Ferramanta de socorro

O garantismo apenas para proteção dos poderosos

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8 de fevereiro de 2010, 15h44

Já existem trabalhos prodigiosos pugnando pela atenção ao princípio da proibição da proteção deficiente na seara penal. Essa linha de pensamento, aqui no Brasil, é encabeçada pelo eminente jurista Lenio Luiz Streck (1), que assim delimita a problemática, sob um ponto de vista genérico, em seu artigo intitulado “Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais”:

“As presentes reflexões, além de resumirem várias teses que venho desenvolvendo contemporaneamente, pretendem chamar a atenção para a dupla via que devem ter as análises acerca da validade de dispositivos penais. Ou seja, é preciso ampliar a perspectiva do direito penal da Constituição na perspectiva de uma política integral de proteção dos direitos, o que significa entender o garantismo não somente no sentido negativo como limite do sistema punitivo (proteção contra o Estado), mas, sim, também como garantismo positivo, o que, no dizer de Baratta, aponta para a resposta às necessidades de assegurar a todos os direitos, inclusive os de prestação por parte do Estado (direitos econômicos, sociais e culturais), e não apenas aqueles que podem ser denominados de direitos de prestação de proteção, em particular contra agressões provenientes de comportamentos delitivos de determinadas pessoas”.

Há uma preocupação, portanto, que já não é sem tempo de alertar sobre a necessidade de equilíbrio entre os dois aspectos (negativo e positivo) do garantismo penal dada as recentes e bem-vindas inovações levadas a efeito no sentido de tentar estruturar, no Brasil, um Sistema Garantista, com certa aparência com o modelo traçado por Ferrajoli (2).

Ocorre, todavia, que nesse momento de novidades e modismos nota-se que por algumas vezes se vai além de onde poderia ir; ou melhor, o Estado renuncia, em certos planos, quase que totalmente sua força, o que acaba por relegar a coletividade ao desamparo.

Os trabalhos de Lenio Streck e outros, que já tivemos a oportunidade de ter acesso, tratam dessa renúncia parcial de poder do Estado (que no plano revesso acaba afetando o direito de proteção da coletividade) sob o ponto de vista intrínseco da legislação e da jurisprudência que se materializam atualmente, sem identificar, porém, características comuns dos destinatários beneficiados pelas decisões ou novas leis.

É claro que ao legislador não cabe selecionar destinatários específicos das normas penais, mas sim bens jurídicos a serem protegidos, e o grau de proteção que eles irão receber. A seleção legislativa, contudo, acaba transversalmente se direcionando a determinados grupos sociais.

Por exemplo: a) o gritante aumento de pena do crime de extorsão mediante sequestro (operado pela Lei 8.072-90) não protege, no plano concreto, a pessoa que não possui certa posição sócio-econômica que desperte o interesse do sequestrador; b) a jurisprudência já sedimentada, garantindo condicionantes para a persecução penal nos crimes tributários não apresenta como destinatários potenciais os membros da parcela mais pobre da sociedade.

Desse modo, a seletividade da legislação e a opção jurisprudencial, em certos casos, acaba direcionando proteção ou garantia para determinados grupos sociais. E as práticas da persecução penal (tanto pré-processual quanto judiciária) acabam de certo modo, mesmo que inconscientemente (na maioria das vezes), beneficiando também certos grupos sociais.

O garantismo foi pensado por Ferrajoli primordialmente como uma ferramenta de socorro às classes menos privilegiadas contra os arbítrios do Estado. Em entrevista que concedeu a Fauzi Hassan Choukr (3), em 14 de dezembro de 1997, ele deixou bem claro isso, ao responder à pergunta “O garantismo necessita de uma estrutura cultural própria e, no Brasil, sentimos falta de uma base sólida voltada para estes valores. Este é um problema que se passa também aqui, na Itália?”, com o seguinte racioncínio:

“Sim, por certo. A realização de um modelo garantista está apoiada numa cultura garantística, fundada no respeito aos direitos do Homem. Então, a jurisdição se torna um poder ambivalente ou um “contrapoder”, que tem a missão de proteger as classes menos favorecidas do poder dos mais fortes. Mas, por outro lado, apresenta o mesmo perfil do poder tradicionalmente considerado. As garantias penais e processuais penais, por sua vez, são técnicas de minimização do poder institucionalizado. E são particularmente relevantes estas “instituições-chave” inseridas na Constituição. É certo que, no Parlamento, há a vivificação da democracia política, mas são estas garantias que permitem um controle da legalidade e evitam o autoritarismo. Assim, a atuação prática dessas garantias está a exigir uma típica cultura, uma típica formação que, de um lado, possibilite uma independência em relação aos poderes do Estado e, de outro, que sensibilize para os direitos civis e políticos, em especial em relação aos mais desfavorecidos”.

Mais recentemente (em maio de 2007) (4), em entrevista concedida ao Jornal do Comércio, Ferrajoli deixa mais uma vez transparecer a opção garantista pela proteção dos menos favorecidos, conforme segue:

Jornal do Comércio — O Brasil está vivendo um aumento indiscriminado da violência. O Legislativo tenta criar um pacote de leis antiviolência para reduzir essas estatísticas. O senhor acredita que essa seja uma solução para o problema?
Ferrajoli — Repito: essas leis não servem para nada. Para encarar a criminalidade, principalmente entre as classes mais pobres, as únicas políticas eficientes são as políticas sociais. Essa situação é em parte resultado de grandes desigualdades, da exibição e ostentação da riqueza em frente a uma classe que vive no limite da subsistência. Portanto, o único modo para acabar com os lugares em que o crime encontra espaço para crescer é uma política de garantia dos direitos sociais, que oferece alimentação, instrução e um sistema de saúde. […]

Jornal do Comércio — O Código Penal brasileiro foi escrito em 1940. Quais são as conseqüências de um Código tão antigo?
Ferrajoli — Infelizmente são as mesmas conseqüências que temos na Itália, que tem um código de 1930. E um código fascista, que foi parcialmente modificado, mas que mantém a velha estrutura autoritária. Seria necessário repensar, à luz da Constituição, os pontos que merecem tutela. É preciso valorizar, sobretudo, a pessoa e admitir que a criminalidade no poder, mais do que aquela de subsistência, é muito grave. O crime organizado, as máfias, os crimes de corrupção e as diversas formas de peculato são os únicos tipos de atos nos quais o direito penal tem um forte efeito inibidor. A impunidade da corrupção produz inevitavelmente um aumento desse tipo de crime”.

Note-se claramente que Ferrajoli não rejeita os efeitos necessários que o Direito Penal exerce no atual estágio de desenvolvimento da sociedade. O eminente jurista, inclusive, defende que os principais destinatários das normas repressoras devem ser aqueles engendrados na criminalidade de elevada organização e poder. No Brasil, parece que se esqueceu esta face do garantismo: assegurar aos menos favorecidos mecanismos de controle dos arbítrios estatais, e porque não dizer, privados também (5).

A história da luta (legítima, repita-se) pela implantação de um Direito Penal e Processual Penal mais justo, aqui por essas bandas, parece que somente se reacende quando há algum episódio paradigmático envolvendo grandes figuras públicas ou privadas. Nesse aspecto, é que aqui se propõe um repensar do princípio da proporcionalidade, não somente sob o ponto de vista da análise intrínseca da legislação e da jurisprudência, mas também quanto a seus efeitos práticos, pois neste momento se torna imperiosos indagar: será que os avanços garantistas estão sendo sentidos pelos destinatários originários dos mesmos, na concepção de Ferrajoli?

Ressalta-se, outrossim, que aqui não se quer argumentar que os poderosos deverão ser excluídos da proteção garantista. Não é isso. Argumento nesse sentido seria simétrico à doutrina do “direito penal do inimigo”, que a doutrina pátria rechaça quase que pacificamente, com toda razão. O que se quer demonstrar é que a proibição de excessos, em nosso país, parece atuar quase que exclusivamente (ou com grande preponderância) quando tem como destinatários pessoas poderosas.

Isto está evidente em fatos como: descriminalização fática dos crimes tributários, tentativa de imposições legais que inviabilizem as interceptações telefônicas, quebras de sigilo bancário e outros mecanismos de apuração, que são os únicos possíveis, em muitos casos, de pelo menos fornecer uma linha de investigação segura para esclarecer crimes financeiros e de corrupção.

Há, portanto, nos casos específicos de corrupção e crime organizado (delitos de mais alta gravidade, segundo o próprio Ferrajoli), uma gritante negligência do Estado que leva à transgressão do princípio da proibição da proteção deficiente. Sabe-se que o Brasil é um país que ainda padece com as mazelas da corrupção em todos os níveis de poder (em alguns casos com pouca incidência, em outros com imensa; mas sempre com registros de existência), envolvendo particulares e agentes públicos em uma relação promíscua.

Dada essa realidade, contudo, ainda se encara os crimes de peculato, corrupção ativa e passiva, além dos crimes próprios de agentes políticos previstos em leis especiais, com certa permissividade. Não se considera que, mesmo sem uma violência imediata, tais crimes proporcionam a uma grande parcela da população sofrimento incomensurável (por exemplo: quando o gestor público desvia dinheiro da saúde, pode condenar à morte toda uma coletividade de pacientes que não podem custear um tratamento particular).

Essa permissividade que se fala não é tanto do ponto de vista da legislação substantiva, mas sim sob o aspecto das normas adjetivas que não fornecem instrumentos adequados para a repressão, mormente quando se trata de crime organizado. Na maioria das vezes, criminalização existe, porém não se tem como efetivar a persecução.

Assim, por uma ironia, o garantismo que foi pensado para ser um instrumento de proteção para os mais vulneráveis, acabou se tornando um fator de proteção que bem serve quase que exclusivamente aqueles cuja identidade pessoal se confunde com o próprio poder.

Um exemplo emblemático disso é o chamado “caso Sudam”, ente público do qual foram desviados bilhões, cuja inação dos órgãos persecutórios foi objeto de reportagem assinada por Ronaldo Brasiliense, intitulada “Todos ricos, todos soltos”, publicada no jornal O Liberal, de 27 de fevereiro de 2005, que rendeu ao jornalista premiação concedida pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), também em 2005.

Na matéria, “[…] o jornalista Ronaldo Brasiliense expôs que nenhum dos políticos e empresários acusados de desvio de dinheiro da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e denunciados pelo Ministério Público Federal está na cadeia, nem tampouco o dinheiro desviado retornou aos cofres públicos” (6).

Atualmente, já passados vários anos desde que se descobriu a farra com o dinheiro público a situação não é diferente daquela denunciada por Ronaldo, pois depois de todas as dificuldades para formação da prova em casos do gênero, quando alguns dos envolvidos se viram na iminência de sofrerem sanções penais concretas, articularam tese pseudogarantista no sentido de argumentar que todas as manobras criminosas para desviar recursos da Sudam, em cada caso específico, se resumiram a um crime tributário.

Argumentou-se que, todos os demais crimes cometidos (diversas falsidades, por exemplo), apesar de alguns serem mais graves, deveriam ser absorvidos pelo crime-fim (qual seja: desvio de incentivos fiscais). Parcela relevante da jurisprudência acatou essa tese, livrando da persecução penal eficaz vários empresários e políticos, considerando-se a reduzida pena cominada para o delito previsto no artigo 2º, IV, da Lei 8.137/90 (pena máxima de dois anos de detenção).

Vale lembrar que atualmente os benefícios processuais para aqueles que cometem crimes tributários ganharam uma capilaridade incrível, além da exigência do esgotamento prévio da esfera administrativa quando se tratar de crime material, entendendo grande parcela da jurisprudência que: a) se o acusado realizar o pagamento do débito até a sentença, resta extinta sua punibilidade; b) que o parcelamento do débito acarreta a suspensão da persecução penal; c) se o débito for até R$ 10 mil, o fato é atípico.

Todos esses benefícios são concedidos ao argumento de que crime tributário mais se identifica com dívida civil do que com ilícito penal. É esquecido, todavia, o aspecto fraudulento que é inerente a todos os crimes da espécie, o que lhe dá grande semelhança com o estelionato comum, crime este que ninguém fala em descriminalizar. E este é somente um exemplo que demonstra que o Direito (sobre todos os seus aspectos, mesmo o garantista), aparentemente, somente serve para legitimar o poder das classes dominantes; sendo que, no Brasil, tal constatação ganha evidência gritante.

Resta concluir, portanto, que há em nosso país, segundo já pontuamos em outro trabalho, um verdadeiro supergarantismo (7) quando se trata de persecução penal em desfavor de poderosos (8).

Acontecimentos recentes reforçam de forma insofismável essa constatação, dos quais podemos destacar: a) libertação de um famoso médico de São Paulo, acusado de cerca de cinqüenta estupros; b) paralisação de ação penal (decorrente da Operação Castelo de Areia, da Policia Federal) que tem como réus executivos da Construtora Camargo
Corrêa; c) suspensão de processos criminais (decorrentes da Operação Satiagraha, também da Polícia Federal) que têm como réu o banqueiro Daniel Dantas; d) episódios de corrupção ocorridos no Distrito Federal, diante dos quais, apesar da saciedade de provas, ainda não houve punição efetiva (e nem perspectiva concreta de haver) de qualquer dos envolvidos.

Ressalte-se, entretanto, que aqui não se pretende direcionar uma crítica (sem os fundamentos necessários) a qualquer das decisões judiciais referidas no parágrafo anterior, apenas se objetiva demonstrar que o nosso sistema penal como um todo é ineficiente quando se trata da persecução penal de pessoas poderosas, sendo que seus defensores sempre conseguem, nos meandros da confusa legislação e através de infindáveis recursos, encontrar meios para, mesmo sem negar (na maioria das vezes) a culpa de seus clientes, conseguir que os mesmos não recebam qualquer punição.

Referência
1.
STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso (ÜBERMASSVERBOT) à proibição de proteção deficiente (UNTERMASSVERBOT) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Disponível em: <http://www.prr5.mpf.gov.br/nucrim/boletim/2007_05/doutrina/doutrina_boletim_5_2007_proporcionalidade.pdf >. Acesso em: 14 mai. 2009.
2. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: RT, 2006.
3. ENTREVISTA nº 77 – Boletim IBCCRIM – ABRIL 1999. A teoria do garantismo penal e seus reflexos no Direito e no Processo Penal. Entrevista com Luigi Ferrajoli, concedida a Fauzi Hassan Choukr, em 14.12.1997, em Roma.
4. Disponível em: <
http://www.mp.rs.gov.br/imprensa/clipping/id52705.htm?impressao=1&>. Acesso em 18/05/2009, às 22:15 h.
5. Considere-se que Ferrajoli, na mesma entrevista concedida para Choukr (antes já citada), afirma que um desafio do garantismo é tentar se transpor ao confronto dos interesses que envolvam particulares com poderes privados, não somente públicos.
6. Informação disponível em:
http://www.amb.com.br/portal/index2.asp?secao=mostranoticia&mat_id=3120. Acesso em 24 mai. 2009.
7. FERREIRA, Gecivaldo Vasconcelos. Direito Penal deve evitar que garantismo traga impunidade (artigo). Disponível em:

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