliberada de pretender algum benefício com a supressão ou redução, já que o agente "podia e devia" realizar o recolhimento.

Esta decisão da 6ª Turma, com a Ministra Maria Thereza, é a mais ampla até então, indo à análise da própria estrutura típica da apropriação.

Se a jurisprudência continuar a caminhar assim, pensamos que um grande avanço advirá, acima de tudo justo, para diferenciar o empresário sonegador daquele que, sem condições, não recolhe as verbas previdenciárias. Retorna, assim, o cuidado da instauração do inquérito policial prévio ao exercício da ação penal, que seria o meio hábil para se separar, ab initio, o joio do trigo. Ao menos facilitaria o exercício da ação penal de forma mais justa e clara, pois os elementos do procedimento investigatório forçariam a elaboração de exordiais mais densas, contrario sensu ao que vem ocorrendo hoje, com imputações de mero “não repasse”.

É certo que o “deixar de repassar” compõe a estrutura do tipo objetivo do artigo 168-A, mas essa singular e exclusiva imputação impede a defesa de trazer à baila as alegações de estado de necessidade ou de inexigibilidade de conduta diversa por aqueles realmente em graves dificuldades financeiras. Estas alegações defensivas não estavam sendo acolhidas pelos tribunais federais, a nosso ver, por excesso de punitivismo e simbolismo penal, motivados pelas políticas criminais e econômicas do governo federal.

Presenciamos também, como efeitos desta linha punitivista, que graças à certeza da condenação, independentemente da presença do dolo específico ou não na condutas dos empresários, as denúncias passaram a ser elaborados sem qualquer rigor técnico, desprezando o parquet federal, na maioria das vezes, a necessidade de inquérito prévio, bem como elementos coligidos pela autoridade policial.

As novas posições adotadas pelo STF e STJ demonstram um caminho mais justo, e, melhor, são indicadores de independência do Poder Judiciário, por meio de seus tribunais superiores, em matéria controversa de grande interesse do governo federal, da classe empresarial e da sociedade em geral.


[1] Inq/2537- STF- Relator- M. Marco Aurélio. Plenário. Presidência Ministra Ellen Gracie- 10/03/2008.

[2] HABEAS CORPUS 96.348-BA (2207/0293716-7). Relatora- Ministra Laurita Vaz- 5ª  Turma/ STJ – 24 de junho de 2008.

[3] AgRg no Recurso Especial nº 695.487-CE( 2004/0106651-1).

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