Devidos trilhos

CNJ ou Conselho de Segurança Nacional?

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  • Gustavo de Medeiros Melo

    é mestre e doutor em Direito Processual Civil (PUC-SP) professor no Curso de Especialização em Direito Processual Civil (PUC-SP) membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) do Centro de Estudos Avançados de Processo (Ceapro) e do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e sócio do Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados (São Paulo).

6 de fevereiro de 2010, 6h13

A Reforma do Poder Judiciário promovida pela Emenda Constitucional 45/2004 criou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como órgão administrativo de composição heterogênea para controle administrativo, financeiro e disciplinar do Poder Judiciário. Entre suas atribuições está a de fiscalizar o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, os princípios da administração pública e zelar pela autonomia do Poder Judiciário (CF, artigo 103-B).

O CNJ entrou para a história das instituições políticas no Brasil como uma tábua de salvação, um divisor de águas no combate ao desmantelo secular que fez do Poder Judiciário uma ilha imune e soberana na prática do nepotismo, da corrupção e privilégios corporativos de toda ordem. Felizmente, essa realidade está mudando aos poucos, mas está mudando.

Todavia, um julgamento recente do CNJ, sessão do dia 24 de novembro passado, atropelou todas as barreiras postas pela Constituição de 1988. Em procedimento de controle administrativo instaurado de ofício (PCA 200910000026606, relator conselheiro Walter Nunes da Silva Júnior), o CNJ declarou sem efeito uma decisão definitiva do plenário do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN) que havia assegurado a um desembargador aposentado, com parecer favorável do Ministério Público, o direito à percepção de seus proventos no valor incorporado pelo regime jurídico anterior à estipulação do teto remuneratório fixado para ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), até que fossem absorvidos por futuros reajustes.

Para os 14 conselheiros do CNJ, com exceção de um que ficou vencido, o TJ-RN teria violado a competência do STF quando aceitou processar um mandado de segurança que discutia os limites do subsídio de um magistrado aposentado. Entendeu-se que ninguém além do STF poderia julgar a ação, porque o corte feito nos proventos havia sido determinado pelo CNJ, e não pelo presidente do TJ-RN. Mesmo ciente de que se tratava de decisão judicial definitiva, o conselho cortou os proventos do magistrado na parte excedente ao teto. Mas não parou por aí. O conselho foi além. De ofício, ordenou a instauração de uma reclamação disciplinar contra o desembargador do TJ-RN por ter aceito processar o mandado de segurança.

Com todo respeito, essa postura do CNJ é um atentado aos princípios constitucionais que dão base de sustentação ao Estado democrático de Direito. As razões e o resultado desse julgamento do conselho são de aterrorizar.

Não está em discussão se o TJ-RN errou ou acertou quando se reconheceu competente para julgar aquele mandado de segurança do magistrado aposentado. Tampouco interessa aqui se houve erro ou acerto na interpretação do direito adquirido e da irredutibilidade de vencimentos no caso concreto. O problema agora não é esse. Se houve equívoco, cabia ao Estado do RN, ou eventualmente ao Ministério Público, levar essa discussão aos tribunais superiores pelos recursos judiciais cabíveis. Ao lado disso, a reclamação constitucional constituiria canal adequado para noticiar ao STF eventual usurpação de competência sua (se é que houve). Outra forma de neutralizar o pronunciamento da Corte Estadual seria a suspensão de segurança, medida tradicional de uso corriqueiro do ente público enquanto pendente o processo.

Além disso, se a decisão se tornou definitiva, se transitou em julgado, como se diz na linguagem técnica, o sistema jurídico brasileiro abre uma chance de se voltar ao Poder Judiciário com a chamada ação rescisória, que tem prazo de dois anos contados do último pronunciamento feito no processo. Acabou a artilharia? Ainda não. O Estado dispõe de defesa contra o título executivo supostamente inconstitucional na fase de execução.

No Brasil, é esse o caminho legítimo do processo assegurado a todos no Estado democrático de Direito comprometido com a garantia fundamental de acesso à Justiça. O remédio vem do sistema jurídico que oferece recursos, ações e incidentes processuais para resolver o problema dentro do diálogo mais democrático que pode ser estabelecido entre os órgãos jurisdicionais competentes para rever o mérito da solução jurídica dada. A pessoa jurídica pública, em particular, já é privilegiada com um leque ainda maior de instrumentos de controle e prazos alargados.

Um órgão administrativo como o CNJ, de “natureza exclusivamente administrativa”, como já proclamou o STF (ADI 3367-DF), não tem autorização para cancelar decisões judiciais, muito menos aquelas que se tornaram definitivas sob a proteção constitucional da coisa julgada. Entre suas atribuições não existe, nem poderia haver, qualquer coisa que o autorize cassar ou reformar decisão judicial transitada em julgado, por mais grave que seja o motivo. Pelo contrário, o conselho tem atribuição de zelar pela autonomia do Poder Judiciário. O objeto de sua fiscalização é o ato administrativo e o comportamento dos membros da magistratura e seus auxiliares. Jamais o mérito do ato jurisdicional que discute a melhor interpretação jurídica que deve prevalecer (CF, artigo 103-B, § 4º).

Chegou-se a dizer que a coisa julgada que se formou no julgamento do mandado de segurança é “ineficaz” perante o CNJ em razão da “imunidade das decisões do Conselho Nacional de Justiça à jurisdição dos Tribunais Brasileiros”. Não fosse só a confusão que se fez entre jurisdição, competência, eficácia e coisa julgada, invocou-se o regimento interno do conselho (norma administrativa) que diz o seguinte: “As decisões judiciais que contrariarem as decisões do CNJ não produzirão efeitos em relação a estas, salvo se proferidas pelo Supremo Tribunal Federal” (art. 106).

Deu para sentir o cheiro? Já ouviram falar do Ato Institucional n. 5 baixado no final de 1968? Vejamos. Naquele de ano chumbo grosso, o General Costa e Silva, sentado a uma mesa com o temido Conselho de Segurança Nacional (CSN), decretou “suspensa a garantia de habeas corpus” e declarou excluídos “de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos” (AI-5/68, art. 10 e 11).

Hoje, quarenta anos depois, embaixo da Constituição de 1988, o CNJ anuncia ao povo brasileiro que nenhuma decisão judicial, definitiva ou não (tanto faz), tem efeito perante ele, exceto a do STF. É como dizer que “todos” têm o dever de respeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, menos o CNJ. Para completar a sessão de homenagem ao AI-5, só faltou o conselho declarar suspensa a garantia do mandado de segurança e comunicar que “são nulos de pleno direito e desprovidos de qualquer efeito todos os atos e decisões, judiciais ou administrativas, definitivas ou não, praticadas em desacordo com suas resoluções, regimento interno e atos complementares, bem como os respectivos efeitos”. No fundo, a mensagem foi essa.

 E disse mais. O CNJ deu o recado de que o juiz ou desembargador que aceitar o processamento de alguma ação que o conselho entenda ser da competência do STF, inclusive mandado de segurança, será alvo de procedimento que poderá submetê-lo a um processo administrativo disciplinar…

No museu de excrescências de nossa história ficou famoso um caso ocorrido na primeira república, durante o governo de Prudente de Moraes. Um magistrado do Rio Grande do Sul (ilustre por sinal… professor Alcides de Mendonça Lima) foi condenado pela Justiça gaúcha por crime de prevaricação e pegou nove meses de suspensão pelo só fato de haver declarado inconstitucional uma lei daquele Estado que alterava as características essenciais do Tribunal do Júri. O STF, porém, reparou o absurdo. Absolveu o réu, assinalando ter havido apenas divergência de opinião, e não um crime. A defesa ficou por conta de Rui Barbosa que batizou o triste episódio de “crime de hermenêutica”.

Voltando ao século XXI, o CNJ está se arvorando numa espécie de “guardião” do Supremo Tribunal Federal quando nem o próprio STF tem poderes para quebrar a autoridade de uma decisão definitiva, trate ou não de súmula vinculante, seja de que instância for, a não ser a dele próprio, desde que provocado (nunca de ofício) por meio de ação rescisória. A decisão final do TJRN deve ser respeitada por todos, inclusive pela Suprema Corte brasileira. O que dirá um órgão administrativo…

Esse comportamento extravagante do CNJ preocupou a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). Essa entidade interveio para solicitar que se reconsiderasse a ordem de instauração de reclamação disciplinar contra a pessoa do desembargador. Para a Ajufe, a reprimenda do CNJ agride o princípio constitucional da independência funcional da magistratura e não pode ser aceita pelo simples fato de se ter manifestado interpretação divergente. Constrangido, o ilustre relator (ex-presidente daquela associação) acolheu o pedido de revisão. Porém, em vez de reconhecer a violação constitucional, preferiu entender que não se pode reprimir um único desembargador quando a decisão dele foi aceita por um colegiado.

Esperamos que o Supremo Tribunal Federal, do alto de sua jurisdição constitucional, intervenha para corrigir tamanha violência praticada contra a Constituição da República, o Estado democrático de Direito e a independência da magistratura, recolocando esse órgão de “natureza exclusivamente administrativa” de volta nos seus devidos trilhos.

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