Casamento falido

PEC do Divórcio põe fim à discussão sobre a culpa

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13 de fevereiro de 2010, 5h37

A iminente promulgação da proposta de emenda constitucional que facilita a dissolução do casamento pelo divórcio (a chamada “PEC do divórcio” ou “PEC do amor”) gerou debates efusivos acerca de suas consequências jurídicas e, principalmente, reacendeu discussões sobre a relevância da culpa pelo fim do matrimônio.

De fato, a proposta de emenda constitucional (PEC 28/2009) já foi aprovada pela Câmara e, agora em trâmite perante o Senado Federal, recebeu aprovação em primeiro turno, aguardando apenas a deliberação final da Casa, para então ser promulgada (em se tratando de proposta de emenda constitucional, não será submetida à aprovação do presidente da República).

A emenda alterará substancialmente o sistema hoje vigente para a dissolução do casamento, na medida em que extingue os requisitos para a decretação do divórcio e deixa de contemplar o instituto da separação judicial.

Com isso, a dissolução do casamento passa a ser feita apenas através do divórcio, que pode ser promovido a qualquer momento, sem a necessidade de se aguardar qualquer decurso de prazo ou de se submeter a anterior processo de separação judicial, já que atualmente, para o decreto do divórcio, exige-se o decurso de um ano da separação judicial ou da liminar de separação de corpos (divórcio conversão) ou o decurso de dois anos da separação de fato do casal (divórcio direto).

Estas são as consequências imediatas da emenda constitucional a porvir, divulgada como a “emenda facilitadora do divórcio”. Todavia, o fim do instituto da separação judicial traz outra consequência de maior relevância jurídica e sócio-cultural, qual seja, o fim da discussão sobre a culpa dos cônjuges pela falência do casamento, alterando drasticamente toda a base histórica do Direito de Família.

O revogado Código Civil de 1916, muito embora tenha sido pontual à sua época, direcionado pelo comportamento social do início do século XX, trazia uma concepção de família que não traduzia mais a exigência contemporânea. A rigidez e a hierarquia estratificada do Direito de Família, especialmente, geraram, de um lado, casamentos falidos e fomentadores de conflitos sociais, e, de outro, o surgimento, à margem do ordenamento jurídico, de relações afetivas desmatrimonializadas.

Essas uniões livres foram aos poucos se inserindo na tutela estatal e foram também demonstrando que o segredo de sua força e prosperidade estava na sua própria liberdade e no seu fundamento único: a existência de afeto.

Com base nesse modelo, a dogmática foi cedendo lugar à pragmática e o direito foi se transformando, perdendo formalismo e focando-se nas relações sociais e afetivas. Foi então promulgada a Constituição Federal de 1988, na qual a família adquiriu forte base igualitária, reconheceu-se que sua origem não se restringe ao casamento civil (ao elevar a união estável – livre – entre homem e mulher à condição de entidade familiar) e rechaçou-se qualquer distinção entre filhos legítimos, adúlteros e adotivos.

A nova ordem constitucional erigiu como fundamento de todo o sistema jurídico a dignidade da pessoa humana – através de respeito à sua integridade física e moral, além da preservação de sua liberdade e igualdade –, assim definida por Ingo Wolfgang Sarlet, como “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade”.[1]

O princípio da dignidade humana como norte do ordenamento jurídico moderno passou a exigir uma nova visão das relações privadas, primordialmente no que se refere às relações familiares, assegurando, com a aplicação e interpretação das normas, a vida humana, em todos os seus aspectos, de maneira integral e prioritária.

A sociedade, paralelamente ao avanço do Direito, já passava por uma revolução de valores em contraponto à postura predominante na década de 80, que até então reivindicava a liberdade individual e coletiva. A sociedade contemporânea passou a buscar o equilíbrio entre a amoralidade e a moralidade rígida, através da liberdade individual agora reforçada pela responsabilidade: hiperresponsabilidade em relação aos filhos, aos valores humanos dentro da família e da sociedade em geral.


Refletindo essa tendência, o Código Civil de 2002 representou grande evolução na transformação da família enquanto instituição por si só merecedora de tutela estatal privilegiada, em favor de uma proteção direcionada à realização da personalidade e da dignidade dos seus integrantes, como indicavam os princípios constitucionais.

De fato, na vigência da atual codificação civil, o Direito de Família perdeu sensivelmente seu caráter punitivo e repressor, na medida em que a culpa pelo fim do casamento foi perdendo as consequências jurídicas que outrora gerava. Atualmente, o cônjuge culpado pela separação apenas pode perder o direito ao uso do nome do outro, passa a ter direito apenas aos alimentos necessários à sua sobrevivência e, em relação ao Direito Sucessório, perde o direito à participação na herança, em caso de culpa pela separação de fato há menos de 2 anos.

Ainda assim, cresceram os questionamentos acerca da finalidade da busca de um responsável pelo fim de um relacionamento humano. Será que existe um único culpado pela dissolução da sociedade conjugal?

Citando Fachin, Chaves de Farias[2] observa a fragilidade da vinculação das relações afetivas às regras impostas pelo Estado:

“‘Não tem sentido averiguar a culpa com motivação de ordem íntima, psíquica’, uma vez que a conduta de um dos consortes, violando deveres conjugais, é apenas um ‘sintoma do fim’.”

(…)

Em outras palavras, aquilo que se convencionou, historicamente, chamar de culpa (no sentido de causa da dissolução) não passa, na realidade, de consequência. É a consequência do único motivo que gera a dissolução de uma relação afetiva: o fim do amor, da vontade de compartilhar projetos comuns. Esta a única e verdadeira causa da extinção do casamento! Tanto sim que, não raro, vislumbram-se casos em que um dos consortes, apesar de ciente do adultério (da quebra do dever de lealdade), perdoa e mantém a relação afetiva, acreditando na recuperação e prosseguimento de ideais de vida comuns. Logo, a causa deflagradora da dissolução matrimonial é a falta de vontade de compartilhar a vida (voluntas divortiandi).”

Fato é que o descumprimento dos deveres conjugais permite ao cônjuge inocente a propositura de ação de separação judicial, imputando ao outro a culpa pela falência da sociedade conjugal. Serve, portanto, para justificar o fim do casamento e o consequente pedido de separação, mas não para proteger a família enquanto ainda vigente. Isso porque os deveres atinentes ao casamento não permitem que seu adimplemento seja exigido judicialmente. Não há a possibilidade de se ajuizar ação visando o cumprimento dos deveres conjugais, o que os torna inócuos em relação à justificativa de sua própria existência e de sua manutenção no ordenamento jurídico: a preservação e a proteção da entidade familiar, passando a ocupar importante lugar apenas no campo da moral.

Chegam a ser cômicas as palavras absolutamente precisas da desembargadora Maria Berenice Dias, quando se refere ao cumprimento do dever de fidelidade recíproca, “tratar-se-ia de execução de obrigação de não fazer? E, em caso de procedência, de que forma poderia ser executada a sentença que impusesse a abstinência sexual extramatrimonial ao vencido?”[3]

Em verdade, a prescrição de deveres conjugais e sua correspondente sanção, no caso de descumprimento, seguem na contramão das intenções da ciência do Direito e dos próprios interesses da sociedade, na busca pela valorização das relações humanas, gerando grande desafeto e litigiosidade desnecessária, que inevitavelmente acabam interferindo negativamente na criação e educação dos filhos comuns.

O novo espírito constitucional, que será corroborado pela promulgação da emenda em comento, rechaça de forma explícita a utilização do Direito como instrumento de punição pelo fim do casamento e privilegia a liberdade individual e a autonomia dos cônjuges, que já as detinham na ocasião do início do relacionamento e agora as conquistarão também no momento de dissolvê-lo.


Na atual sistemática, a ação de divórcio não permite a discussão sobre a culpa pela falência do casamento, limitando-se à análise de seus requisitos temporais e às questões outras associadas à dissolução do matrimônio, como, por exemplo, alimentos, partilha, guarda e visitas dos filhos comuns. Apenas a ação de separação judicial permite a investigação sobre a infração aos deveres do casamento.

Uma vez que, com a nova emenda constitucional, o casamento passa a ser dissolvido apenas pelo divórcio, a qualquer tempo, e sem a necessidade de declinar seus motivos ou de prévio procedimento de separação judicial, este instituto apenas serviria para a discussão sobre a culpa, o que, numa interpretação teleológica do ordenamento jurídico, conflita diretamente com os princípios orientadores da Constituição Federal.

Com efeito, as relações matrimoniais felizes não se mantêm porque a lei assim exige. Ninguém é fiel ao outro cônjuge, respeitando-o e assistindo-o por obrigação legal, mas porque está ligado ao outro pelo vínculo do afeto.

Importam menos aos indivíduos as regras sociais, as instituições e os preconceitos, impondo-se não mais a exaltação ao dever e a assunção de obrigações sócio-culturais, mas à ligação afetiva, ao sentimento que deu ensejo à união, que também não precisa ser duradouro, mas, nos versos do poeta, “que seja infinito enquanto dure”.

Com o reconhecimento constitucional da união estável como entidade familiar, percebeu-se que os contornos puramente afetivos passaram a delinear as relações humanas com êxito, e a liberdade e informalidade dessas relações geraram famílias mais harmônicas, ainda que por ocasião da sua dissolução, com reduzida carga de litigiosidade.

Do princípio da dignidade da pessoa humana decorre a premissa de que o indivíduo não existe para o fim precípuo de constituir família e procriar, conforme exigia o antigo Estado-Igreja, mas para a busca de sua felicidade e realização pessoal, objetivo no qual a família se insere como instrumento de efetivação do fim pretendido.

Nesse contexto, o afeto passa a imperar não só no momento da constituição da entidade familiar, mas também em toda a constância da relação, de modo que cessado o liame afetivo, não há mais a base sólida para a sustentação da família tal como deve ser, sob o aspecto moral: leal, cúmplice, solidária, fraterna, voluntária e responsável.

Assim, uma vez frustradas as expectativas de felicidade e de cumplicidade na vida em comum exsurge, como decorrência da dignidade do homem, o direito de ambos os cônjuges – ainda que do suposto culpado – de não permanecer casado sem afeto e de promover a dissolução matrimonial sem a busca, ou até sem a invenção – como há em muitos casos –, de motivos que a justifiquem.

Do fracasso do projeto de felicidade do casal que não gera, por si, a dissolução matrimonial, seja porque não é identificado pelos envolvidos, seja porque, uma vez identificado, imperam deveres atinentes à manutenção do vínculo, nascem os “sintomas do fim”: adultério, injúria grave, sevícia, condutas desonrosas, desrespeito, agressão. E daí nasce o tão aguardado culpado pela falência definitiva do casamento.

Parece necessário haver uma mudança na mentalidade, ainda arraigada em parte da sociedade, de que é preciso procurar o culpado pela separação do casal. E se é que há um culpado, haverá um inocente pelo fim do afeto?

Nossos tribunais já vêm atentando para essa sensível alteração, apontando a direção que agora deverão tomar as relações familiares, com a promulgação da “PEC do Divórcio”, valendo transcrever alguns trechos de importante decisão a respeito:

“A vitimização de um dos cônjuges não produz qualquer sequela prática, seja quanto à guarda dos filhos, partilha de bens ou alimentos, apenas objetivando a satisfação pessoal, mesmo porque difícil definir o verdadeiro responsável pela deterioração da arquitetura matrimonial, não sendo razoável que o Estado invada a privacidade do casal para apontar aquele que, muitas vezes, nem é o autor da fragilização do afeto.


A análise dos restos de um consórcio amoroso, pelo Judiciário, não deve levar à degradação pública de um dos parceiros, pois os fatos íntimos que caracterizam o casamento se abrigam na preservação da dignidade humana, princípio solar que sustenta o ordenamento nacional.”[4]

Nessa linha, cabe ao Estado incentivar a manutenção, e bem assim a extinção, dos vínculos matrimoniais fundados na afetividade, desvinculando-os de sanções. Extinguindo-se a culpa pelo fim do casamento, estar-se-á direcionando o indivíduo a uma nova busca, distinta daquela de outrora, que exigia a identificação do responsável pela ruptura do vínculo conjugal, e que, esta sim, o levaria à conscientização de que a felicidade e a realização pessoal, que tanto se busca, exige esforço e comprometimento para com a relação e não para com o Estado ou a sociedade.

Na perspicácia de Savatier, citado por Washington de Barros Monteiro[5], ideais são as uniões chamadas “livres”, porquanto a liberdade permite de forma mais pura a mantença de um relacionamento afetivo, no qual “não há fidelidade, obediência, assistência obrigatória. Tudo isso, dado por amor, não deve durar senão enquanto puder durar esse amor”.

De todo modo, vincular a dissolução do casamento ao descumprimento dos deveres conjugais e, via de consequência, à perquirição da culpa, afronta diretamente a dignidade da pessoa humana na medida em que tolhe a liberdade do indivíduo – manifestada na vontade de se separar –, incentiva relacionamentos artificiais e sem base afetiva, que comprometem a formação psíquica dos filhos e a formação dos cidadãos do futuro; além de impulsionar a escalada do conflito entre os cônjuges, alimentando a angústia e o sofrimento humanos, num percurso processual que perdurará por longos anos.

Ao que parece, apesar de muito pouco comentada sob esse aspecto, a Proposta de Emenda Constitucional 28/2009, na iminência de ser promulgada, representa grande avanço do Direito, muito menos como facilitadora do divórcio como é conhecida, mas primordialmente na promoção da paz social e na entrega de harmonia às relações familiares dissociadas, quando põe termo à histórica discussão quanto à culpa pelo fim do casamento.


[1] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, pág. 60.

[2] CHAVES DE FARIAS, Cristiano. Redesenhando os Contornos da Dissolução do Casamento. in: IV Congresso Brasileiro de Direito de Família, realizado em Belo Horizonte, de 24 a 27 de setembro de 2003, Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil/coordenador: Rodrigo da Cunha Pereira – Anais – Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pág. 118

[3] ________________. O dever de fidelidade. Disponível em: <http://www.mariaberenicedias.com.br>. Acesso em: 3/5/2007

[4] TJRS, Apelação Cível 70005834916 – Porto Alegre – 7ª Câmara Cível, Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, negaram provimento por v.u., j.2.4.2003

[5] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Vol.2: direito de família, 37 ed.. São Paulo: Saraiva, 2004, p.23

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