Teste do bafômetro

Parecer da AGU não reconhece direito positivado

Autor

  • Ticiano Figueiredo

    é advogado criminalista sócio do escritório Figueiredo & Mesquita Advogados especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e sócio fundador do Instituto de Garantias Penais.

11 de fevereiro de 2010, 16h02

O constituinte originário, no Capítulo sobre os direitos e deveres individuais, elencou como garantias fundamentais de todo cidadão o princípio da presunção de inocência e o direito do preso de permanecer calado sem que isso pese contra si, ambos previstos, respectivamente, no artigo 5º, incisos LVII e LXII, da Constituição Federal.

Desses princípios constitucionais deriva outra importante garantia fundamental de todo cidadão brasileiro, o direito de “não produzir provas contra si”, que encontra respaldo também na Convenção de Direitos Humanos de 1969, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica. Em seu artigo 8º, das Garantias Judiciais, a Convenção declara que toda pessoa tem “direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada”.

Com a entrada em vigor, no Brasil, da Lei 11.705/2008, a famosa “Lei Seca”, muito se tem ouvido falar sobre o direito constitucional de não produzir provas contra si, uma vez que, para se punir criminalmente um motorista pela prática do crime de embriaguez ao volante, passou-se a exigir a constatação de que ele está com concentração de álcool igual ou superior a 0,6 decigramas por litro de sangue.

Note-se que apenas com esse índice comprovado é que se pode processar alguém pelo delito previsto no artigo 306 do Código de Trânsito, eis que o mesmo é circunstância elementar desse tipo penal.

Pois bem, a verificação desse dado tem sido feita pelos agentes de trânsito de duas maneiras: exame de sangue ou pelo famigerado teste do bafômetro, que passou a ser feito na maioria das blitz das cidades brasileiras.

Contudo, uma pergunta tem inquietado boa parte da população: afinal, ao ser parado em uma barreira policial, o cidadão é ou não obrigado a soprar o etilômetro?

Muitos indivíduos já sabem que não são obrigados a produzir provas contra si — seja por não acreditar da aferição do aparelho, seja por ter realmente bebido, ou por qual razão for — e se recusam a soprar o referido equipamento. Desta forma, não enfrentam o processo criminal, mas ficam à mercê do agente público para responder no âmbito administrativo.

Todavia, causou perplexidade no meio jurídico o recente parecer interno da Advocacia-Geral da União encaminhado ao Departamento de Polícia Rodoviária Federal, recomendando aos policiais que prendam em flagrante pela prática de crime de desobediência o motorista que se recusar a fazer o teste do bafômetro, sob o argumento de que o direito de não produzir provas contra si não se encontra expresso em nosso ordenamento e, por isso, deve ceder ao interesse maior de toda sociedade.

Com o devido respeito, a AGU, ao proferir esse parecer, incorreu em dois erros graves. Primeiro, nos termos da mais pacífica jurisprudência pátria, salvo quando expressamente disposto em lei, não há que se falar em crime de desobediência quando existe a previsão no ordenamento jurídico pátrio de sanção administrativa ou civil para o fato. No caso, o artigo 277 do CTB prevê a aplicação de medida administrativa — multa, suspensão do direito de dirigir, retenção do veículo etc — àquele indivíduo que se recusa a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos naquele Código, e.g., o teste do bafômetro. Segundo, apesar de não estar previsto expressamente na Constituição Federal, o direito de não produzir provas contra si, como dito acima, está previsto na Convenção Internacional de Direitos Humanos; é derivado do princípio da presunção de inocência, expresso no artigo 5°, inciso LVII, da Carta Maior; e assim já se encontra consolidado jurisprudencialmente em nosso país.

Dizer que o princípio tem que ser relativizado é o mesmo que obrigar um acusado a depor contra si, ou se processar por falso testemunho alguém que, na condição de investigado, falta com a verdade para não se incriminar. Em outras palavras, é rasgar uma garantia fundamental inserida pelo constituinte originário, “modificando” uma cláusula pétrea, o que é inadmissível em um Estado Democrático de Direito.

Não há dúvidas que o legislador, ao editar a Lei Seca, buscou dar uma resposta imediata à sociedade cansada das corriqueiras notícias de violência no trânsito. Porém, não há dúvidas, também, que o caminho adotado, juridicamente, não foi o melhor.

Isso porque, de acordo com a redação anterior do Código de Trânsito Brasileiro, bastava que o agente público atestasse a embriaguez do motorista que dirigia colocando em risco a segurança viária, para estar caracterizado o crime previsto no artigo 306 do CTB, independentemente da realização do teste do bafômetro.

A partir do momento que se passou a exigir um índice mínimo de álcool por litro de sangue do condutor, fez-se necessário também que o motorista se dispusesse a fazer o teste para constatação desse dado. Aquele que se recusa, por mais que esteja dirigindo de forma anormal, se afasta do processo criminal.

Daí o parecer da AGU que busca sanar o manifesto equivoco do legislador ao editar a referida norma. Ora, é incontroverso que cada vez mais devem ser buscadas medidas visando diminuir a violência no trânsito do país, mas isso deve ser feito, sempre, respeitando-se os limites da legalidade.

É inequívoco que o número de acidentes no trânsito diminuiu no último ano, contudo isso se deve mais à efetiva fiscalização que vem sendo realizada do que à edição da referida norma.

É inadmissível, portanto, que se busque consertar um erro, provocando outro ainda maior no ordenamento jurídico pátrio. Dessa forma, cabe à Ordem dos Advogados do Brasil, dentro de seu papel constitucionalmente previsto, zelar para que uma garantia fundamental inerente a todo Estado que se diz Democrático de Direito não ceda diante da pressão advinda de uma situação como essa.

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    é advogado criminalista, membro do escritório Advocacia Toledo, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e sócio fundador do Instituto de Garantias Penais.

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